Transgressão à direita – por Daniel Salgado

Transgressão à direita

Por DANIEL SALGADO

Fóruns da internet brasileira são o berço de uma geração de jovens reacionários e misóginos, cooptados pela pregação online de gurus como Olavo de Carvalho, escreve Daniel Salgado em ensaio pessoal publicado na serrote 30. No texto, ele conta sua passagem por um movimento que, nascido nas profundezas da rede, hoje ocupa os holofotes da política nacional

Sem muito o que fazer aos 13 anos, preenchi um formulário que incluía um apelido e um avatar, e me registrei no Fórum Uol Jogos. Pelos cinco anos seguintes seria conhecido ali como FantaLight (tudo junto), sempre representado por uma mesma imagem: um desenho do gato Manda-Chuva, estrela de uma das animações do estúdio Hanna-Barbera. Nesse tempo, houve também quem me chamasse de Fanta, Fantinha, FL, danisab e, para os mais íntimos, Dani. Naquela página laranja-abrasivo, dei meus primeiros passos na web. E, sem o saber, acompanhei de perto os primórdios e o fortalecimento de um movimento decisivo da direita brasileira, hoje espalhado por toda a internet.

Antes da difusão das redes sociais, o Uol Jogos era uma segunda casa para adolescentes nerds e folgados, um fórum em que usuários relativamente anônimos exercitavam graus variados de exposição. Das dezenas de subfóruns, alguns eram tão óbvios quanto o Playstation e o Notícias; outros, mais improváveis e movimentados como o Vale Tudo e o Papo-Cabeça, que cobriam grande variedade de assuntos e, justamente por isso, acabavam reunindo milhares de usuários na segunda metade dos anos 2000.

No Vale Tudo, carinhosamente apelidado de VT, o ambiente era anárquico e sem muita intervenção dos moderadores. Milhares de mensagens eram postadas a cada hora, com centenas de usuários disputando espaço a tapa, sempre tentando emplacar a qualquer custo suas piadas. Não eram raros tópicos que chegassem à marca de centenas de páginas de comentários em poucas semanas; outros eram criados por usuários-camicase para postar conteúdo que descumpria as regras – pornografia, spam –, com o simples intuito de serem banidos pela moderação. Era proibido postar mais de uma vez a cada 30 segundos, o que parecia uma eternidade para a legião de usuários com dezenas de milhares de postagens contabilizadas. Legião em que eu me incluía.

Algumas histórias extrapolavam o anonimato da multidão. Todos lembravam do sujeito que citou o fórum no Beija Sapo, finado programa da MTV, ou da saga de outro usuário para ganhar um concurso de beleza da revista Capricho com a ajuda dos chamados “vtetas”, denominação adotada pelos membros. Havia ainda a notoriedade mais prosaica, alcançada pelos que eram conhecidos por fazer aniversário todos os dias, ou por aquele que, ao longo de anos, só criou tópicos baseados em péssimos trocadilhos e se despedia com o indefectível bordão “humor fino, humor 100sacional”.

O fórum teve seu impacto na internet brasileira. Foi o berço dos primeiros memes tupiniquins, a grande maioria deles hoje relegada ao cemitério virtual de piadas. Boa parte dos usuários se espalhou por outros recintos com senso de humor similar, em especial comunidades do Orkut. Em seu auge, elas funcionavam como fóruns, organizadas em tópicos e com milhares de usuários em um ambiente caótico. Mas, mesmo com similaridades, a diferença entre os dois espaços era clara. Os usuários do Vale Tudo, talvez por conta do maior grau de anonimato, tendiam a praticar um humor mais extremo do que no Orkut, tanto em seus temas quanto na agressividade de seus termos. Os inclinados a esse tipo de pré-história talvez se lembrem de expressões como “tenso” e “tá tudo bem agora”.1

O fórum foi também um dos criadouros de uma cultura masculina adolescente cooptada pela nova direita brasileira, concentrando um tipo de jovem cujo perfil se diluía em outros espaços. Diferentemente do Orkut e similares, lá não havia adultos, regras ou necessidade de interpretar um personagem. Seus membros se definiam como excluídos na “vida real” por suposta feiura, declarada inaptidão social, gostos tidos como “exóticos” ou mesmo falta de vontade de fazer amizades. Por isso, acreditavam eles, o mundo virtual deveria se adequar às suas vontades e tolerar seus costumes – dentre eles, a homofobia e o machismo.

Quando não discutíamos games ou outros aspectos da cultura geek, compartilhávamos técnicas para conquistar mulheres inacessíveis – e as desprezávamos imediatamente depois de receber uma recusa. Bordões surgiam, fotos eram vazadas, brigas homéricas se desenrolavam, e cada vez mais o ambiente cheirava a cueca. Mas a história que quero contar começa um pouco acima do Vale Tudo. Um clique acima, para ser mais exato: no subfórum Papo-Cabeça. Era nele que eu passava meu tempo quando não estava falando de desenhos japoneses ou desilusões amorosas no VT.

O conceito do Papo-Cabeça era simples e ingênuo: lá deveriam ser travadas todas as discussões consideradas intelectuais. No VT não havia, é claro, lugar para academicismos ou comentários sobre leituras. O nível de discussão alcançado em ambos era compatível com o de adolescentes e de recém-ingressos na faculdade. Havia um ou outro diletante, uma ou outra alma mais razoável, que logo desistia de discutir tópicos como “Jesus foi de verdade?”, “Refutei Marx em três linhas” e “O cristianismo não passa de uma fraqueza de espírito”. Quem tivesse lido um livrinho que fosse de Nietzsche ou Hermann Hesse, dois dos favoritos dos frequentadores, já se destacava.2

Como em boa parte dos sites parecidos daquela época, a tônica das discussões era anárquica. A cultura tóxica dominante estimulava a transgressão pela transgressão, ou seja, abraçar tópicos que incomodassem as pessoas consideradas “normais” – não eram raros, por isso, usuários defendendo o ateísmo e a descriminalização das drogas e do aborto. Mas isso mudou. E rapidamente.

Já na virada da década de 2010, o conservadorismo era dominante. Cada vez mais o usuário do Papo-Cabeça e do Vale Tudo se identificava como religioso, a favor do livre-mercado e contra as drogas. Até hoje me surpreendo ao lembrar a guinada do Walser, com quem conversava bastante: em menos de seis meses, ele passou de ateu fervoroso a crente convicto.

O que cativava aqueles jovens reacionários era um ideal de aceitação. À medida que a rede era cada vez mais ocupada por pautas progressistas, eficiente que é como ferramenta de amplificação    de vozes antes silenciadas, o VT e seus similares se radicalizavam na direção oposta. Seus membros manifestavam ressentimento e desprezo por aqueles que, em seu entender, pareciam ocupar ilegitimamente um lugar que consideravam exclusivo e inexpugnável. Quando a internet era mato, só quem a frequentava eram mesmo os nerds excluídos socialmente, ou seja, jovens, brancos e héteros impopulares na escola. Como assim vinham outros excluídos tomar o espaço? “Censurar” o debate e implantar o que se define, de forma pejorativa, como “politicamente correto”? Nesse contexto, a direita era tentadora, apontando para um novo refúgio, um alento ideológico que depreciava essas novas vozes. Para esses jovens, foi sedutor. E eu quase caí nessa.

Minha relação com essa ideologia foi tão súbita quanto breve. Em poucos meses, me interessei profundamente por aquelas ideias e as abandonei por conta de uma grande desilusão. E todo o processo orbitou em torno de um homem, um austríaco refugiado no Brasil que morreu mais de uma década antes de eu nascer, Otto Maria Carpeaux. Crítico literário e ensaísta, figura influente nos meios intelectuais brasileiros na segunda metade do século passado, Carpeaux foi deixando aos poucos de ser lido. Não foi completamente esquecido, mas teve o protagonismo reduzido com o progressivo deslocamento da crítica literária da imprensa para a universidade. E nesse período de baixa, Carpô, como prefiro chamá-lo, foi capturado por um cânone do qual jamais demonstrou querer fazer parte, o dos escritores que a direita resgata do ostracismo.

Quem esteve à frente da “retomada” de Carpeaux, ainda nos anos 1990, foi Olavo de Carvalho, que se tornaria uma espécie de guru de parte estridente da nova direita brasileira. Nos cursos que ministrava na internet, arregimentando centenas de alunos, o filósofo autodidata passou a comentar sistematicamente o autor de A cinza do purgatório. Em seu talk-show chamado True Outspeak, Olavo criou informalmente um cânone de pensadores e escritores que, a seu ver, foram convenientemente esquecidos por serem vistos pela esquerda como “ameaças” ao consenso marxista que, segundo ele, domina as universidades públicas – nomes supostamente deixados para trás por não se conformarem às expectativas de uma academia “gramsciana”.

Para toda uma legião de jovens pupilos, o raciocínio é irretocável – e, portanto, irresistível. Afinal de contas, apela-se à valorização de quem, em tese, se quis apagar da história. A promessa de revelar uma verdade oculta é, finalmente, tudo o que um jovem busca, a porta para um novo mundo de conhecimento que, de outra forma, lhe seria negado. É uma ideia de elevação intelectual. Dessa maneira, Olavo montou sua biblioteca-base, repleta de nomes não exatamente desconhecidos, mas esquecidos o suficiente para permitir novas edições – muitas lançadas por seus alunos, em pequenas editoras –, e para que seu público o entendesse como uma espécie de monge detentor de tradições há muito esquecidas. Olavo apontava para um oásis, zelando pelo conhecimento supostamente ameaçado de destruição e protegido nas páginas de nomes como o polímata espanhol José Ortega y Gasset, o cientista político Eric Voegelin e o escritor católico francês Georges Bernanos.

Foram seus alunos que me apresentaram a Carpô, antes de todos os outros. Suas ideias eram irresistíveis para mim, um moleque de 14 anos que queria mergulhar no mundo da literatura, mas só tinha meios de o fazer em guias como 1001 livros para ler antes de morrer ou 501 grandes escritores (este último surpreendentemente bom, viria a perceber mais tarde). Não foram necessárias mais que cinco postagens exaltando a História da literatura ocidental assinadas por Musil, um dos usuários do Papo-Cabeça, para que o monumento crítico de quatro volumes se tornasse meu principal objeto de desejo naquele ano. Apoquentei meus pais por alguns meses, argumentando que a publicação da Biblioteca do Senado, até então a única disponível, seria o caminho para aprender algo sobre literatura.3 Não por coincidência, era essa a edição que aparecia na biblioteca de Olavo, emoldurando os vídeos de suas aulas.

E assim foi. Os calhamaços chegaram em minha casa pelos correios, e logo me apaixonei pela erudição de Carpeaux, que desfilava um conhecimento enciclopédico sobre a história dos autores ocidentais, sempre generoso com o leitor, cristalino em seu estilo. Lá me deparei com as primeiras leituras sérias da vida para além das páginas de introdução de revistas ou dos textos do colégio. O ensaísta desafiava os livros e não se furtava de dizer o que achava deles. O impacto foi tamanho que por muito tempo meu sonho era ser crítico literário.

Nos meses que se seguiram, conforme me embrenhava nas milhares de páginas do livro de capa amarela, aumentava minha frequência de postagens no Papo-Cabeça, sempre mais arrogante, por meu recém-adquirido conhecimento – e cada vez mais aberto às sugestões vindas dos meus colegas a partir da biblioteca informal de Olavo. Quis ver do que se tratavam aqueles nomes que não havia visto em lugar nenhum. Se chegassem vagamente perto de Carpeaux, teria valido a pena. Em uma viagem à Argentina, não hesitei em comprar A rebelião das massas e O tema de nosso tempo, de Ortega y Gasset.

Ao mesmo tempo, uma dúvida começara a tomar corpo. O Carpeaux apresentado por Olavo e meus colegas não era exatamente o mesmo que eu encontrava naquelas páginas. Se eles insistiam na faceta do crítico que parecia ter lido tudo em todas as línguas, conhecia as profundezas da literatura cristã medieval e valorizava autores conservadores, para mim o personagem tinha outras características marcantes. Via, isso sim, um autor aberto às inovações de estilo e forma, interessado em tudo o que havia de novo em seu tempo, que dedicou a Bertolt Brecht quatro páginas inteiras em sua história da literatura e, num ensaio de 1947, definiu-o como “o maior talento literário em toda a emigração alemã”. Um crítico que considerava o cubano Alejo Carpentier um dos autores “mais significativos do século”, e era apaixonado por Carlos Drummond de Andrade, “poeta da mais alta categoria”.

A equação, que não fazia sentido, foi de vez para o espaço ainda naquele ano. Num sebo de Botafogo, no Rio de Janeiro, deparei com o primeiro volume dos ensaios reunidos de Carpeaux, organizados pelo próprio Olavo, também autor de uma apresentação ao volume, anos antes de o autor de O imbecil coletivo ter se tornado figura pública em cursos e polêmicas. Vi a lombada vermelha dando sopa e comprei. Cheguei em casa ansiosíssimo, meus amigos não iriam acreditar na minha sorte. Por isso, fui direto à introdução de Olavo. Era um repasse biográfico e crítico de Carpeaux, uma tentativa de contextualização de meu autor favorito, sobre quem tão poucas informações estavam disponíveis na internet.

Naquelas páginas, Olavo deixava claro o descontentamento, depois insistentemente reiterado, com o establishment cultural. Já escrevia lamentando o destino de “nossas universidades, às quais sobram tempo e energias para despejar anualmente sobre este resignado mundo uma tempestade de teses de doutoramento sobre sambistas, cronistas esportivos, amantes de escritores, poetas que poderiam ter sido e não foram”. Denunciava uma suposta “debilitação intelectual brasileira das últimas décadas”, que, a julgar por seus cursos, só fazia piorar. O desprezo estendia-se, curiosamente, aos próprios leitores, que teriam dificuldade de compreender as referências de Carpô – o filósofo insistia no desaparecimento, ao longo das quatro décadas anteriores, de um público medianamente culto.

Até aí, tudo bem. Não era um discurso lá muito diferente do que lia no Fórum, e eu não tinha repertório para discordar ou mesmo concordar inteiramente. O ponto de cisão apareceria mais adiante. Recusando-se a aceitar as muitas facetas de Carpeaux, o filósofo hoje autoexilado nos Estados Unidos se mostrava nada menos do que mesquinho ao descrever os últimos anos do austríaco. Tudo porque Carpeaux decidira se engajar na luta contra a ditadura militar. Olavo fazia malabarismos para retratar Carpô como um homem senil que, apesar de supostamente conduzido à esquerda, mantinha-se conservador. Segundo ele, o ensaísta era o “apologista da revolução cubana” que “tinha horror da politização geral da cultura”, um “denunciador das mazelas do capitalismo” que “fazia a apologia do economista Friedrich Hayek”. E, ainda, alguém que alimentava “o mais fundo desprezo pelas massas de bacharéis que as universidades despejam todo ano na atividade cultural e política, vazios de cultura superior e intoxicados de slogans demagógicos”.

Por mais mirabolantes que fossem os saltos e contorcionismos retóricos, Olavo tinha que se render à evidência de que, nos últimos anos, Carpeaux dedicou-se sobretudo a publicações de resistência à ditadura. Mas o fazia com curiosas ressalvas: “É verdade que, à medida que os anos passavam, ele se permitiu cada vez mais ser afetado por uma atualidade política mesquinha, deixando dissolver-se em parte, no ambiente do imediatismo brasileiro, a soberana concentração espiritual que lhe permitira sair ileso das mais deprimentes experiências europeias. Mas ainda em seus últimos ensaios críticos – contemporâneos de suas mais violentas polêmicas antiamericanas – ele mostra um senso da supratemporalidade que só pode ser diagnosticado como idealista ou como cristão e que é estranho a toda sensibilidade marxista.”

Ao terminar o ensaio, eu estava mudado. Além de profundamente irritado com Olavo, que projetava na obra de Carpeaux suas leituras de mundo, identifiquei ali o discurso dos meus colegas de internet, que em sua maioria mal passavam dos 20 anos. Havia algo de muito errado: ou Olavo tinha a argumentação de um jovem recém-formado ou seus alunos simplesmente regurgitavam tudo que o mestre dizia. E isso era exatamente o que Carpeaux jamais fez em sua vida intelectual. Com todas as idiossincrasias – que o impediram, por exemplo, de apreciar a crônica como gênero –, foi um homem de pensamento próprio, pouco influenciável, dotado de uma “supratemporalidade” – para usar as palavras do próprio Olavo.

Pouco depois, passei a identificar um padrão que ia além da controvérsia em torno de Carpeaux. O rancor contra a esquerda extrapolava a influência de Olavo: era possível detectá-lo no Vale Tudo e em outros fóruns da internet, como os estrangeiros Reddit e 4chan, que cada vez mais passavam a atacar sistematicamente qualquer comportamento ou ideia relacionado com a esquerda. O ressentimento, que a princípio eu supunha motivado apenas por uma noção de injustiça intelectual associada ao esquecimento de ideias e autores, era inseparável dos preconceitos que até então não percebera entre meus colegas. Nesse contexto, o que se identifica no senso comum como “politicamente correto” virou uma espécie de panaceia do mal: assim se classificam os textos considerados “emburrecedores” dos universitários brasileiros, o policiamento de piadas tão caras àqueles adolescentes e, mais importante, as críticas ao discurso machista e homofóbico em plena vigência em toda a sociedade. Para os meus colegas usuários, tratava-se de um ataque frontal: numa tacada só, estavam suprimindo suas leituras, seu senso de humor e até a possibilidade de ventilar suas frustrações amorosas. O Fórum, aos poucos, ganhava contornos de um espaço de “resistência”, e o que antes era só lamentação por uma vida amorosa frustrada deixou de parecer papo de adolescente para se transformar num celeiro de ódio contra as mulheres e outros grupos.

*

Para entender em que pé estavam as coisas, resolvi este ano voltar ao Vale Tudo. A experiência não foi boa: não passei da primeira página. Fui incapaz de reconhecer um usuário sequer. Os nomes que eu tanto via foram previsivelmente soterrados pelo tempo. Entre os vinte e tantos tópicos, há chamadas como “por que alguns mulatos se chamam de pardos?”, “a vagabunda não disse que não toma anticoncepcional”, “chegou aquele momento diário de depressão e choque de realidade”, “o Arthur do Val considera esse cara como ‘branco’ risos”, “mais uma vítima dos desarmamentos” e “o que as garotas podem esperar de nós esse ano”. Não quis saber. Fechei a janela do Fórum.

A pergunta continua, no entanto, martelando minha cabeça: o que levou jovens a esse nível de conservadorismo e intolerância?

No livro Kill All Normies (2017), Angela Nagle sustenta que o fenômeno é resultado de uma nova cultura de transgressão. Para a jornalista, que estuda e descreve o funcionamento do 4chan – o fórum americano que inspirou a cultura do VT e chega aos milhões de usuários –, trata-se de um movimento que “tem mais em comum com o slogan de esquerda de 1968, ‘é proibido proibir!’, do que com qualquer coisa que imaginemos ser parte da direita tradicionalista”. E que, ainda assim, foi parte essencial na campanha eleitoral que elegeu Donald Trump em 2016. Ou seja, o jovem conservador de hoje não tem paralelo com aquele que, nos anos 1960, repudiou a cultura hippie como produto de um amontoado de maconheiros fedorentos, ou que, na década de 1980, abraçou o mundo yuppie. Mas, ainda assim, o novo jovem conservador – ou alt-right para os americanos – busca a transgressão. Ele não quer ser parte do status quo das famílias tradicionais e nem do mainstream cultural que ele condena como “gramsciano” e liberal.

Seu objetivo primeiro é chocar, abalar as estruturas para tentar provocar mudanças que prometam menos um novo futuro do que o retorno do passado. Seu combustível preferencial é o rancor, independentemente de suas posições políticas. A cultura on-line é regida por um acordo tácito de que o escárnio vem sempre antes do elogio. Basta passar algumas horas no Facebook ou no Twitter para que isso se torne evidente. Apesar do esforço das gigantes de tecnologia para transformar suas redes em locais seguros, numa espécie de realidade cor-de-rosa, o conteúdo delas é tóxico.

O ressentimento do jovem de direita extrapola o hate mais comum da internet, que costuma ser direcionado a uma personalidade, um filme ou um time. O veneno desse pequeno conservador tende a se dirigir a um grupo específico dentro da sociedade: as mulheres. Mesmo em suas críticas a produtos culturais, o objetivo final costuma ser o de ofendê-las. Foi o caso, por exemplo, do movimento gamergate, que em 2016 assolou a comunidade de gamers na internet numa suposta campanha por mais ética e transparência nas críticas de jogos feitas pelos portais “liberais” da mídia anglófona. Para os leitores, em sua maioria inclinados politicamente a essa nova direita, as resenhas de seus jogos favoritos estavam cada vez mais “amordaçadas pelo politicamente correto”. Ou seja, passaram a apontar nos jogos o que se discute na sociedade: a ausência injustificável nos games de protagonistas negros e mulheres ou a carência de uma análise sociológica do que ali está em questão.

Para os gamers, no entanto, a mudança não se tratava de um amadurecimento da crítica ou uma transformação no perfil dos jornalistas. Era, “claramente”, uma tentativa de deslegitimar a cultura de games existente até então. Apontar estereótipos batidos sobre as personagens femininas nos roteiros de jogos não seria uma crítica válida, mas uma tentativa de “silenciar” e desmerecer as “grandes narrativas” protagonizadas por brucutus fardados que dominavam o mercado.

O gamergate tinha alvos bem definidos: mulheres, desenvolvedoras ou jornalistas, e alguns raros homens que foram considerados cúmplices da “ideologia de gênero”. O alvo principal, a desenvolvedora Zoë Quinn, recebeu centenas de ameaças de morte e estupro. Isso por ter sido a “pivô” da confusão: quando um ex-namorado fez uma postagem de blog insinuando que Quinn teria tido um relacionamento com um crítico em troca de boas notas para seu jogo Depression Quest, os gamers caíram matando. Não bastou a falta de nexo do relato original, a linha do tempo conflitante (Quinn se envolveu com o jornalista bem depois do lançamento de seu jogo, e o portal em que ele trabalhava mal cobriu sua estreia), ou as críticas de que a reação era desmedida. Este era um ataque havia muito incubado, e bastava uma faísca para expelir aquela misoginia numa comunidade com cada vez mais desenvolvedores, críticos e artistas mulheres e LGBT.

Esse tipo de comportamento não é uma exceção no mundo da internet. Pelo contrário, é quase um lugar-comum. Em outras situações, se manifesta como apoio a um comediante criticado por fazer piadas ofensivas ou um ator acusado de assédio. Quem faz isso não se importa de verdade com o desenvolvedor de jogos ou o comediante que defende. O que o move é a ilusão de que qualquer diálogo que não termine com ele dando sua opinião certeira é silenciador. A certeza de que qualquer passa-fora em alguém parecido com ele é agressivo e desnecessário. O combustível do ódio, do ressentimento e do rancor é o seu suposto silenciamento.

Nada muito diferente do que animava a criação do “cânone esquecido” de Olavo de Carvalho. Mais do que resgatar o passado, o objetivo é combater aqueles que supostamente ameaçam o protagonismo de quem o deteve por muito, muito tempo, abalar um suposto novo status quo demarcado, de um lado, pelo que chamam de “marxismo cultural” e “gramsciano” das faculdades brasileiras, e, de outro, pela atuação “liberal” e “autoritária” de movimentos sociais que brigam para serem ouvidos e respeitados. É com essa retórica que a direita na internet conquista os jovens. “Rechaçados” pela esquerda, ou melhor, desafiados por ela em suas certezas, muitos veem nos conservadores o refúgio de um mundo cada vez mais “chato”. Entre seus iguais, eles finalmente voltariam a ter voz para falar o que bem entendessem.

O conservadorismo oferece a esse jovem uma aura de transgressão. Nesse meio, o consenso é incomodar e agredir os discursos das minorias, minimizando denúncias de machismo, racismo e homofobia que aparecem na grande imprensa. Para esse jovem recém-radicalizado e com vontade de chocar, é importante pronunciar-se contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, opor-se às leis que caracterizam o feminicídio ou defender a proibição do aborto em qualquer circunstância. Sua tática não é o debate, mas o constrangimento. Como certos políticos, buscam palanque com suas provocações.

Essa radicalização dos jovens na internet não foi tão intensa na minha geração. As pessoas que conheci no Vale Tudo não necessariamente aderiram à direita. Uma parcela considerável adotou pautas progressistas. Outros se aprofundaram no conservadorismo e até continuaram a frequentar os cursos de Olavo. Foi o preço a se pagar pela tentativa de tirar o melhor de uma internet até então sem muitas leis. Os fóruns anônimos nos abriram uma porta para um mundo maior do que nossas escolas e nossos bairros, com tudo de bom e de ruim que isso trouxe.

As coisas mudaram desde que entrei no Vale Tudo, no final da década passada. Hoje, a proteção do anonimato não é indispensável como antes. A cultura da transgressão e da agressão virtual se transportou para nossos perfis em redes sociais. Basta ver os comentários de uma notícia ou postagem do Facebook ou Twitter: conteúdo violento, comentários desmerecedores e ofensas gratuitas, mas proferidos por perfis legítimos. Deve-se considerar, é claro, as hordas de robôs virtuais, mas não é preciso grande esforço para encontrar, entre nossos conhecidos, quem ofenda com prazer na internet. Se a gestação do fenômeno foi anônima, a maturidade parece chegar de cara lavada. Resta especular o que a internet de hoje nos reserva para os próximos dez anos.

 

NOTAS:

1. “Tenso”, de origem nebulosa, foi popularizado no VT e costumava aparecer para descrever situações ou imagens bizarras. “Tá tudo bem agora”, por sua vez, surgiu após a postagem de um usuário, Lord Eternal, que descrevia um encontro em um sonho com um personagem da série de jogos Pokémon. A criatura, chamada Entei, lhe confortava em momentos difíceis de sua vida e finalizava o discurso com a expressão, que caiu no gosto dos usuários, debochando da situação exótica.

2. Para além desses dois nomes, os frequentadores do fórum também costumavam declarar amores ao filme Clube da luta e aos dirigidos por Quentin Tarantino. Na música, a coisa variava bastante entre metal e outros subgêneros do rock.

3. Posteriormente, a obra voltou a ser editada no Brasil, numa versão em dez volumes menores, publicada pela Casa da Palavra em parceria com a Livraria Cultura

 

Daniel Salgado (1995) é jornalista.

Artista visual e arquiteto, Marcos Chaves (1961) nasceu no Rio de Janeiro e trabalha desde os anos 1980 com fotografia, vídeo, desenho e intervenções audiovisuais. As imagens pertencem à série Logradouro (2010).

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