Se o impensável acontecer, mantenha a calma – por Heloisa M. Starling

Se o impensável acontecer, mantenha a calma

por HELOISA M. STARLING

Em 2017, livreiros independentes de Washington reagiram à posse de Donald Trump distribuindo entre seus clientes livros que, de forma nem sempre direta, refletiam sobre os riscos do totalitarismo. “Leia e aja”, a frase carimbada em cada um destes exemplares, levou a historiadora Heloisa Murgel Starling a transformar essa experiência em reflexão no ensaio “Se o impensável acontecer, mantenha a calma”, publicado em março de 2019 na serrote #31. 

Na pilha de livros, romances como Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e O conto da aia, de Margareth Atwood apontavam para a distopia como uma forma de entender melhor, pelo exagero, o curso da história. O que surpreendia, pelos melhores motivos, era a volta à lista de mais vendidos de Origens do totalitarismo, o clássico de Hannah Arendt. 

“Impossível ler o livro e não ficar alerta”, escreve Starling sobre o ensaio que, na fronteira da história com a teoria política, fez a fama internacional da autora. “A vitória da democracia sobre os regimes nazista ou stalinista tampouco é garantia suficiente para nos pôr a salvo do fenômeno totalitário. É como se algo ficasse à espreita”.

Este texto é republicado aqui como parte da série #IMSquarentena, que reúne ensaios do acervo, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia 

Obras da série “Sobre o vermelho”, de Caco Neves (2013-2019)

 

“Leia e aja”, dizia a mensagem logo na primeira página do livro que recebi ao entrar em uma livraria de Washington. Era janeiro de 2017, e mesmo quem espiasse distraído a vitrine da loja percebia que alguma coisa estava errada. Todos os títulos em exposição haviam sido publicados no século passado – o mais recente deles, em 1985. Muito estranho. Ninguém conseguia passar por ali sem entrar para descobrir o que estava acontecendo. Dentro da loja, outra surpresa: o visitante ganhava de presente um exemplar com o alerta impresso em grandes letras pretas.

Naquele mês, várias livrarias independentes de Washington adotaram esta tática: transformaram pilhas de livros em instrumento de luta direta.1 Em 20 de janeiro de 2017, Donald Trump tomou posse como o novo presidente dos Estados Uni­dos, e, em diversos lugares do mundo, havia gente se preparando para todo tipo de má surpresa. Em novembro de 2016, dias após sua eleição, o historiador Timothy Snyder alertou para os riscos que corria a democracia nos Estados Unidos: “Os americanos não são mais sábios do que os europeus que viram a democracia dar lugar ao  fascismo, ao nazismo ou ao comunismo no século 20”, postou no Facebook. E foi em frente: “Nossa única vantagem é poder aprender com a experiência deles”. O post deu origem a um livro curto, Sobre a tirania, que traz algumas recomendações: “A tirania moderna é a gestão do terror”, “Não se deixe enganar”, “Mantenha a calma quando o impensável chegar”.2

Foi o que fizeram os livreiros em Washington. Improvisaram suas lojas como uma ferramenta de ativismo político contra o autoritarismo e a intolerância na sociedade americana. A democracia, nos Estados Unidos, tem raízes antigas. Come­çou a ser construída durante a Revolução Americana, entre 1775 e 1783, quando os habitantes das antigas Treze Colônias inglesas, engajados no processo de independência, embarcaram num projeto político ambicioso: criar um sistema constitucional e um conjunto de instituições e práticas básicas capazes de controlar o poder coercitivo do Estado, evitar abusos de autoridades e preservar as liberdades da população. Naquela conjuntura, porém, a palavra “povo” arrolava algumas pessoas e não outras. A primeira dificuldade da democracia é sempre esta: definir quem pertence – e quem não pertence – à comunidade dos cidadãos.

Com a margem da cidadania estreita, o projeto democrático ficou pela metade. Foram necessárias uma guerra civil, entre 1861 e 1865, com mais de 600 mil mortos, e duas emendas à Constituição – a 13ª e a 14ª – para a escravidão ser abolida e a Suprema Corte decretar que cidadãos norte­americanos são todas as pessoas nascidas ou naturalizadas no país. O ato de declarar direitos, por sua vez, abriu um novo panorama político e, no decorrer do século 20, a sociedade ainda consideraria intoleráveis a discriminação, a dominação masculina e as injustiças sociais e políticas. E então, à medida que a democracia prosperou e todos puderam tirar proveito de sua capacidade de produzir benefícios de longo prazo, as pessoas se acostumaram a pensar que as virtudes democráticas estavam destinadas a durar para sempre. Em 2017, nos Estados Unidos, a democracia parecia uma condição natural. Mas não é.

Com a liberdade em perigo, recorrer aos livros foi um plano engenhoso. Para propagá­-lo nacionalmente, os livreiros lançaram mão de uma disposição típica dos habitantes dos Estados Unidos, desde o período colonial – a arte da associação, isto é, a capacidade de se organizar para atingir objetivos coletivos sem depender da presença do Estado e de suas agências. Em muitas cidades, como Chicago, Nova York, Los Angeles, Detroit e São Francisco, os livreiros tinham em mente que nem tudo está perdido se os livros conseguirem impelir o cidadão a refletir sobre seu próprio país. E conceberam uma estratégia esperta: os títulos escolhidos deveriam levar o leitor a compreender que a democracia pode, em determinadas circunstâncias, e ao contrário do que estamos habituados a acreditar, sair do eixo, entrar em colapso ou mesmo ceder lugar a um regime de extrema opressão.

A maior parte dos livros selecionados em Washington era de ficção. A literatura tem um jeito enviesado de usar as palavras que permite a qualquer um de nós refazer o mundo com a ajuda da imaginação, e o objetivo dos livreiros era exatamente este: levar o leitor a se desviar do caminho habitual para enxergar aquilo que de algum modo já está acontecendo. Eram livros que refletiam sobre a essência terrível da dominação em regimes extremos recorrendo ao pesadelo futurista da distopia: Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (publicado em 1932); 1984, de George Orwell (1949); O conto da aia, de Margareth Atwood (1985). O plano dos livreiros foi um sucesso, e as vendas dispararam. Os editores de Orwell, atônitos, mandaram rodar às pressas 75 mil exemplares de 1984.

No meio da pilha de ficção, havia também um volume escrito na fronteira entre a história e a teoria política: Origens do totalitarismo, de Hannah Arendt. O livro deu um salto improvável e emplacou a 25ª posição na lista dos mais vendidos do USA Today. Nada mau para uma obra que Hannah Arendt começou a escrever logo depois da Segunda Guerra e que, pouco depois de sua publicação, em 1951, tornou a autora conhecida internacionalmente. Se o objetivo dos livreiros, em 2017, era provocar os leitores a refletir sobre os riscos do aparecimento de formas extremas de dominação no interior das sociedades democráticas atuais para, em seguida, motivá-­los a agir, eles acertaram na mosca. O livro está organizado em três partes. Nas duas primeiras, “Antissemitismo” e “Imperialismo”, Arendt retraça a convergência de acontecimentos que engendrou a configuração histórica do totalitarismo em suas formas políticas conhecidas – nazismo e stalinismo –, além de revelar ao leitor os nexos comuns aos dois regimes. Mas é na última parte, “Totalitarismo”, que o livro se torna desconcertantemente próximo de nós. Descobrimos espantados que talvez seja possível nos valer desse livro para encarar uma pergunta antes impensável: qual é a possibilidade de voltarmos a viver uma experiência totalitária hoje?

Hannah Arendt sempre guardou consigo a cena nítida – à qual nunca deixava de se referir – da noite em que abandonou a crença de que uma pessoa pode passar a vida sendo apenas uma observadora do mundo. O incêndio do Reichstag – o Parlamento alemão – ocorreu em 27 de fevereiro de 1933, um mês depois de o presidente alemão Hindenburg nomear Hitler chanceler. A refinada cúpula envidraçada do edifício, em Berlim, se coloriu por inteiro de fortes luzes vermelhas, como se, no meio da noite, fogos de artifício explodissem lá dentro. Mas quando os bombeiros conseguiram finalmente entrar no prédio, foi possível identificar cerca de 20 focos de incêndio bem preparados – e as pesadas e compridas cortinas de veludo, além dos pisos de madeira antiga, estavam encharcadas de gasolina.

Um sujeito de ar apalermado que vagava pelas imediações acabou preso, e os comunistas foram acusados de perpetrar um atentado que, tudo indica, teria sido executado por 23 integrantes da milícia paramilitar nazista – as SA, abreviação de Sturmabteilung, grupos de assalto conhecidos como “camisas pardas”, formados por desempregados, foras da lei e jovens desocupados me­tidos a valentões. O incêndio criminoso criou a oportunidade de que Hitler precisava para convencer a maioria dos 65 milhões de alemães de que o momento era excepcional: “Eu tinha mais medo do comunismo que de Hitler”, justificou-se, 12 anos depois, a esposa de um comerciante em Berlim, uma dona de casa de classe média eleitora dos nazistas. O decreto de exceção que suspendeu, em toda a Alemanha, os direitos de qualquer cidadão – intitulado “Decreto do presidente do Reich para proteção do Estado e do Povo” – foi rapidamente sancionado, possibilitando uma gigantesca onda de prisões e liquidando com os social­-democratas e os comunistas: “Os vermelhos foram suprimidos em 24 horas”, entusiasmou­-se, num telegrama aos pais, outro eleitor dos nazistas, um estudante em Berlim. No mês seguinte, em março de 1933, o Partido Nazista venceu as eleições parlamentares e os deputados recém-­eleitos aprovaram a lei que deu a Hitler poderes para governar por decreto. A excepcionalidade se transformou numa situação de emergência permanente, e o voto do Parlamento enterrou as esperanças de um futuro democrático na Alemanha.

A cena do Reichstag ardendo em chamas foi o que empurrou Hannah Arendt para o reino da ação política. Ela era judia, republicana e intelectualmente formada entre  1924  e 1929, os anos de maior estabilidade da República de Weimar, o curto experimento democrático criado em 1919 a partir do desmoronamento militar e político da Alemanha imperial. Estava pronta, portanto, para se engajar no trabalho clandestino de resistência, inicialmente ao lado dos comunistas e, em seguida, associada aos sionistas. “Aquilo foi um choque tão grande para mim que sempre me senti responsável”, ela diria 30 anos depois, em 1964, numa entrevista à televisão alemã: “Quer dizer, eu não sentia mais que poderia ser simplesmente uma observadora”. Após o incêndio e as prisões ilegais, as redações de jornais e estações de rádio não alinha­ das aos nazistas foram fulminadas pelas SA em plena luz do dia, e Arendt compreendeu que havia chegado a hora de partir: “Deixei a Alemanha orientada pela resolução – muito exagerada – de que ‘nunca mais’! […] Eu não queria, com efeito, ter novamente qualquer coisa a ver com esse tipo de sociedade”, concluiu.3

Mas Arendt não ficou só no ativismo. O episódio tinha mu­dado dramaticamente sua maneira de pensar, e ela percebeu o enorme papel que uma reflexão capaz de engatar teoria política e história teria na compreensão de seu próprio tempo. A partir daí, guiou sua energia intelectual para a tarefa de moldar um ponto de vista “concreto e prático” que fosse capaz de redirecionar o que tinha aprendido com a filosofia. O ativismo tinha lhe ensinado algo e ela estava tremendamente consciente de que fazer girar a análise em torno do problema da construção de um Estado poderosamente tirânico não se­ria o bastante. Nem para descrever a ascensão de Hitler ou do nazismo, nem para entender a singularidade do fenômeno totalitário, dotado de certas estruturas de poder capazes de tornar obsoleta a natureza de antigas formas de dominação.

Com a rendição da Alemanha nazista, em 1945, porém, Hannah Arendt viu ali a ocasião apropriada para considerar os eventos contemporâneos “com a retrospecção do historiador e com o zelo analítico do cientista político”,4 que procura pelos sinalizadores em uma conjuntura de crise. O nazismo tinha aberto um abismo grande o bastante para acomodar todo tipo de gente, e o final da guerra, ela sublinhou em 1966, na introdução à terceira edição de Origens do totalitarismo, “era o primeiro momento em que se podia elaborar e articular as perguntas com as quais a minha geração havia sido obrigada a viver a maior parte da sua vida adulta: O que havia acontecido? Por que havia acontecido? Como pôde ter acontecido?5

Por mais vasta que seja a história, Hannah Arendt não encontrou sinais familiares que permitissem identificar a experiência totalitária com uma paisagem do passado. Tampouco seria possível explicá-­la como o efeito monstruoso da loucura que envolveu um punhado de pessoas que chegaram ao poder na primeira metade do século 20 e se dedicaram a destruir o sistema político vigente. Mas o totalitarismo também não era um acidente historicamente superado, um ponto de horror fora da curva da civilização. O que Arendt compreendeu quando começou a escrever Origens do totalitarismo foi a absoluta novidade de uma forma de dominação inscrita na lógica da modernidade. “As soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação, que surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica segundo um modo digno do homem”, anotou.6

Impossível ler o livro e não ficar alerta. É certo que existe uma originalidade no experimento totalitário, avisa Arendt, que inviabiliza analogias históricas ou mesmo sua assimilação aos regimes de dominação já conhecidos: tiranias de qualquer tipo, monarquias absolutistas, despotismos, ditaduras modernas ou antigas. Contudo, a vitória da democracia sobre os regimes nazista ou stalinista tampouco é garantia suficiente para nos pôr a salvo do fenômeno totalitário. É como se algo ficasse à espreita: “Permanece o fato de que a crise do nosso tempo e a sua principal experiência deram origem a uma forma inteiramente nova de governo que, como potencialidade e como risco sempre presente, tende infelizmente a ficar conosco de agora em diante”, ela escreveu, em 1951, no último capítulo de Origens do totalitarismo.7

O que acontece, então? Talvez seja essa a pergunta que assombra os dias atuais. Suásticas pichadas em paredes de universidades brasileiras, em 2018, ou tatuadas na cabeça dos homens que marcharam nas ruas de Charlottesville, na Virgínia, em 2017, evocam para nós sinais de ódio e de horror, mas isso não significa nem o retorno nem o rejuvenescimento do regime nazista – o tempo não é retilíneo, nele não existe lugar para a repetição, e a história é ingovernável, Hannah Arendt costumava dizer. Mas é preciso saber onde se pisa. Os ingredientes indispensáveis para a construção de uma experiência totalitária subsistem, continuam inscritos como uma possibilidade concreta na lógica política das sociedades democráticas contemporâneas – e, ela sublinha ao longo de sua obra, é necessário reagir.

Nos dias que correm, compreender o significado e a extensão dessa possibilidade ameaçadora adquire urgência. Aquilo que permanece entre nós, diz Arendt, são os ingredientes reveladores de uma espécie de essência totalitária que atravessa as sociedades democráticas desde sempre, fluindo silenciosamente em “correntes subterrâneas”. Não é o caso de subestimá­-los. Eles podem, de súbito, vir à tona, manipulados pela ação conivente, agressiva ou cínica de pessoas, grupos e setores sociais dispostos a abrir mão de conquistas caras à democracia para emprestar seu apoio a teses próprias de um regime político extremo – ou por estarem animados pela volúpia do poder. Emersos, expostos à convergência de acontecimentos, esses ingredientes podem se cristalizar, digamos assim, e prosperar em novas formas políticas extremas, cuja configuração final não se sabe qual será.

O que assustou Arendt e levou os livreiros a exortar seus clientes à ação foi perceber que esses ingredientes, quando retornados à superfície, podem transformar o sistema democrático de dentro para fora. E, durante algum tempo, boa parte da população nem sequer se dá conta disso. Não dão trégua à capacidade de resistência dos valores democráticos, emprestam um rosto novo e contemporâneo ao totalitarismo e lhe conferem sentido. Um desses ingredientes, talvez o principal, insiste Hannah Arendt, é fruto de uma transformação radical que ocorre no tecido das sociedades atuais, e cujo resultado gera uma espécie de sociabilidade amorfa. Um número cada vez maior de pessoas não tem relações comunitárias, não se integra, nem compartilha propósitos comuns. Uma multidão de indivíduos isolados – o homem da massa, como ela o nomeia –, preocupados apenas em cuidar da própria segurança e escapar da violência urbana, salvaguardar seus negócios e desfrutar de uma vida meticulosamente privada. Algumas dessas pessoas julgam-­se injustiça­das pelo Estado e acreditam que estão sendo destituídas de seu lugar de direito; outras não acreditam na política e em suas ferramentas, como partidos ou eleições, e defendem a preeminência da economia sobre a vida pública; muitas estão assustadas e temem o declínio de suas condições de vida e a perda de status.

Evidentemente, essa multidão não caiu do céu – nem em democracias com fundas raízes, como nos Estados Unidos, nem em experiências democráticas recentes, como a brasileira. Na verdade, ela é o resultado de alguns cruzamentos: esgarçamento das relações de confiança, desigualdade, exclusão, desemprego, empobrecimento. Por conta disso, a multidão é o lugar em que todos estão sós – e cada um sente de modo reativo que precisa cuidar de si mesmo. São indivíduos insulados numa sociedade em que está sendo progressivamente destruída a variedade de espaços topográficos e políticos originalmente compartilhados entre pessoas que nutrem diferenças consideráveis umas em relação às outras, mas que estão dispostas ao debate, ao esclarecimento recíproco, à troca de opiniões, ao aprendizado e à informação sobre os assuntos de interesse comum. Sem um espaço que seja público e sem se importar com nenhum assunto que seja coletivo, não há nada que ligue essas pessoas e faça delas uma comunidade – restam o vazio e a solidão. Atomizado na multidão, o sujeito está em busca da maior vantagem e proteção que conseguir alcançar para si próprio; quer somente ser deixado em paz para a fruição de sua vida privada.

Esse sujeito não reflete sobre os acontecimentos ao seu redor, nem se pergunta intimamente sobre o sentido de sua ação. Não é ignorante, caricato, estúpido ou insensato – apenas parou de pensar por conta própria. Pensar é algo complicado, dizia Arendt: tem o sentido de descobrir ou criar significado. É uma atividade que reclama de nós uma dupla disposição, a de estar só e a de compartilhar. Significa abandonar, momentaneamente e de modo deliberado, o terreno do que é comum a todos para pôr-­se diante do que aparece; mas pensar também exige, em seguida, retornar a esse terreno comum, recuperar o mundo compartilhado pela pluralidade dos homens e nele conseguir estabelecer a realidade de nossos conceitos.

Um sujeito que não se interroga acaba por abrir a porta para outro ingrediente revelador da essência totalitária que circula sob uma sociedade democrática. Existe um tipo característico de propaganda, observa Arendt, orientada para preencher o vazio da solidão do indivíduo e fornecer a ele uma visão coerente do mundo – mesmo que essa visão esteja em flagrante contradição com os dados da realidade. Pessoas isoladas não precisam ser especialmente crédulas ou cínicas; basta serem indiferentes. Gozam a vida possível em seu minúsculo mundo pessoal, comportam-­se de determinada forma porque é o que toda gente está fazendo naquele momento, mas não possuem – e, sobretudo, não desejam possuir – meios para contrapor informações e refletir sobre posições divergentes. Pode acontecer em qualquer lugar, e cai feito uma luva a esse tipo de propaganda. Não ocorre só porque essas pessoas acham­-se dispostas a falar da vida pública por clichês, crentes de que estão explicando a realidade imediata; nem porque estão genuinamente desinteressadas do fato de que as reverberações de sua atitude podem acabar destruindo a sociedade democrática de que depende o futuro. O desastre acontece quando o vazio de pensamento faculta à propaganda fazer uso da mentira como categoria política.

A mentira, diz Arendt, consiste em negar, reescrever e alterar fatos, até mesmo diante dos próprios olhos daqueles que os testemunharam. Pode assumir diferentes formatos em uma propaganda, mas está ali por um único motivo: garantir uma explicação coerente para algo que foi falsificado num acontecimento ou numa determinada conjuntura. O que vai convencer as pessoas nesse caso não são os fatos nem aquilo que é fortuito ou coincidente na história; é a coerência com que a falsificação será apresentada pelos meios de comunicação. Em geral, a mentira aparece logo no início da propaganda – ela é a premissa daquilo que se vai apresentar ao público. Com um detalhe: a mentira é livre de fidelidade em relação a todo o conteúdo apresentado. Isso ajuda a entender a frequência com que o candidato, o partido ou o chefe de Estado nega, reescreve e altera uma mesma versão dos fatos. O procedimento se repete insistentemente: o governante eleito diz uma coisa, declara o seu contrário e, em seguida, emplaca uma terceira versão em tudo oposta às outras duas. Sabe que conta com a complacência de pessoas que simplesmente parecem não acreditar em seus olhos e ouvidos.

A eficácia desse tipo de propaganda é grande. Uma versão fraudulenta é capaz de prosperar de modo chocante caso acenda no público a curiosidade pelo secreto: informações ocultas, conspirações macabras, um inimigo fantasmático. Hannah Arendt observava que essa forma de propaganda se radicaliza na mentira política para encontrar um modo de explicação para aquilo que é imprevisível num mundo que não tem nada de coerente. Também sublinhou a principal característica do mecanismo que sustenta o foco da mentira mobilizada pela propaganda: sua obsessão por movimento. O ritmo daquilo que é divulgado não pode perder a velocidade para que a falsificação se mantenha como deve ser: indefinida e instantânea, abstrata e fluida.

Em 1951, era evidentemente impossível supor as interações intensas que a tecnologia digital propiciaria à mentira e como isso modificaria seu uso na política em nosso tempo. Também era impossível, exceto talvez no campo ficcional, descrever a vasta solidão de pessoas que, incapazes de viver experiências próprias, limitam­-se a compartilhar suas fantasias e se comunicam umas com as outras por mensagem de texto restrita a um número determinado de palavras ou ao aperto de um botão. Hannah Arendt podia até ser catastrofista em certas análises, sobretudo sobre o que tornava o mundo miserável. Contudo, ela não estava pronta para imaginar a velocidade, o alcance e a eficácia da mentira em tempos de redes sociais. Arendt refletiu detalhadamente sobre as razões que levam as pessoas a procurar apenas o que querem ouvir. Mas certamente não considerou a possibilidade de meios tecnológicos serem preparados para criar um ambiente político em que apelos emocionais devidamente manipulados por notícias fraudulentas são misturados e cozidos em um mesmo caldeirão – e arrebatam multidões em nível nunca alcançado pela propaganda convencional.

Notícias fraudulentas costumam ser sensacionais. Ou nos meter medo. Publicadas, dão lucro, tanto na imprensa tradicional quanto no ambiente  virtual, despertam emoções  fortes e desatam no sujeito o ressentimento que o faz se enxergar como vítima de alguém mais poderoso que cometeu contra ele uma injustiça irreparável; por exemplo, a de suprimir seus privilégios históricos. Em uma sociedade de raiz escravista como a brasileira, historicamente violenta e autoritária, e ainda hoje terrivelmente desigual, o ressentimento constrói sua base própria de afetos: desejo de vingança, rancor, raiva, maldade, ciúme, inveja. Essa base afetiva termina por criar um forte sentimento de identidade entre pessoas flagradas na disposição de dar cabo de princípios democráticos  para fazer valer seus interesses. Elas se comportam como se algo lhes tivesse sido roubado  pelo progresso da inclusão social, acreditam que o país precisa ser regenerado por meio da violência eliminatória, e se sentem ameaçadas em suas crenças ou demandas pela expansão do catálogo de direitos – seja quando ele abarca novos direitos, como, por exemplo, o direito a um meio ambiente equilibrado, seja quando adota uma agenda de direitos civis que inclui a fundação de movimentos sociais negros, feministas, ambientalistas,  LGBTQI+, entre outros. O ressentido se aferra à ideia de ter sido destituído de algo, e por essa razão se identifica com o lugar da vítima. Isso eleva a voltagem do radicalismo, faz aflorar a intolerância que nega qualquer divergência e elimina o horizonte da igualdade. Vale anotar: a intolerância está situada na raiz do ódio, outro ingrediente indispensável de uma essência totalitária que pode aflorar em sociedades democráticas.

Quando nos damos conta da amplitude da reflexão de Arendt sobre o aparecimento do totalitarismo no século 20 e suas consequências – a supressão da diferença entre o privado e o público, a negação mais absoluta da liberdade –, compreendemos que, em Washington, os livreiros fizeram a escolha certa. “Pensar sobre o que estamos fazendo” é característico da análise de Arendt, e talvez ela não discordasse se alguém se arriscasse a dizer que esse é o tema central de sua obra. Ela escreveu intensamente sobre as ações humanas e examinou seu resultado a fim de compreender as fontes mais profundas da experiência totalitária – para encontrar as respostas apropriadas. Sempre existe a possibilidade de que a ação, junto a nossa capacidade de resistir e julgar, torne possível a experiência da liberdade – que significa exatamente o oposto do fenômeno totalitário. “Pode até ser que os verdadeiros transes do nosso tempo”, ela especulava, “somente venham a assumir sua forma autêntica – embora não necessariamente a mais cruel – quando o totalitarismo pertencer ao passado”.8 Naturalmente, isso depende do modo como nós estaremos dispostos a experimentar o mundo que nos é comum.

O que protege a liberdade é uma coisa só: nossa capacidade de mobilizar as pessoas em sua defesa. “E quem não pode ser mobilizado pela liberdade, necessariamente não pode ser mobilizado”, avisava Arendt, ainda na década de 1950. Talvez seja essa esperança renitente na capacidade da ação humana que torne urgente a leitura de seus livros nos dias que correm. Sua obra não fornece nenhum instrumento capaz de prever os acontecimentos políticos do nosso tempo, e, convenhamos, nem era esse seu objetivo – ela provavelmente ficaria furiosa com isso. Mas oferece perspectiva. Podemos recorrer aos escritos de Arendt para pensar com eles e encontrar as classes de perguntas que precisam ser feitas, tanto para avaliarmos a oportunidade de produzir uma mudança que reinvista   de sentido o espaço da palavra e da ação – o mundo público, o campo da política –, quanto para manter aceso um clarão de liberdade no meio da escuridão. Os tempos são sombrios em várias partes do mundo, inclusive em nosso país, onde a democracia é uma construção recente e profundamente instável. Não sei o que pensam a respeito os nossos livreiros. Mas desconfio que seja hora de ler, no Brasil, os escritos de Hannah Arendt.

 

NOTAS

  1. Uma versão bastante reduzida do episódio dos livreiros de Washington foi publicada por mim no Blog da Companhia das Letras, em 21.07.2017. Agradeço aos alunos do curso História das Ideias, na UFMG, que durante o 2º semestre de 2018 debateram comigo os temas deste ensaio.

 

  1. Timothy Snyder. Sobre a tirania: 20 lições do século 20 para o presente. Trad. Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 99.

 

  1. Hannah Arendt. “Só permanece a língua materna”. Entrevista a Günter Gaus, no canal 2 da TV alemã, em 28 de outubro de 1964. In: Antonio Abranches (org.). Hannah Arendt. A dignidade da política: ensaios e conferências. Trad. Helena Martins et al. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993, pp. 126 e 132.

 

  1. Hannah Arendt, Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 339.

 

  1. Ibidem, pp. 339­340.

 

  1. Ibidem, p. 511.

 

  1. Ibidem, p. 531.

 

  1. Ibidem, p. 512.

 

REFERÊNCIAS

David Runciman, Como a democracia chega ao fim. Trad. Sergio Flaksman. São Paulo: Todavia, 2018.

Eugênio Bucci, “Pós-fatos, pós-imprensa, pós-política: a democracia e a corrosão da verdade”, mimeo., out. 2017.

Hannah Arendt, “Só permanece a língua materna”. Entrevista a Günter Gaus, no canal 2 da TV alemã, em 28 de outubro de 1964. In: Antonio Abranches (org.), Hannah Arendt. A dignidade da política: ensaios e conferências. Trad. Helena Martins et al. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.

______, Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

______, La Nature du totalitarisme. Paris: Payot, 1990.

Newton Bignotto, “O totalitarismo hoje?”. In: Odílio Alves Aguiar, César Barreira, José Carlos Silva de Almeida e José Élcio Batista (orgs.). Origens do totalitarismo: 50 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

Jean Marabini, Berlim no tempo de Hitler. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Marc Ferro, O ressentimento na história. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Agir, 2009.

Nádia Souki, Hannah Arendt e a banalidade do mal. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

Timothy Snyder, Sobre a tirania: 20 lições do século 20 para o presente. Trad. Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

 

 

A historiadora e cientista política Heloisa Murgel Starling (1956) é coordenadora do Projeto República, um núcleo de pesquisa, documentação e memória, vinculado à UFMG, universidade onde é professora titular de história do Brasil. É autora de Ser republicano no Brasil Colônia e, em parceria com Lilia M. Schwarcz, de Brasil: uma biografia, ambos publicados pela Companhia das Letras. Na serrote #29, publicou o premonitório verbete-ensaio “General”.

Nascido em Florianópolis e radicado em São Paulo, Caco Neves (1983) é artista visual e designer gráfico.

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