O tirano segundo Shakespeare – por Stephen Greenblatt

O tirano segundo Shakespeare

por STEPHEN GREENBLATT

Por que, afinal, um povo submete-se a um tirano? A questão, de triste atualidade, é um leitmotiv da História, de seus momentos mais sinistros, e teve em William Shakespeare um de seus mais finos formuladores. A hipótese é de Stephen Greenblatt em “O tirano segundo Shakespeare”, publicado na serrote #31, em março de 2019.

O ensaio é a introdução a Tyrant: Shakespeare on politics, livrinho curto e denso, lançado em maio de 2018 como uma erudita e sofisticada crítica aos descalabros do governo Donald Trump. Autor de Como Shakespeare se tornou Shakespeare, o professor de Harvard mapeia a discussão do autoritarismo na obra do Bardo, que segundo ele traça um retrato complexo da relação entre a truculência do poder e docilidade do povo assujeitado.    

“Repetidas vezes Shakespeare retratou o ônus trágico dessa submissão – a corrupção moral, o esbanjamento vultoso do tesouro, a perda de vidas – e as medidas heroicas, desesperadas, dolorosas, necessárias para trazer uma nação combalida de volta a um mínimo de sanidade”, escreve Greenblatt.

A série #IMSquarentena reúne ensaios do acervo, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia. 

Detalhe de ilustração de Henry Fuseli para edição de Ricardo III publicada em 1805

Desde o princípio da década de 1590, do começo até o fim de sua carreira, Shakespeare esteve repetidas vezes às voltas com uma questão profundamente inquietante: como pode um país inteiro cair nas mãos de um tirano?

“Um rei governa súditos propensos a aceitá­-lo”, escreveu George Buchanan, influente erudito escocês do século 16, “um tirano governa quem não o quer.” As instituições de uma sociedade livre destinam-­se a se precaver contra os que possam governar, como diz Buchanan, “não para seu país, mas para si mesmos, não levando em conta o interesse público, e sim seu próprio prazer”. Em que circunstâncias, Shakespeare se indaga, instituições tratadas com muito zelo, aparentemente sólidas, enraizadas a fundo, de uma hora para outra se mostram frágeis? Por que grupos tão grandes de pessoas aceitam conscientemente que lhes digam mentiras? De que modo uma figura como Ricardo III ou Macbeth ascende ao trono?

Shakespeare sugeriu que uma desgraça dessas não poderia acontecer sem que houvesse cumplicidade generalizada. Suas peças investigam os mecanismos psicológicos que levam uma nação a abandonar seus ideais e até seu próprio interesse. Por que alguém se deixaria atrair, perguntou­-se ele, por um líder obviamente despreparado para governar, que seja perigosamente impulsivo ou conivente com a corrupção ou indiferente à verdade? Por que, em certas circunstâncias, um indício de falsidade, crueldade ou grosseria não atua como desvantagem fatal, e sim como um chamariz, atraindo ardorosos segui­dores? Por outro lado, por que pessoas altivas e que se respeitam submetem-­se à absoluta desfaçatez do tirano, à sua impressão de poder seguir em frente dizendo e fazendo o que bem queira, à sua espetacular falta de compostura?

Repetidas vezes Shakespeare retratou o ônus trágico dessa submissão – a corrupção moral, o esbanjamento vultoso do tesouro, a perda de vidas – e as medidas heroicas, desesperadas, dolorosas, necessárias para trazer uma nação combalida de volta a um mínimo de sanidade. Há alguma maneira, perguntam as peças, de interromper o deslize para um poder arbitrário e ilegal antes de ser tarde demais, algum meio eficaz para evitar a catástrofe civil que a tirania invariavelmente provoca?

O dramaturgo não estava acusando a então monarca da Inglaterra, Elizabeth I, de ser tirana. Fossem quais fossem as opiniões pessoais de Shakespeare sobre o assunto, o fato é que insinuar uma ideia dessas no palco teria sido um gesto suicida. Desde 1534, quando ainda reinava Henrique VIII, o pai da rainha, referir­-se ao governante como tirano era considerado traição por disposições legais. Para tal crime estava prevista a pena de morte.

Não havia liberdade de expressão na Inglaterra de Shakespeare, nem no palco nem em parte alguma. Em 1597, as apresentações de uma peça alegadamente sediciosa intitulada The Isle of Dogs levaram à detenção e prisão do dramaturgo Ben Jonson e a uma ordem do governo – felizmente não executada – para demolir todos os teatros de Londres. Informantes assistiam aos espetáculos teatrais, ávidos para pleitear uma recompensa por denunciar às autoridades qualquer coisa que pudesse ser entendida como subversiva. Tentativas de refletir criticamente sobre fatos contemporâneos ou sobre figuras de projeção eram particularmente arriscadas.

Como nos regimes totalitários modernos, as pessoas desenvolveram técnicas para falar em código, abordando com algum distanciamento o que para elas era mais importante. Porém não foi somente a prudência que motivou a inclinação de Shakespeare pelos deslocamentos. Ele parece ter percebido que pensava com mais clareza sobre as questões com que seu mundo se preocupava quando, em vez de confrontá­-las diretamente, fazia­-o desde um ângulo oblíquo. Suas peças sugerem que ele podia reconhecer melhor a verdade – apreendê-­la de todo e não morrer por ela – por meio do artifício da ficção ou da distância histórica. Daí o fascínio que sentiu pelo lendário líder romano Caio Márcio Coriolano ou pelo Júlio César histórico; daí o apelo de figuras das crônicas inglesas e escocesas como York, Jack Cade, Lear e, acima de tudo, a quintessência dos tiranos, Ricardo III e Macbeth. E daí também o atrativo de personagens totalmente imaginárias: o sádico imperador Saturnino, em Tito Andrônico; o corrupto substituto Angelo, em Medida por medida; ou o rei paranoico Leontes, em Conto de inverno.

O sucesso popular de Shakespeare dá a entender que muitos de seus contemporâneos sentiam a mesma coisa. Liberta das circunstâncias ao redor, e assim liberta da interminável repetição de clichês sobre patriotismo e obediência, sua escrita pôde ser de impiedosa franqueza. O dramaturgo se manteve, em alto grau, como parte de seu tempo e lugar, dos quais, no entanto, não foi mera criatura. Coisas que antes eram estarrecedoramente obscuras entraram em pleno foco, não tendo ele de se manter calado sobre o que percebia.

De igual modo, Shakespeare compreendeu algo que se revela em nossa própria época quando um acontecimento de grande porte – a queda da União Soviética, o colapso do mercado imobiliário, um surpreendente resultado eleitoral – vem aclarar com estardalhaço um fato desalentador: muitas vezes, nem mesmo aqueles no centro dos círculos mais íntimos do poder têm qual­quer ideia do que está por acontecer. Apesar das estimativas e cálculos que se amontoam em suas mesas de trabalho, das caríssimas redes de espiões, de seus exércitos de especialistas bem pagos, é numa escuridão quase completa que eles permanecem. Olhando das margens, você sonha que, se ao menos pudesse chegar bem perto dessa ou daquela figura­-chave, teria acesso ao verdadeiro estado da situação e saberia que passos deveria dar para proteger a si mesmo e a seu país. Mas o sonho é uma ilusão.

No início de uma de suas peças históricas, Shakespeare introduz a figura de Rumor, cuja tarefa, num figurino “cheio de línguas pintadas”, é pôr em incessante circulação histórias “sopradas por suspeitas, invejas, conjecturas” (Henrique IV, parte 2, prólogo, linha 16). Dolorosamente se evidenciam seus efeitos em sinais de interpretação errônea e desastrosa, consolações enganadoras, alarmes falsos, guinadas bruscas que vão da arrebatada esperança ao desespero suicida. E as personagens mais enganadas são os poderosos e privilegiados, não a reles multidão.

Para Shakespeare, portanto, era mais fácil pensar com clareza quando o ala­rido das línguas tagarelas cessava, como mais fácil era dizer a verdade a uma distância estratégica do momento presente. O ângulo oblíquo permitia­-lhe suspender as premissas falsas, as crenças consagradas pelo tempo e os sonhos mal orientados de religiosidade para observar atentamente o que havia por baixo. Daí seu interesse pelo mundo da antiguidade clássica, ao qual a fé cristã e a retórica monárquica não se aplicam; seu fascínio pela Britânia pré-cristã de Rei Lear ou de Cimbelino; seu envolvimento com a violenta Escócia do século 11 em Macbeth. Até quando mais se aproximou de seu próprio mundo, na notável sequência de peças históricas que se estendem, no século 14, do reinado de Ricardo II à queda de Ricardo III, Shakespeare teve o cuidado de manter pelo menos todo um século entre ele mesmo e os fatos que relata.

Na época em que ele estava escrevendo, Elizabeth I já era rainha havia mais de 30 anos. Embora às vezes ela pudesse ser difícil, ríspida e autoritária, seu respeito fundamental pela santidade das instituições políticas do reino não costumava ser posto em dúvida. Mesmo os que defendiam uma política externa mais agressiva ou clamavam por medidas mais enérgicas contra a sub­versão interna reconheciam sua prudente compreensão dos limites de seu poder. É bem pouco provável que Shakespeare a tomasse, mesmo nos pensamentos mais íntimos, por tirana. Contudo não lhe faltavam razões, como ao restante de seus compatriotas, para se preocupar com o que vinha pela frente. Em 1593, a rainha celebrou seu sexagésimo aniversário. Solteira e sem filhos, obstinadamente ela se recusava a indicar um sucessor. Estaria pensando que ia viver para sempre?

Para os dotados de imaginação, não era só o furtivo ataque do tempo que causava preocupações. Havia um amplo temor de que o reino enfrentava um inimigo implacável, uma cruel conspiração internacional cujos líderes treinavam e depois despachavam para o exterior fanáticos agentes secretos incumbidos de propagar o terror. Tais agentes acreditavam que a matança de pessoas rotuladas de infiéis não era pecado; pelo contrário, o que eles faziam era obra de Deus. Na França, nos Países Baixos e em outras partes, já tinham sido responsáveis por assassinatos, explosões de violência na plebe e colossais massacres. Na Inglaterra, seu objetivo imediato era matar a rainha, coroar no lugar dela um de seus simpatizantes e submeter o país à sua própria visão de religiosidade. Seu objetivo supremo era a dominação mundial.

Não era fácil identificar os terroristas, já que a maioria deles havia crescido no país. Radicalizados, atraídos para campos de treinamento no exterior e de­pois retornando clandestinamente à Inglaterra, eles se misturavam facilmente à massa de súditos comuns e leais. Compreende-­se que tais súditos relutassem em denunciar seus próprios parentes, mesmo os que fossem suspeitos de nutrir opiniões perigosas. Os extremistas organizavam células, rezando juntos em segredo, trocando mensagens codificadas e indo à cata de outros recrutas semelhantes, em grande parte conquistados na população de jovens instáveis e rebeldes, propensos a sonhos de violência e martírio. Havia extremistas em contato clandestino com representantes de países estrangeiros que insinuavam uma invasão por navios e o apoio a levantes armados.

O perigo deixava em alerta máximo o serviço de espionagem inglês, que infiltrava agentes secretos nos campos de treinamento, violava sistematicamente correspondências, punha-­se à escuta de conversas em tabernas ou estalagens e fiscalizava com extremo rigor os portos e as fronteiras. Era difícil, porém, erradicar o perigo, mesmo quando as autoridades conseguiam pôr as mãos em um ou mais suspeitos de terrorismo, interrogando-­os sob juramento. Afinal, eles eram fanáticos, preparados por seus líderes religiosos para enganar e instruídos no que se chamava de “ambiguidade”, um método de desorientar sem tecnicamente mentir.

Mesmo se interrogados sob tortura, como rotineiramente acontecia, com frequência eles eram duros na queda. Segundo um relatório enviado ao espião-­mor da rainha, o extremista que em 1584 assassinou o príncipe de Orange da Holanda – o primeiro homem a matar um chefe de Estado com arma de fogo – manteve-­se incrivelmente obstinado:

Na mesma noite ele foi surrado com cordas e teve a carne lanhada com cálamos de penas, depois do que foi posto num barril com água e sal, sendo sua garganta entupida de vinagre e conhaque; não obstante esses tormentos, não deu nenhum sinal de arrependimento ou de dor; pelo contrário, ele disse que tinha praticado um ato aceitável por Deus.

“Um ato aceitável por Deus”: essas pessoas eram submetidas a uma lavagem cerebral para acreditar que seriam recompensadas no céu por seus atos de deslealdade e violência.

A ameaça em questão, segundo os zelosos protestantes da Inglaterra no final do século 16, era o catolicismo romano. Para a grande aflição dos principais conselheiros da rainha, a própria Elizabeth hesitava em dar nome à ameaça e em tomar as medidas que eles consideravam necessárias. A soberana não queria provocar uma guerra sangrenta e cara contra poderosos países católicos, nem manchar por inteiro, com os crimes de alguns fanáticos, toda uma religião. Contrária, nas palavras de seu espião-­mor Francis Walsingham, “a abrir janelas nos corações e pensamentos secretos dos homens”, por muitos anos ela permitiu que seus súditos mantivessem na surdina crenças católicas, desde que externamente eles se adaptassem à religião oficial do Estado. E, a despeito de insistentes apelos, seguidas vezes ela se negou a sancionar a execução de sua prima católica, Mary, a rainha dos escoceses.

Expulsa da Escócia, Mary estava sendo mantida, sem acusação nem julga­mento, numa espécie de prisão preventiva no norte da Inglaterra. Como tinha forte direito hereditário ao trono inglês – mais forte, segundo alguns, que o da própria Elizabeth –, ela era o foco óbvio para as maquinações das potências católicas da Europa e para os exagerados devaneios e conspirações perigosas dos extremistas católicos dentro do país. A própria Mary era estouvada o bastante para chegar a aprovar, em favor de sua causa, planos sinistros.

O idealizador desses planos, conforme muitos acreditavam, não era outro senão o papa em Roma; suas forças especiais eram os jesuítas, que juravam obedecê-­lo em tudo; e suas legiões ocultas na Inglaterra eram os milhares de “papistas da igreja”, que obedientemente assistiam aos ofícios anglicanos, embora nutrissem nos corações sua fidelidade ao catolicismo. Quando Shakespeare chegava à idade adulta, rumores sobre os jesuítas (oficialmente proibi­dos de entrar no país, sob pena de morte) e as ameaças postas por eles circulavam amplamente. Em número, podem ter sido na realidade poucos, mas o medo e a aversão que eles causavam – junto com admiração clandestina em certos redutos – eram consideráveis.

É impossível determinar com alguma certeza para onde tendiam as simpatias mais íntimas de Shakespeare. Mas ele não pode ter sido neutro nem indiferente. Tanto seu pai quanto sua mãe tinham crescido num mundo católico, e para ambos, como para a maioria de seus contemporâneos, os vínculos com aquele mundo sobreviveram à Reforma. Havia razões de sobra para circunspecção e cautela, não apenas devido às severas punições impostas pelas autoridades protestantes. A ameaça à Inglaterra, atribuída ao catolicismo militante, de modo algum era inteiramente imaginária. Em 1570, o papa Pio V promulgou uma bula que excomungava Elizabeth como herege e “serva do crime”. Os súditos da rainha não só se livravam de eventuais compromissos já assumidos com ela, como solenemente eram também instados, de fato, a desobedecer. Uma década depois, o papa Gregório XIII sugeriu que matar a rainha da Inglaterra não seria um pecado mortal. Pelo contrário, como declarou o secretário de Estado papal que foi porta­-voz de seu chefe, “não há dúvida de que qualquer um que a mande para fora do mundo, com a pia intenção de fazer a obra de Deus, não só não peca, como também tem mérito”.

Tal declaração era um incentivo ao assassinato. Embora os católicos ingleses, em sua maioria, não quisessem compactuar com medidas tão violentas, alguns poucos se apegaram à ideia de tentar livrar o país da soberana herege. Em 1583, a rede de espionagem do governo descobriu uma conspiração, que envolvia o embaixador espanhol, para assassinar a rainha. Ao longo dos anos seguintes houve casos comparáveis de perigos evitados por pouco: cartas intercepta­das, armas apreendidas, padres católicos capturados. Alertados por vizinhos desconfiados, policiais fariam buscas em refúgios rurais, onde arrombariam armários, bateriam nas paredes à cata de suspeitos sons de oco e arrancariam tábuas do assoalho com a intenção de achar, como eram chamados, os “buracos de padres”. Mas mesmo assim Elizabeth nada fez para eliminar a ameaça representada por Mary. “Deus abra os olhos de Sua Majestade”, implorava Walsingham, “para ela ver em que perigo se encontra.”

O círculo íntimo da rainha tomou a decisão altamente irregular de redigir um “pacto de associação”, cujos signatários se comprometiam a vingar­-se não só de qualquer um que atentasse contra a vida da soberana, mas também de qualquer pretendente em potencial ao trono – o alvo óbvio era Mary – em cujo interesse tal tentativa, tivesse êxito ou não, fosse feita. Em 1586, Walsingham veio a saber de um novo complô. Dessa vez a trama envolvia um rico cavalheiro católico de 24 anos, chamado Anthony Babington, que se persuadira, junto com um grupo de amigos de idêntica convicção, de que matar a “tirana” era moralmente aceitável. Usando agentes duplos que tinham se infiltrado no grupo e decifrado seus códigos secretos, as autoridades se mantiveram vigilantes, à espera de que a conspiração se desenvolvesse aos poucos. Na realidade, quando Babington começou a dar para trás, um dos agentes provocadores de Walsingham incentivou-­o a ir em frente. E a estratégia rendeu o dividendo que era mais cobiçado pelos protestantes da linha dura: além de pegar 14 conspiradores que, depois de condenados por traição, foram enforcados e puxados por cavalos para serem esquartejados, a armadilha acabou apanhando a própria Mary, conivente e descuidada.

Como o assassinato de Osama Bin Laden em 2011, a decapitação de Mary, em 8 de fevereiro de 1587, não pôs fim à ameaça de terrorismo na Inglaterra, que também não findou com a derrota da esquadra espanhola, a Invencível Armada, no ano seguinte. Mas não há dúvida de que a atmosfera no país se tornou sombria. Outra invasão estrangeira parecia iminente. Os espiões do governo prosseguiram com seu trabalho; os padres católicos continuaram a se aventurar pela Inglaterra e a pregar para seus rebanhos cada vez mais cerceados e desesperados; e ainda se propalavam alarmantes rumores. Um trabalhador foi forçado a postar­-se ao pelourinho, em 1591, por haver dito: “Nunca teremos um mundo feliz enquanto essa rainha for viva”; outro recebeu punição idêntica por declarar que “o governo sob o qual agora vivemos não é bom… Se a rainha morrer, haverá uma mudança, e todos os que são da religião praticada hoje serão postos para fora”. No julgamento por traição de sir John Perrot, em 1592, veio à baila a grave acusação de que ele havia se referido à rainha como “mulher vulgar, bastarda e desleixada”. Na Câmara das Estrelas,1 o lorde à frente dos trabalhos queixou-­se de “irreverentes manifestações em público” e de todos os “libelos falsos, mentirosos, traiçoeiros” que circulavam em Londres.

Ainda que imprudentes conversas que se aproximassem demais de traição pudessem de algum modo ser deixadas de lado, restava, para causar preocupações, o problema sucessório. A esplendorosa peruca vermelha da rainha e seus extravagantes vestidos cobertos de pedrarias não conseguiam disfarçar a passagem dos anos. Ela tinha artrite e falta de apetite e já começava a se apoiar numa bengala para subir escadas. Era uma senhora, como seu cortesão sir Walter Raleigh colocou delicadamente a questão, “surpreendida pelo Tempo”. Entretanto não indicava um sucessor.

A Inglaterra elisabetana, em seu final, soube em seu íntimo quão extrema era a fragilidade de toda a ordem das coisas. A ansiedade não se restringia jamais à pequena elite protestante, empenhada em preservar sua dominação. Católicos cerceados tinham garantido por anos que a rainha vivia rodeada de políticos maquiavélicos, cada qual manobrando constantemente para favorecer interesses de sua facção, estimulando os medos paranoicos de conspirações católicas e esperando pelo momento crítico em que ele pudesse arrebatar para si o poder tirânico. Puritanos descontentes tinham um leque comparável de medos, focados numa relação similar de personagens. Qualquer pessoa preocupada com a situação religiosa do país, com suas relações internacionais, com a distribuição da riqueza ou a possibilidade de uma guerra civil – em suma, quase todos os que estivessem plenamente conscientes na década de 1590 – deve ter pensado no estado de saúde da rainha e conversado sobre os favoritos rivais, os conselheiros da corte, a ameaça de invasão espanhola, a presença clandestina de jesuítas, a agitação dos puritanos (chamados então de brownistas) e outros motivos de alarme.

A maioria das conversas tinha de ser decerto em sussurros, mas o tempo todo elas iam sendo travadas, no eterno rumo obsessivo, sempre ao redor da mesma coisa, que as discussões políticas costumam tomar. Repetidas vezes Shakespeare retratou personagens secundários – os jardineiros em Ricardo II, anônimos londrinos em Ricardo III, soldados na véspera da batalha em Henrique V, plebeus à míngua em Coriolano, subalternos cínicos em Antônio e Cleópatra, e tantos outros – a compartilhar rumores e debater questões de Estado. Reflexões assim entre o povo sobre seus superiores tendiam a enfurecer a elite: “Vão-­se embora para casa, seus cacos de coisas!” (Coriolano, I. 214), berra um aristocrata para um grupo que se ajuntava em protesto. Mas não há como silenciar cacos de coisas.

Nenhuma das preocupações com a segurança nacional da Inglaterra, primordial ou secundária, podia ser representada diretamente no palco. As companhias teatrais que prosperavam em Londres procuravam com afinco assuntos arrebatadores e teriam adorado atrair plateias com algo equivalente à série de TV Homeland. Mas o teatro elisabetano era censurado e, embora de vez em quando o censor pudesse ser negligente, nunca ele permitiria a encenação   de enredos que representassem ameaças ao regime da rainha, muito menos     a personificação em público de figuras como Mary, a rainha dos escoceses, Anthony Babington ou a própria Elizabeth.

Inevitavelmente a censura gera técnicas de evasão. Como a mulher de Midas, pessoas sentem-­se compelidas a falar, mesmo que apenas para o vento e os caniços, sobre o que quer que seja que as inquiete a fundo. As companhias teatrais, em acirrada disputa umas com as outras, tinham forte apelo econômico para se dirigir a essa compulsão. E descobriram que era possível fazê-­lo se a cena mudasse para lugares distantes ou se fatos do passado remoto fossem representados. Em raras ocasiões, o censor julgava os paralelos muito óbvios, ou pedia provas de que os fatos históricos estavam sendo corretamente expostos, mas na maioria das vezes ele fechava os olhos para o subterfúgio. Talvez as autoridades reconhecessem que uma válvula de escape era necessária.

Shakespeare foi o mestre supremo do deslocamento e do estratégico procedimento indireto. Nunca escreveu “comédias da cidade”, como eram chama­das as peças em ambientes ingleses contemporâneos, e manteve uma distância prudente, com muito poucas exceções, dos fatos de sua época. Foi atraído por tramas que se desdobravam em lugares como Éfeso, Tiro, Ilíria, Sicília, Boêmia ou numa ilha misteriosa e sem nome em mar remoto. Quando ele se envolveu com conturbados fatos históricos – crises de sucessão, eleições corruptas, assassinatos, ascensão de tiranos –, tratava-­se de fatos acontecidos na Grécia e na Roma antigas, na Britânia pré­-histórica ou na Inglaterra de seus trisavôs e até antes. Sentiu­-se livre para alterar e remodelar os materiais que extraiu de velhas crônicas, a fim de produzir argumentos mais convincentes e oportunos, mas trabalhou com fontes identificáveis, as quais, caso fosse intimado pelas autoridades, ele poderia mencionar para defender­-se. Compreende­-se que não quisesse se arriscar a passar temporadas na cadeia ou ter o nariz cortado.

Houve uma única exceção notável em sua estratégia de procedimento indireto, mantida por toda a vida. Henrique V, que Shakespeare escreveu em 1599, descreve o espetacular triunfo militar, quase dois séculos antes, de um exército inglês que tinha invadido a França. Já quase no fim da peça, um coro solicita à plateia imaginar a recepção gloriosa dada ao rei vitorioso quando ele retorna à sua capital: “Vejam/ Na rápida forja e oficina do pensamento/ Como Londres despeja seus cidadãos”. E então, logo após essa imagem de uma celebração popular no passado da nação, o coro evoca uma cena comparável que espera poder testemunhar no futuro próximo:

Se agora o General de nossa clemente Imperatriz

Viesse da Irlanda, como a bom tempo ele pode,

Trazendo a rebelião fincada em sua espada,

A quantos a cidade em paz liberaria

Para dar­-lhe as boas­-vindas!

O “General” em questão era o conde de Essex, um favorito da rainha, que naquele momento conduzia tropas inglesas contra os revoltosos irlandeses chefiados por Hugh O’Neill, conde de Tyrone.

Não está claro por que Shakespeare decidiu referir­-se diretamente a um fato contemporâneo – e um fato que só poderia ser desejado “a bom tempo”. Talvez ele fosse instado a fazê­-lo por seu patrono, o abastado conde de Southampton, a quem Shakespeare havia dedicado seus poemas “Vênus e Adônis” e “O rapto de Lucrécia”. Amigo íntimo e aliado político de Essex, Southampton sabia que esse amigo vaidoso e cheio de dívidas cortejava com avidez a aclamação popular, e o teatro era o local perfeito para atingir as massas. Por conseguinte, ele pode ter insinuado a Shakespeare que uma antecipação patriótica do iminente triunfo do general seria muito bem­-vinda. Para o dramaturgo, teria sido difícil recusar.

E o que aconteceu, pouco depois da primeira encenação de Henrique V, foi que o teimoso Essex retornou de fato a Londres, mas não com a cabeça de Hugh O’Neill espetada em sua espada. Diante do abjeto fracasso de sua  campanha militar, ele se deu por vencido e abandonou a Irlanda, contra as ordens explícitas da rainha para que lá permanecesse. Tinha resolvido voltar para casa.

Desdobrou­-se então toda uma série de acontecimentos que geraram rapidamente uma crise no próprio centro do regime. O retorno precipitado e in­desejável de Essex – ainda respingado de lama, ele irrompeu perante a rainha, atirando-­se a seus pés e reclamando aos berros daqueles que o odiavam – deu a seus grandes inimigos na corte – Robert Cecil, o principal ministro de Elizabeth, e Walter Raleigh, um de seus favoritos – a oportunidade pela qual eles ansiavam havia muito. Levando a pior nas manobras e cada vez mais abalado, o conde viu que o favor que lhe dispensava a rainha pouco a pouco deixava de existir. Sempre incapaz de se controlar, ele cometeu o erro fatal de afirmar num rompante que a rainha tinha ficado “velha e necrosada” e que sua mente “se tornara tão torta quanto sua carcaça”.

Forçosamente o ambiente cortesão origina facções em feroz competição, que de maneira brilhante Elizabeth tinha jogado umas contra as outras, durante anos. Porém, com sua debilidade crescente, as velhas inimizades se aguçaram e se tornaram mortais. Quando o Conselho Privado convocou Essex para uma reunião sobre negócios de Estado, ele se negou a ir, declarando que seria assassinado por ordens de Raleigh. Seu emaranhado de aversão e medo, associado a uma confiança ilusória de que o populacho de Londres se ergueria para apoiá-­lo, acabou levando Essex a preparar um levante armado contra os conselheiros da rainha e talvez contra ela própria. Mas o levante fracassou de modo deplorável. Essex e seus principais aliados, incluindo o conde de Southampton, foram presos.

Raleigh pressionou Cecil, que esteve à frente do inquérito oficial, a não deixar escapar essa oportunidade de ouro para destruir de uma vez por todas seu odiado inimigo: se você “se compadecer desse tirano”, escreveu ele, “irá se arrepender quando for tarde demais”. “Tirano”, aqui, é algo mais do que um insulto fortuito. Raleigh dá a entender que, se Essex viesse a recuperar sua preeminência, estaria em condições de dominar o reino, dada a idade avançada da rainha, e ele sem dúvida prescindiria de sutilezas legais. Estaria ansioso para se livrar de seus inimigos – o que não significaria pedir­-lhes polidamente que saíssem de cena. Faria, isto sim, o que os tiranos fazem.

Depois de Cecil concluir seu inquérito, Essex e Southampton foram leva­dos a julgamento, culpados de alta traição e condenados à morte. A pena de Southampton foi convertida em prisão perpétua, mas não houve clemência para quem tinha sido outrora um favorito da rainha. Essex foi executado em 25 de fevereiro de 1601. O governo providenciou para que a confissão abjeta que ele supostamente fez no patíbulo – tinha planejado o traiçoeiro levante, disse, e agora era “simplesmente expelido do reino” – fosse devidamente divulgada depois de sua morte.

Shakespeare foi tolo ao se aproximar tanto assim dessas contendas malévolas. Sua referência contemporânea e tão pouco característica ao “General”, em Henrique V, não parece ter provocado uma resposta oficial, mas poderia facilmente ter conduzido à desgraça. Pois que na véspera da tentativa de golpe, um sábado, 7 de fevereiro de 1601, um grupo dos principais apoiadores de Essex, entre os quais seu administrador, sir Gelly Meyrick, tomara um barco para atravessar o Tâmisa e ir ao Globe Theatre. Alguns dias antes, os cúmplices mais chegados a Meyrick tinham pedido à companhia que atuava então nesse teatro, a Lord Chamberlain’s Men, a encenação de uma peça anterior de Shakespeare, a peça sobre “a deposição e assassinato do rei Ricardo II”. Os atores objetaram; Ricardo II era uma peça velha, disseram eles, não sendo provável que atraísse grande público. Mas sua objeção caiu por terra quando lhes foram oferecidos 40 xelins a mais do que o valor de dez libras que eles normalmente cobravam por um espetáculo sob encomenda.

Mas por que Gelly Meyrick e os outros estavam tão ansiosos para ter Ricardo II em cena? Isso não foi um vão impulso momentâneo; numa conjuntura crítica, sabendo eles que vida e morte estavam em jogo, custou-­lhes planejamento, tempo e dinheiro. Muito embora não tenham deixado um registro de seu raciocínio, presumivelmente eles se lembravam de que essa peça de Shakespeare retratava a queda de um governante e seus parceiros. “Eu perdi tempo,  e agora é o tempo que me perde”, lamenta­-se o rei condenado, depois de seus vorazes conselheiros (“as lagartas dos bens comunitários”, como o usurpador os chama) encontrarem o destino que Essex desejava impor a Cecil e Raleigh.

Em Ricardo II, não são apenas os conselheiros do rei que são mortos pelo usurpador, é o próprio rei. O usurpador, Bolingbroke, jamais expressa de maneira direta sua intenção de derrubar o monarca, menos ainda de assassiná-­lo. Tal como Essex, ele se atém, sobretudo, enquanto esbraveja contra a corrupção no círculo íntimo do governante, à injustiça feita à sua própria pessoa. Mas, tendo tramado a abdicação e prisão de Ricardo, e conseguindo coroar a si mesmo como o rei Henrique IV, ele se move com ardilosa imprecisão – a imprecisão que confere o que os políticos chamam de “denegação” – para dar o último passo essencial. Adequadamente, Shakespeare não representa esse movimento de maneira direta. Limita-­se a mostrar, em vez disso, alguém que reflete sobre o que ouviu o rei dizer:

EXTON: Tu não notaste as palavras que foram ditas pelo Rei?: “Nenhum amigo tenho eu para livrar­-me deste medo que existe?” Não foi assim?

CRIADO: Foram estas suas próprias palavras.

EXTON: “Nenhum amigo tenho eu?”, disse ele. E o falou duas vezes,

Nisto duplamente insistindo, não foi?

CRIADO: Foi sim.

EXTON: E, falando isto, atentamente ele olhou para mim,

Como quem fosse dizer: “Eu gostaria que tu fosses o homem

A afastar de meu coração este pavor”,

Dando a entender o Rei em Pomfret. Venha, vamos lá.

Eu sou o amigo do Rei e eliminarei seu inimigo.

A isso a cena se resume. Ela termina num instante, suficiente, porém, para evocar todo um clima de força em ação. Nenhum processo legal é formalmente aberto contra o rei deposto. Tudo o que se faz necessário, em lugar disso, é uma insinuação de sentido oculto, cuidadosamente repetida e associada a olhares dirigidos com preocupação (“atentamente”) a alguém que talvez possa entender o que a insinuação significa.

Sempre há pessoas, num novo regime, capazes de fazer qualquer coisa para granjear o favor do governante. Exton, tal como o retrata Shakespeare, é uma pessoa insignificante; essa é a primeira vez que o ouvimos ou vemos. Ele há de se empenhar em tornar-­se “o amigo do rei”. “Vamos”, diz para seus sequazes, e sem tardar Ricardo é morto. De modo bem previsível, quando Exton vem avidamente buscar sua recompensa – “Dentro deste caixão, ó Grande Rei, eu oferto/ Teu medo extinto” –, Bolingbroke o repudia: “Muito embora eu o quisesse morto,/ Odeio o assassino e amo-­o assassinado”. Com essa ironia deliciosamente amarga, “amo-­o assassinado”, a peça chega ao final.

Gelly Meyrick e seus cúmplices na conspiração decerto não precisavam consultar a peça de Shakespeare como um esquema prévio para suas próprias ações. Devem ter entendido que as circunstâncias descritas pelo dramaturgo não se alinhavam de modo claro com as deles; fosse como fosse, não terão querido dizer o que iriam fazer. E, para um leitor moderno, a exploração na tragédia da dolorosa vida interior do monarca destronado parece muito distante de uma peça de propaganda que tencionasse incitar a multidão a se rebelar.

Entretanto é na multidão que deve estar a chave do enigma. Em geral, espetáculos por encomenda eram montados em palcos particulares, diante de plateias seletas, mas o grupo Lord Chamberlain’s Men foi pago para reviver Ricardo II e apresentá-­la no grande teatro público ao ar livre, onde a maioria dos espectadores pagava um centavo para assistir ao espetáculo em pé. Essex tinha sempre cortejado e contado com o apoio da multidão londrina, o populacho que Shakespeare instou sua audiência a imaginar se precipitando para saudar seu general que retornava em triunfo da Irlanda, como o glorioso Henrique V retornara da França. As coisas não saíram assim, mas com Ricardo II os conspiradores devem ter percebido que havia um benefício a ser ganho em representar para um grande público (e quem sabe também para eles mesmos) um bem­-sucedido golpe de Estado. Talvez quisessem, pura e simplesmente, tornar imaginável o que pretendiam fazer.

Por disposições legais que remontavam a 1352, era tido por traição “maquinar ou imaginar” a morte de um rei ou rainha ou de destacados funcionários públicos. O uso do ambíguo termo “imaginar” deixava ao governo ampla liberdade para decidir a quem processar, e por certo se tornaria evidente que a encenação de Ricardo II no Globe trilhava em terreno por demais perigoso. Afinal de contas, a peça de Shakespeare apresentava para um público popular o espetáculo da derrubada e morte de um rei coroado, junto com a execução sumária dos principais conselheiros do monarca. Os fatos narrados tinham, no entanto, ocorrido no passado da Inglaterra e, por acordo tácito, tal distanciamento no tempo proporcionava certa imunidade. Assim sendo, ações que num ambiente contemporâneo provocariam instantaneamente a violenta fúria do censor e eram capazes de levar a um processo criminal podiam ser representadas sem grande risco para o autor teatral e sua companhia.

Não obstante, o espetáculo providenciado por Meyrick punha em questão o acordo tácito de que aquilo que se mostrava no palco, desde que mantida distância dos fatos contemporâneos, resumia-­se a mero teatro e, portanto, não importava. Pelo contrário, é óbvio os conspiradores de Essex terem pensado que era estrategicamente útil sacudir a poeira da tragédia de Shakespeare sobre o passado medieval da Inglaterra e apresentá-­la no Globe.

É impossível saber o que passou pela cabeça de Meyrick quando, naquela tarde, ele assistiu a Ricardo II, mas sabemos que pelo menos uma pessoa na época compreendeu seu sentido. Seis meses após a execução de Essex, a rainha Elizabeth concedeu uma benévola audiência a William Lambarde, a quem havia pouco ela designara supervisor dos documentos e anais da torre de Londres. O erudito arquivista começou por passar devidamente em revista um inventário dos anais, reinado por reinado, que havia preparado para a rainha. Quando chegou a vez de Ricardo II, Elizabeth declarou de súbito: “Eu sou Ricardo II; o senhor não sabia disso?”. Se sua maneira de se expressar revelava um toque de exasperação, pode ter sido porque o antiquário parecia não meter o nariz senão no passado, enquanto ela, como todos os demais, estava refletindo sobre os obscuros paralelos entre os fatos do século 14 e o golpe tentado por Essex. Pensando de pés no chão, Lambarde logo entendeu que o ponto essencial jazia em “imaginar” a morte do governante. “Uma obra de imaginação tão perversa”, disse ele à rainha, “foi determinada e tentada por um cavalheiro muito maldoso, a criatura mais cheia de atavios jamais concebida por Vossa Majestade.” “Essa tragédia”, Elizabeth respondeu hiperbolicamente, “foi representada 40 vezes em ruas e casas abertas.” Era o teatro – o teatro de Shakespeare – que fornecia a chave para compreender a crise do presente.

A alusão direta de Shakespeare ao conde de Essex, em Henrique V, chamou a atenção para inquiridoras reflexões políticas ao longo de suas peças, reflexões que ficavam mais seguras se deixadas nas sombras. A rainha, que muitas vezes havia patrocinado espetáculos na corte, preferiu não punir os atores, como lhe seria fácil ter feito, e o que poderia tornar­-se uma desgraça para Shakespeare e toda sua companhia foi evitado por pouco. Nunca mais o dramaturgo se aventurou tão perto da política contemporânea.

Na esteira da tentativa de golpe, a montagem especial de Ricardo II veio a ser foco de investigação do governo. Um dos associados de Shakespeare foi intimado a prestar declarações ante o Conselho Privado e a explicar o que a Lord Chamberlain’s Men pensara estar fazendo. A resposta dele – simplesmente ganhar algum dinheiro extra – foi aceita. Mas sir Gelly Meyrick não teve a mesma sorte. Condenado sob a acusação de providenciar o espetáculo especial, bem como por outras ações em apoio à rebelião, ele foi enforcado e puxado por cavalos para ser esquartejado.

 

NOTA

  1. Star Chamber, antiga corte inglesa, abolida pelo Parlamento em 1641, que se reunia em segredo e julgava sem júri, malvista pelo uso de métodos inquisitoriais e assim chamada por sua sala de reuniões ser pintada de estrelas. [N. do T.]

 

Stephen Greenblatt (1943) é historiador e um dos mais conceituados especialistas na obra de William Shakespeare. É autor de Como Shakespeare se tornou Shakespeare, A virada – O nascimento do mundo moderno e Ascensão e queda de Adão e Eva, todos publicados pela Companhia das Letras. Este ensaio abre seu livro mais recente, Tyrant – Shakespeare on Politics, recebido como uma resposta erudita aos desmandos da Era Trump.

Tradução de Leonardo Fróes

2 respostas para O tirano segundo Shakespeare – por Stephen Greenblatt

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