A política do amigo e do inimigo – por Jason Stanley

A política do amigo e do inimigo

por JASON STANLEY

Um regime fascista não tem opositores: tem inimigos. E eles se multiplicam na medida em que divergem dos donos do poder – que no mesmo movimento reafirmam também seu círculo de “amigos”, definidos pelo grau de adesão incondicional a seus princípios. Foi assim na Alemanha nazista e, segundo Jason Stanley, é assim nos Estados Unidos de Donald Trump e nos governos que o seguem.

Professor de Yale, especializado em filosofia da linguagem, Stanley é autor de Como funciona o fascismo (L&PM) e defende esta tese no ensaio abaixo, escrito com exclusividade para a serrote#34. “Uma estrutura narrativa bem-sucedida, que procura implementar a nítida distinção amigo/inimigo com frequência”, escreve Stanley, “tem a capacidade de fortalecer a si mesma, fazendo com que as pessoas por ela guiadas tomem as provas contra tal distinção como comprovação adicional de sua veracidade”.

No dia 14 de março, na véspera de decretação das primeiras medidas de distanciamento social, Jason Stanley esteve em São Paulo como convidado do 3o Festival serrote, participando de um debate com o sociólogo Celso Rocha de Barros, mediado pelo jornalista Fernando Barros e Silva, no Instituto Moreira Salles. O debate completo pode ser visto neste vídeo.

A série #IMSquarentena reúne ensaios do acervo, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia. 

 

Na base da ideologia fascista existe uma distinção fundamental entre amigo e inimigo. O ideólogo fascista apresenta-se como o protetor de seus apoiadores contra um inimigo dotado de uma malevolência quase inimaginável. Esse inimigo é uma ameaça aos valores básicos da civilização. Neste curto ensaio, valendo-me da obra do historiador do fascismo Federico Finchelstein, explicarei como a dicotomia amigo/inimigo ilumina a conturbada relação da ideologia fascista com a realidade.

Os movimentos fascistas proclamam defender a tradição – com frequência a tradição religiosa, seja ela o cristianismo, o hinduísmo ou o judaísmo – de uma ameaça existencial contra o código moral da civilização. Os inimigos são os liberais, os intelectuais, os comunistas, as feministas, os homossexuais, grupos étnicos desprezados ou minorias religiosas que supostamente cooperam entre si para destruir os valores religiosos tradicionais e patriarcais. Esse inimigo é retratado de forma monstruosa – como se estivesse engajado na tentativa de subverter as instituições e os meios de comunicação do país, numa espécie de conspiração que envolve os piores criminosos imagináveis.

Vejamos o que o ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels, diz no discurso “O comunismo desmascarado”, no Congresso Anual do Partido Nazista, em 13 de setembro de 1935:

O bolchevismo está explicitamente decidido a criar uma revolução em todas as nações. Em seu âmago, ele abriga uma tendência agressiva e internacional. Mas o nacional-socialismo está circunscrito à Alemanha, e não é um produto de exportação, seja em suas características abstratas ou práticas. O bolchevismo nega a religião em princípio, de modo fundamental e por completo. Só reconhece a religião como “o ópio do povo”. No entanto, para apoiar e fortalecer a crença religiosa, o nacional-socialismo faz questão de colocar a fé em Deus em lugar de destaque no seu programa. Mas os bolcheviques conduzem uma campanha, dirigida pelos judeus e em conluio com o submundo internacional, contra a verdadeira cultura. O bolchevismo não é apenas antiburguês: é contra a própria civilização humana.

Levado às últimas consequências, ele significa a destruição de todas as conquistas comerciais, sociais, políticas e culturais da Europa Ocidental, em favor de uma camarilha internacional desenraizada e nômade que encontrou sua representação no judaísmo. Essa tentativa colossal de derrubar o mundo civilizado é muito mais perigosa em seus efeitos, pois o comunismo internacional, que é um mestre na arte da falsidade, foi capaz de angariar protetores e pioneiros entre grande parte dos círculos intelectuais da Europa.

Tomi Ungerer, desenhos do livro “The Underground Sketchbook” (1964) / © 1982, 2020 Diogenes Verlag AG Zurique, Suíça

Nesse discurso, os nazistas são os defensores das “conquistas comerciais, sociais, políticas e culturais da Europa Ocidental”, da religião e, na verdade, da “própria civilização humana” diante da ameaça de “uma camarilha internacional desenraizada e nômade que encontrou sua representação no judaísmo”. Na sequência do discurso, Goebbels se refere às táticas desses inimigos da civilização: “Assassinato de alvos específicos, execução de reféns e grandes massacres são os meios prediletos utilizados pelo bolchevismo para se livrar de toda e qualquer oposição a sua propaganda”. Segue-se uma lista sinistra das atrocidades atribuídas aos judeus bolchevistas.

O discurso de Goebbels está repleto de mentiras. Entretanto, considerar apenas o conteúdo dessas mentiras significa perder de vista o efeito do que foi transmitido. Goebbels diz à plateia: “Os bolcheviques conduzem uma campanha, dirigida pelos judeus e em conluio com o submundo internacional, contra a verdadeira cultura. O bolchevismo não é apenas antiburguês: é contra a própria civilização.” Termos como “cultura” e “civilização humana” são empregados para contrastar com os propósitos e as metas dos judeus bolchevistas.

No lado do bolchevismo e dos judeus, está “o submundo internacional” – o que quer que isso seja. No lado do nacional-socialismo, estão todas as conquistas da Europa e, em verdade, “a própria civilização”. A narrativa de Goebbels pressupõe que a cultura e até mesmo a civilização humana sejam arianas. Os termos contrastantes usados na narrativa de Goebbels fazem parte da desumanização sistemática dos judeus.

Toda conversa tem, como pano de fundo, uma estrutura narrativa. O discurso de Goebbels implica uma estrutura narrativa na qual a cultura e a civilização humana são arianas e, por isso, representam valores diametralmente opostos ao sistema de valores dos judeus. O principal objetivo do discurso não é difundir seu conteúdo, obviamente falso. O principal objetivo é difundir a estrutura narrativa que sustenta o discurso.

Como Tamsin Shaw deixou claro em recente ensaio sobre o procurador-geral dos Estados Unidos, William Barr, encontramos nitidamente essas distinções amigo/inimigo na ideologia e nos discursos dos integrantes do governo Trump.1 Em palestra na Universidade de Notre Dame, em 11 de outubro de 2019, Barr disse:

Os secularistas modernos rechaçam essa ideia da moralidade como uma superstição sobrenatural imposta por um clero “estraga-prazeres”. Na verdade, os padrões morais judaico-cristãos são as mais avançadas normas utilitárias para o comportamento humano. Elas refletem as regras mais adequadas para o homem, não no futuro, mas aqui e agora. São como um manual de instruções de Deus para o melhor funcionamento dos seres humanos e da sociedade. Da mesma forma, as violações a essas leis morais têm consequências perversas no mundo real para os seres humanos e para a sociedade… Basta dizer que a campanha para destruir a ordem moral tradicional vem provocando imenso sofrimento, destruição e tristeza. Apesar disso, as forças do secularismo, ignorando esses trágicos resultados, pressionam com uma militância ainda maior.

 

Barr apresenta o governo Trump como a única esperança contra o crescente secularismo militante dedicado à destruição da ordem moral. No discurso de Barr, os adversários do governo de Trump se opõem à própria civilização. Um dia depois, o presidente Donald Trump fez um discurso no Values Voter Summit2 em que também ecoou Goebbels:

Vocês são os guerreiros nas fronteiras que defendem a liberdade dos Estados Unidos. Estamos reunidos esta noite num momento crucial da história da nação. Nossos valores comuns estão sendo atacados como nunca antes. Radicais da extrema esquerda, tanto dentro como fora do governo, estão decididos a rasgar nossa Constituição e aniquilar as crenças que tanto prezamos. Socialistas da extrema esquerda estão tentando destruir as tradições e os costumes que fizeram dos Estados Unidos a maior nação da Terra. Eles rejeitam os princípios de nossos Pais Fundadores – princípios entronizados na Declaração de Independência, que proclama que nossos direitos provêm do Criador.

 

No discurso, Trump apresenta seus oponentes como “radicais da extrema esquerda” decididos a destruir o tecido moral da civilização. E se propõe como a única solução.

Uma estrutura narrativa bem-sucedida, que  procura  implementar a nítida distinção amigo/inimigo com frequência, tem a capacidade de fortalecer a si mesma, fazendo com que as pessoas por ela guiadas tomem as provas contra tal distinção como comprovação adicional de sua veracidade. Se você está sob a influência de uma narrativa sobre a misteriosa elite comunista global que controla as mídias, quando encontrar nessas mesmas mídias um artigo que comprove a fraude daquela estrutura narrativa, dará ainda mais crédito à hipótese do controle. Em seu livro The Jewish Enemy: Nazi Propaganda during World War II and the Holocaust, Jeffrey Herf escreve que “os nazistas focavam  [a propaganda] na suposta dominação que os judeus exerciam  sobre   a vida profissional alemã, apesar de a realidade desmentir isso”. A despeito do mito antissemita de que os judeus controlavam a imprensa, eles só correspondiam a 5,1% dos editores e escritores. E não fazia o menor sentido afirmar que dominavam as artes: por exemplo, os judeus representavam apenas 2,4% dos artistas visuais. “O baixo número de judeus, sua vulnerabilidade econômica e a falta de influência política não passam de fenômenos superficiais. A verdade é que um número reduzido  de conspiradores  invisíveis,  ocultos nos bastidores, controla os acontecimentos internacionais.” E conseguia que    as aparências superficiais fossem enganosas: segundo Hitler, “os judeus são mestres na arte de enganar”.

A estrutura narrativa dos Protocolos dos Sábios de Sião indica a existência de uma elite secreta global composta de judeus. Eles são leais apenas a outros judeus, e não às nações em que vivem; controlam as mídias, a indústria cultural, as universidades e os bancos. Usam a linguagem do liberalismo e da justiça social de modo hipócrita nas mídias que controlam a fim de, por exemplo, lutar em prol de leis de imigração cada vez mais flexíveis, assim como da igualdade para minorias raciais e sexuais, tudo isso com um único objetivo: destruir a tradição – primeiro, a posição dominante da raça tradicional da nação por meio de casamentos com outras raças ou, pior, estupro; e, segundo, a família tradicional. O objetivo último é o comunismo, incluindo a abolição de toda a propriedade privada.

Se o público já tem essa estrutura narrativa em mente, isso pode ser explorado por meio de diversos tipos de mensagens políticas indiretas. O antissemitismo pode ficar implícito, não sendo necessário mencionar os judeus a quem já assimilou a narrativa: tal pessoa compreenderia que é deles que se trata.

Pode-se também repetir a narrativa substituindo os judeus por outro grupo, talvez muçulmanos. Não é difícil descrever a islamofobia nos Estados Unidos em termos de uma estrutura narrativa na qual os muçulmanos norte-americanos são retratados como uma quinta-coluna leal apenas a outros muçulmanos, e não aos demais cidadãos. Parte dessa narrativa, ecoando os Protocolos dos Sábios de Sião, é que os muçulmanos e seus aliados liberais defendem leis de imigração frouxas em nome da justiça social quando seu verdadeiro propósito é minar o cristianismo. Segundo essa narrativa, a esquerda – os socialistas e gente como eles – se apropriou da causa da igualdade dos muçulmanos e, usando o controle que tem das mídias e das universidades, promove mensagens de justiça social que, na verdade, são ataques à tradição judaico-cristã. É amplamente conhecida a estrutura narrativa dos Protocolos dos Sábios de Sião: existe um grupo oculto que controla as mídias e usa os apelos em favor de princípios universais de justiça como meio de tomar o poder para destruir o grupo dominante – cristãos brancos, por exemplo – e substituí-lo pelo comunismo, pelo socialismo ou até mesmo pela xaria, a lei islâmica. A mesma estrutura pode ser facilmente empregada para atingir outros alvos, como os homossexuais.

No discurso de Goebbels, fica bem evidente que a propaganda nazista apresentava a civilização como um produto ariano e os nazistas como seus únicos defensores contra uma ameaça externa mortal. Em Mein Kampf, Hitler declara que “tudo que admiramos nesta Terra – ciência, arte, habilidade técnica e invenção – é o produto criativo de um pequeno número de nações. […] Toda essa cultura depende delas para continuar a existir. […] Se dividirmos a raça humana em três categorias – fundadores, mantenedores e destruidores de cultura –, só a raça ariana pode ser considerada como representante da primeira categoria.”

Na mesma linha, o fascista francês Guillaume Faye, autor do livro Por que lutamos: manifesto da resistência europeia, publicado em 2001, insiste que “a contribuição da civilização europeia (incluindo seu filho pródigo norte-americano) para a história da humanidade ultrapassa, em todos os domínios, a de todos os outros povos”. E podemos encontrar versões mais amenas dessa ideia sendo defendidas por políticos europeus da extrema direita que, desde então, ganharam respeitabilidade.

Consideremos o conceito de “Iluminismo europeu”, que não tem significado filosófico próprio. Como categoria taxonômica, poderia incluir filósofos tão diferentes quanto Hume e Kant. Algumas de suas figuras, e não apenas Kant, foram os principais proponentes de conceitos que os fascistas rejeitam (sobretudo a dignidade humana universal).

Apesar disso, os políticos europeus da extrema direita sutilmente adotaram a referência ao Iluminismo como forma de contrabandear reivindicações mais descaradas sobre a superioridade europeia. Por exemplo, o prefeito de Antuérpia, Bart De Wever, que defende abertamente a autonomia da região de Flandres, começou a se referir ao Iluminismo como o “software” da “grandiosa narrativa da cultura europeia”. Tomando emprestadas ideias do filósofo britânico Roger Scruton, argumenta que o “Iluminismo europeu” e o nacionalismo são complementares, e não antagônicos. Em De Wever encontramos muito em comum com Faye. Por exemplo, ambos condenam o liberalismo e o socialismo por conduzir a “fronteiras abertas”, “espaços seguros”, “leis que protegem sentimentos” e à dissolução da autoridade dos pais.

A propaganda nazista exibe, sem a menor ambiguidade, alguns dos exemplos mais extremos das narrativas amigo/inimigo. Não há complexidade alguma nos personagens do discurso de Goebbels – os bolcheviques judeus, inimigos jurados da “civilização humana”, são completamente desumanizados. Jeffrey Herf escreve: “Desde a fundação do Partido Nazista até os delírios verbais de Hitler num bunker de Berlim em 1945, os temas básicos das divagações antissemitas do regime tinham a ver com a indignação por se sentir vítima de um inimigo poderoso e maligno, promessas de retaliação e a projeção de intenções agressivas e genocidas contra outros povos”. A pureza das distinções amigo/inimigo na propaganda nazista reflete a centralidade dessa dicotomia em sua estrutura ideológica. O objetivo é que as pessoas sintam medo do inimigo e desejem vingança contra ele.

No âmago do ultranacionalismo fascista se encontra a ideia de que determinado grupo merece gozar de status superior devido a um passado de conquistas e de domínio militar e cultural, enquanto a mistura com outras culturas representa a destruição do seu potencial. No nacional-socialismo, esse tipo de ultranacionalismo tinha fundamento no darwinismo social – a “raça ariana” havia supostamente provado sua superioridade sobre outros grupos por conta de antigos feitos culturais e militares, e a ameaça de miscigenação era uma forma de destruir os arianos e, com eles, a própria possibilidade de existência da cultura e da civilização. Há, porém, outras maneiras de sustentar uma hierarquia de valores além de apelar para um suposto passado vitorioso em disputas militares e culturais. Invocações de um plano divino e outros aspectos da ideologia religiosa podem desempenhar papel semelhante ao que o darwinismo social cumpria no discurso de Hitler. E muitas religiões possuem uma estrutura de autoridade que se assemelha ao papel do líder na ideologia fascista; tais paralelos ideológicos explicam o padrão histórico pelo qual movimentos religiosos conservadores se aliam a movimentos fascistas ultranacionalistas, como vemos agora em países como Índia e Polônia.3 Por isso, podemos falar de versões religiosas de uma ideologia essencialmente fascista, ainda que elas não estejam fundamentadas em conexões pseudocientíficas com o darwinismo social.

Assim como certas religiões têm estruturas autoritárias que espelham estruturas fascistas, podemos ver outras instâncias de analogias claras. O nacional-socialismo reconhecia que os ambientes de trabalho eram em geral organizados de modo hierárquico, com poderes concentrados em um presidente ou um gerente. Na iniciativa privada (assim como nas forças armadas), o nacional-socialismo identificou uma estrutura autoritária familiar que suas políticas podiam explorar com a ajuda da propaganda. Assim como a “ala pró-mercado” do Partido Republicano nos Estados Unidos, os nacional-socialistas consideravam a regulamentação da economia pelo Estado um cerceamento da liberdade.

Os regimes fascistas se distinguem por sua relação conturbada com a verdade, tema do livro de Federico Finchelstein, A Brief History of Fascist Lies.4 Finchelstein lembra aos leitores, logo de saída, que a mentira é endêmica em todos os sistemas políticos, mas argumenta que as mentiras fascistas constituem uma espécie distinta:

As mentiras fascistas, em matéria política, não são nada típicas. A diferença não é uma questão de grau, mesmo que o grau seja significativo. A mentira é uma característica intrínseca ao fascismo, de um modo que não ocorre em outras tradições políticas. Mentir é algo incidental no liberalismo, por exemplo, ao contrário do que ocorre no fascismo. E, quando se trata de embustes fascistas, eles não guardam muita semelhança com outras espécies políticas ao longo da história. Estão situados mais além das formas tradicionais de dissimulação política. Os fascistas entendem que suas mentiras estão a serviço de verdades simples e absolutas – que são, na realidade, mentiras ainda maiores.

 

Consideremos a distinção entre as mentiras de que o governo Bush se valeu para justificar a invasão do Iraque. Aquelas mentiras tinham o objetivo de enganar o público. Numa entrevista na Casa Branca, em 4 de fevereiro de 2003, quando perguntado por um jornalista sobre Saddam Hussein ter negado explicitamente manter qualquer ligação com a Al-Qaeda, o secretário Donald Rumsfeld respondeu: “E Abraham Lincoln era um homem baixo”. Instado a responder diretamente à negativa de Saddam Hussein, ele disse: “Como se pode reagir a isso? É um padrão contínuo. Um mentiroso contumaz falando de novo, e as pessoas repetindo o que ele disse, mas esquecendo de mencionar que ele nunca, quase nunca, diz a verdade.” Aqui, Rumsfeld não diz explicitamente, em termos semânticos, alguma coisa de todo falsa – sua intenção é enganar. Em contraste, a mentira fascista envolve padrões gritantes de inverdade. A mentira fascista – se é mesmo uma forma de mentir – constitui um mecanismo voltado a criar distinções entre “nós” e “eles”.5 Não é uma tentativa de enganar.

A peculiar antipatia do fascismo pela verdade não é um recurso adicional da ideologia. É consequência direta da centralidade, para o fascismo, da distinção amigo/inimigo. A verdade serve como uma espécie de juiz neutro nos debates. Se os participantes respeitam a verdade, sem exceção, a disputa é mais justa para todos. Um debate em que se respeita a verdade raramente ganha os contornos de uma guerra, porque os adversários podem chegar a um acordo mediado por seu respeito mútuo pela verdade. No entanto, para o fascismo, a centralidade da distinção amigo/inimigo implica que a única forma possível de disputa política é a guerra. Numa disputa amigo/ inimigo não há concessão, nem acordo, nem valores comuns. A verdade é a primeira vítima de uma ideologia que coloca em seu centro a guerra entre amigo e inimigo.

 

NOTAS

  1. Tamsin Shaw, “William Barr: The Carl Schmitt of Our Time”, New York Review of Books, 15.01.2020.

 

  1. Encontro de eleitores, ativistas e políticos conservadores realizado anualmente em Washington (EUA). [N. do E.]

 

  1. Isso inclui obviamente os Estados Unidos, onde o padre Coughlin e sua contrapartida protestante fundamentalista, Gerald Burton Winrod, fundador da organização fascista Defensores da Fé Cristã, estiveram no centro do fascismo norte-americano da década de 1930. Ver Bradley Hart, “The Religious Right”, in: Hitler’s American Friends: The Third Reich’s Supporters in the United States, capítulo 3. Nova York: St. Martin’s Press, 2018.

 

  1. Federico Finchelstein, A Brief History of Fascist Lies. Oakland: University of California Press, 2020.

 

  1. Jessica Keiser argumenta que a mentira descarada não é uma espécie de mentira. Caso ela tenha razão, a mentira fascista também não é uma espécie de mentira, uma vez que é descarada.

 

O americano Jason Stanley (1969) é professor no Departamento de Filosofia de Yale. Especializado em filosofia da linguagem e epistemologia, vem estudando sistematicamente as formas de propaganda política. É autor de How Propaganda Works (2015) e de Como funciona o fascismo – A política do “nós” e “eles” (2018), publicado no Brasil pela L&PM.

Tradução de Jorio Dauster

Nascido na França, mas radicado boa parte da vida nos EUA e na Irlanda, o artista gráfico Tomi Ungerer (1931-2019) foi um prolífico ilustrador de livros infantis e adultos. Foi também um afiado cartunista, com um olhar sempre atento aos conflitos políticos europeus e aos hábitos sexuais de seus contemporâneos. O livro The Underground Sketchbook, de onde foram selecionados os trabalhos aqui reunidos, é uma de suas obras-primas.

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