Links da quarentena: a era da m*rda no ventilador

Links da quarentena: a era da m*rda no ventilador

Toda sexta-feira, a serrote indica uma seleção de links sobre o mundo em tempos de pandemia.

Na edição de hoje: uma investigação linguística sobre a expressão que define nosso tempo: “a m*rda bateu no ventilador”. E três poetas encontram outras palavras para refletir sobre o momento que vivemos.

E mais: o que os antigos romanos faziam quando uma estátua caía em desgraça? O que o canto dos pássaros durante a quarentena ensina sobre canto lírico? Como os filósofos estoicos podem ajudar a encarar o confinamento?

Esta seção é parte da série #IMSquarentena, com ensaios do acervo, colaborações inéditas e indicações de leitura. 

A m*rda bateu no ventilador”, expressão que nós, brasileiros, costumamos usar enfatizando o sujeito da ação, ou seja, referindo-se a quem lança a dita cuja sobre o aparelho destinado a nos aliviar o calor, parece uma boa síntese para descrever o mundo em plena pandemia, sacudido por protestos planetários contra racismo e violência policial e afundando numa crise sem precedentes. “Para parafrasear Emerson, as expressões, ainda que pareçam mundanas, são a poesia fossilizada da linguagem”, escreve a linguista Chi Luu numa eruditíssima digressão para o JStor Daily, página que traz para o cotidiano as reflexões acadêmicas armazenadas no Journal Storage, importante banco de publicações universitárias. A imagem escatológica não tem data e local precisos de nascimento, mas tudo indica que era corrente entre soldados canadenses na década de 1940, virou música durante a Segunda Guerra e foi citada na literatura pela primeira vez por Norman Mailer nas páginas de Os nus e os mortos, de 1948. Uma pesquisa da universidade de York mostra inclusive que, em geral, usamos expressões deste tipo para resumir algum revés – o noticiário não só não desmente como confirma.

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Há algo neste momento singular que escapa mesmo à melhor cobertura jornalística, por isso o suplemento literário do New York Times convidou dois poetas para ocupar capa e contracapa da edição desta semana. Claudia Rankine – de quem a serrote publicou um ensaio recente sobre branquitude – descreve no poema “Clima” o misto de perplexidade e revolta que marca nossos dias de combate à pandemia e levantes contra o autoritarismo e o racismo: “Eu falo clima mas quero dizer/ uma forma de governo que negocia nossa morte/ e chama isso de vida”. Já em “Diga obrigado peça desculpas”, Jericho Brown presta homenagem aos trabalhadores que mantêm supermercados funcionando e despensas abastecidas. Na New Yorker, é também uma poeta, Elizabeth Alexander, que encontra as palavras para descrever a experiência coletiva de quem cresceu nas últimas três décadas vendo pela TV e pela internet a repetição de flagrantes de brutalidade policial contra pessoas negras: é a Geração Trayvon, referência ao jovem Trayvon Martin, assassinado por um vigia branco na Flórida em 2012, quando tinha 17 anos: “Eles conhecem histórias como essa desde sempre. Essas histórias formaram sua visão de mundo. Essas histórias ensinaram aos jovens afro-americanos o que eles personificam e como são vulneráveis. Com essas histórias eles são alfabetizados no medo e na futilidade. Essas histórias são o solo onde brota sua raiva. Essas histórias ensinam a eles que a violência e o ódio contra os negros nunca está distante”.

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Na Roma Antiga, quando uma estátua caía em desgraça (por manchas na reputação do homenageado ou pela chegada ao poder de adversários do morto, por exemplo) ela podia ser decapitada, destruída ou atirada ao mar – como aconteceu no início de junho com a do comerciante de escravos Edward Colston na cidade inglesa de Bristol. Mas os romanos também tinham soluções mais criativas: fazer gambiarras para deixar o rosto infame parecido com o de alguém bem quisto ou simplesmente colocar uma placa com outro nome por cima do nome do homenageado. É o que conta a historiadora inglesa Mary Beard neste artigo irônico sobre o que ela chama de “guerra das estátuas”, o debate que se intensificou nas últimas semanas sobre o que fazer com monumentos de símbolos do colonialismo e da escravidão. Beard celebra o destino dado à estátua de Colston, mas argumenta que o debate não pode se resumir a um expurgo de resíduos indesejáveis do passado: “Claro, no momento em que as estátuas são encomendadas, trata-se de uma celebração do indivíduo. Mas com o passar de décadas e séculos isso muda. Na longue durée, estátuas oferecem diversos desafios à nossa visão da história: elas nos interpelam a pensar sobre o que nos separa dos heróis do passado, como podemos confrontá-los (no fim das contas são apenas pedaços de pedra), e como elas nos lembram de nossa própria fragilidade perante o julgamento do futuro”.

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Norman Lebrecht evoca os dias em que a potência vocal das cantoras líricas partiam vidros e paralisavam corações em sua coluna na The critic, nova revista cultural inglesa. A reflexão é motivada pelo canto de pássaros que voltou a ser ouvido em sua clareza onde governantes sérios estimularam e até impuseram o isolamento social. “O que mais aprendi com os pássaros? Tempo, volume e dinâmica. Não há pássaro que desafine ou erre o compasso”, escreve o crítico. Com a verve que marca livros como O mito do maestro e Maestros, obras-primas e loucuras, Lebrechet ainda distribui considerações pouco elogiosas a nomes consagrados como Herbet von Karajan e George Solti, regentes responsáveis, segundo ele, pelo fato de cantores de ópera forçarem cada vez mais suas vozes em busca de volumes espetaculares.

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Epiteto e Sêneca ganharam um novo apelo em tempos pandêmicos – pelo menos na Espanha e na Inglaterra. Editoras gerais e especializadas em clássicos registraram um notável aumento, de até 30 por cento, nas vendas da rubrica “estoicismo”, escola filosófica cuja doutrina costuma falar bem aos momentos de crise. “Talvez a vontade de serenidade dos estoicos seja uma das razões pelas quais, durante o confinamento, muitos tenham recorrido a seus textos”, lembra Francesco Arroyo neste artigo. Marco Aurélio, o imperador, está entre os improváveis best sellers. “As pessoas buscam retiros no campo, na costa e no monte. Tu também tens o costume de desejar tais retiros”, escreve ele nas Meditações. “Mas tudo isso é do mais vulgar, porque podes, no momento em que queiras, retirar-te em ti mesmo”

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