Niemeyer, de santo a milagreiro – por Francesco Perrotta-Bosch

Niemeyer, de santo a milagreiro

Por FRANCESCO PERROTTA-BOSCH

As virtudes superlativas do mais célebre arquiteto brasileiro repetem-se como paródia quando ele mesmo decide servir à monumentalidade de qualquer poder

Preparação do painel de Eduardo Kobra em homenagem a Oscar Niemeyer na Avenida Paulista / Cortesia Studio Kobra

Muita construção, alguma arquitetura e um milagre. Assim Lucio Costa sumariza, já no título de um artigo seminal de 1951, sua compreensão das edificações feitas no Brasil do século 19 até aquele momento. No que chamava de “depoimento de um arquiteto carioca”,1 ele traça uma genealogia da construção da cidade do Rio de Janeiro, relembrando autores, pontuando es­tilos, enumerando razões para as transformações. Muita cons­trução foi feita sob os fugazes modismos do ecletismo que pre­dominou nas várias reformas urbanas do período em que a cidade foi capital da República. Alguma arquitetura provém daqueles que se tornaram “modernos sem querer, preocupa­dos em conciliar de novo a arte com a técnica e dar à generali­dade dos homens a vida sã, confortável, digna e bela que, em princípio, a Idade da Máquina tecnicamente faculta” .2 Um mi­lagre? Doutor Lucio, o precursor da arquitetura moderna no Brasil, passou metade de sua existência terrena maravilhado e perturbado por testemunhar o surgimento de Oscar Niemeyer.

De um ponto de vista quase religioso, julgava estar diante de um ser de inspiração sobrenatural, ainda que, tendo orien­tado a iniciação do jovem arquiteto, não tenha percebido nada extraordinário em seus primeiros passos: “É impressionante que um talento tão raro tenha permanecido assim tanto tempo ignorado; na verdade não foi senão em 1936, quando traba­lhou por apenas quatro semanas sob a orientação direta de Le Corbusier, que a sua verdadeira estatura artística se revelou” .3 A aproximação entre o mestre francês e o brasileiro de 28 anos, durante o mês em que desenvolveram estudos de concepção para o Ministério da Educação e Saúde, chega a ser apontada como decisiva no projeto que ficaria conhecido como Palácio Capanema: “O êxito integral do empreendimento só foi asse­gurado devido à circunstância de estar incluída entre os seus legítimos autores a personalidade [Niemeyer] que se revelaria a seguir decisiva na formulação objetiva, pelo exemplo e al­cance da própria obra, do rumo novo a ser trilhado pela arqui­tetura brasileira contemporânea” .4

Na arquitetura brasileira, segundo Lucio Costa, o gênio de Niemeyer só tem precedente em Aleijadinho: “Assim como An­tônio Francisco Lisboa, em circunstâncias muito semelhantes, nas Minas Gerais do século 18, ele é a chave do enigma que in­triga a quantos se detêm na admiração dessa obra esplêndida e numerosa” .5 Duas igrejas dedicadas a São Francisco de Assis – em Ouro Preto e na Pampulha – atestariam a índole transcen­dental atribuída a artífices idealmente capazes de sobrepujar as limitações da matéria. São obras-primas por ultrapassarem os limites da exequibilidade da técnica – seja no risco6 e no uso do cinzel para a execução da portada da igreja colonial de Vila Rica, seja na original sequência de quatro arcos a formarem abóbadas que, às margens da lagoa belo-horizontina, amplia­ram o potencial da engenharia no concreto armado. A maior di­ferença entre os dois está na biografia. No caso de Aleijadinho, o esforço da produção tinha algo de hercúleo no enfrentamento trágico com a enfermidade. Em Niemeyer, nascia um persona­gem talvez só possível numa construção cultural brasileira: a um só tempo sacrossanto e gaiato, “de formação e mentalidade genuinamente cariocas”,7 como se o labor lhe parecesse fácil. Enquanto Lucio Costa via em Niemeyer “a sagrada obsessão, própria dos artistas verdadeiramente criadores, de desven­dar o mundo formal ainda não revelado”,8 ele mesmo admi­tia se permitir “certa negligência –— facilitada pelo meu feitio displicente e boêmio – e fazia com que aceitasse trabalhos em demasia, executando-os às pressas, confiante na habilidade e na capacidade de improvisação de que me julgava possuidor” .9

Tal como Michelangelo, Niemeyer foi ungido muito jovem como uma figura genial. O milagre, de certo modo, tornou­-se verossímil. Depositou-se nele uma crença incomensurável. E, por isso, recebeu uma das encomendas mais nobres e raras que poderia caber a um arquiteto: a capital de um país. Eleito presidente, o mecenas da Pampulha, Juscelino Kubitschek, o incumbiu da tarefa de projetar não um ou dois, mas todos os palácios da nova sede no Planalto Central. E, em 1957, por meio de concurso para seleção do projeto urbano, sacramen­tou o reencontro de Oscar Niemeyer e Lucio Costa. A princípio, inverte-se aí a relação entre mentor e aprendiz. Ou talvez seja mais justo pensar num efeito Pigmaleão, em que o criador re­ceba da criatura, como retribuição, algo de imenso valor.

Em Brasília, doutor Lucio repete o que fez ao escrever “Muita construção, alguma arquitetura e um milagre”: monta o cená­rio para dar protagonismo a Niemeyer. O Plano Piloto é con­cebido como um conjunto de eixos que se direcionam para a praça dos Três Poderes –— isto é, afluem para as obras-primas niemeyerianas. Os fluxos das duas asas convergem para o Eixo Monumental exatamente na Plataforma Rodoviária, a partir da qual podemos avistar o Congresso Nacional no centro dos pontos de fuga que formalizam a Esplanada dos Ministérios. Tal mirada pode ser descrita por um viés renascentista –— da construção do espaço segundo a perspectiva, a geometria, a métrica – ou por um viés cubista –— numa decodificação de ele­mentos por meio de planos que vêm a se justapor. Mais escla­recedora é, no entanto, a leitura de Alberto Moravia no ano da inauguração da capital:

Por um momento os olhos não acreditam no que veem, já que, se um arranha-céu altíssimo é aceitável justamente porque geo­métrico, o naturalismo de uma sopeira que parece feita para o apetite de um gigante tem algo de alucinante. E de fato, por um instante, nos sentimos liliputianos e quase involuntariamente buscamos no céu vazio a forma ameaçadora de um novo Gulliver. Não há gigantes, mas a impressão de gigantismo arquitetô­nico e, por extensão, de esmagamento e aniquilamento da figura humana permanece e se afirma à medida que a visita prossegue. Brasília nasceu da vontade de Kubitschek, que é um presidente democrático; no entanto, observando esses edifícios que se er­guem no meio de imensos espaços vazios, o pensamento evoca lugares e monumentos de antigas autocracias, como Persépolis, por exemplo, que erigiu suas colunas gigantescas diante de uma planície não muito diferente desta de Brasília. De resto, a atmos­fera ditatorial é confirmada pela solidão metafísica dos lagos de asfalto em meio aos quais surgem os edifícios. Essas solidões ur­banas antecipadas nas perspectivas surrealistas de De Chirico e Dalí expressam muito bem o mistério e espanto que o homem moderno sente diante dos poderes que o governam.10

O que o escritor italiano depreende a partir da forma e da escala das edificações de Brasília é revelador da grande questão que perpassa a carreira de Niemeyer: a relação entre arquitetura e poder. No início da sua obra, frequentemente sob as asas de Lucio Costa, o arquiteto carioca demonstra destreza na inter-mediação de tal vínculo. Porém, no final de sua carreira, tal cor­relação ganha ares de tragédia, ou mesmo de farsa. Indubitável é que, como poucos, Niemeyer percebeu a acepção primeva e es­sencial da atividade de sua vida: Arquitetura, com A maiúsculo, é, por princípio, a representação do poder no mundo material. Arquitetura é aquilo que dá forma a instituições –— em última instância, transformam-se em sinônimos. Na sua presença física no mundo material, arquitetura é o que organiza a arena social dentro e ao redor de si, o que dá parâmetros ao cidadão no seu estar na cidade, o que formata a rede de relações humanas que vem a constituir uma comunidade, o que confere legibilidade a uma sociedade – e, nesse caso, a uma nação. Vizinho das ruínas do grande império e do epicentro católico, o romano Moravia constatou na recém-nascida Brasília todos os índices de expres­são do poder do Estado “de um país novo que se prepara, pela segunda vez em sua história, para partir para a conquista de si mesmo”.11 Nas suas formas e na escala de seus palácios, a cidade feita para Gulliver inspirava nos brasileiros algo maior do que um indivíduo pode alcançar. As colunas do palácio da Alvorada, a ascensão da estrutura curva da catedral, a rampa do Planalto, a “sopeira” liliputiana do Congresso Nacional, tudo invoca uma ce­rimônia e um recolhimento às instituições que regeriam a nação longe do ar mundano e promíscuo da Guanabara. Consciente da magnitude de sua tarefa, Niemeyer não fugiu da demanda maior da arquitetura: deu face ao Brasil que queria ser moderno.

Se, por um lado, o desenho que saía de sua prancheta indi­cava lucidez perante o encargo, por outro, o discurso e as justifi­cativas verbais demonstravam absoluto cinismo: “E espero que Brasília seja uma cidade de homens felizes; homens que sintam a vida em toda a plenitude, em toda a sua fragilidade; homens que compreendem o valor das coisas simples e puras – um gesto, uma palavra de afeto e solidariedade”.1 2 A aridez e a vastidão da praça dos Três Poderes e da Esplanada dos Ministérios definitivamente não condizem com “uma cidade de homens felizes”. Georges Bataille nota que palácios governamentais são menos permeáveis a noções como “afeto” e “solidariedade”, uma vez que encarnam instâncias através das quais “Igreja e Estado falam às multidões e, impõem silêncio sobre elas”.13 Esse descompasso entre discurso e projeto passa então a ser recorrente na biografia de Niemeyer.

No ápice de sua carreira, diante da indiscutível obra-prima que é Brasília, o próprio Niemeyer engendra intelectualmente o que viria a ser a principal causa de sua debacle. No “Depoimento” publicado no nono número da revista Módulo, em fevereiro de 1958, o arquiteto diz submeter-se a “um processo honesto e frio de revisão”.14 Observa como as contradições sociais afetavam seus projetos, pois a desigualdade relegaria aos arquitetos o pa­pel de “atender os caprichos das classes abastadas”,15 submetendo a busca por formas originais aos anseios dos proprietários por construir edifícios mais chamativos. Com tais argumentos, Nie­meyer começa a negar encomendas da iniciativa privada, vistas como “pura especulação imobiliária”,16 visando “apenas a inte­resses comerciais”.17 Passa também a renegar projetos como os dos edifícios Copan, Eiffel e Califórnia, em São Paulo, o Conjunto JK e o edifício Niemeyer, em Belo Horizonte, e a sede do Banco Boavista, no Rio de Janeiro. A partir do momento em que declara só assumir projetos destinados à satisfação do povo, surge a de­cisiva contradição interna de seu discurso: Niemeyer aceita todo tipo de encomenda governamental, mas não necessariamente de usufruto público, ou seja, de livre acesso à população. Ao passo que recusava edifícios habitacionais, financiados por incorporadoras particulares, capitaneava projetos de palácios para todas as instâncias estatais, mais ou menos democráticas. O argumento forjado para esconjurar a culpa social facilita o caminho para a duradoura proximidade de Niemeyer com o poder e os poderosos.

Eduardo Kobra prepara mural em homenagem a Oscar Niemeyer, na Avenida Paulista. Nacho Doce/Reuters/Latinstock

A trajetória ascendente, indissociável de sua ligação com Juscelino, tem sua fase final prenunciada pela colaboração com Orestes Quércia, então governador de São Paulo, na construção do Memorial da América Latina (1989), pretenso ponto de encontro simbólico dos povos do continente. O con­junto de edificações, pomposamente batizadas de Parlamento, Anexo de Congressistas, Salão dos Atos, Auditório Simón Bolívar, Biblioteca, Centro de Estudo e Galerias, foi implan­tado em dois terrenos no bairro da Barra Funda, divididos por uma avenida e conectados por uma passarela curva e de apoio central inusitado. Os edifícios não reverberam nem mesmo funcionalmente o que lhes foi atribuído em intenção, num conjunto de formas mais escultóricas do que arquitetônicas, cada qual mais sui generis que a outra, sem uma clara organi­zação urbana ou expográfica na implantação de cada “objeto”. Visivelmente, o arquiteto recebeu uma carta branca do gover­nante e, para Niemeyer, mais importante que o uso do com­plexo político-cultural foi a contemplação das suas grandes formas, próprias a um artista verdadeiramente criador, exa­tamente como doutor Lucio havia antecipado.

Em retribuição a esse regalo especial, Niemeyer não pou­pou elogios a Orestes Quércia na Folha de S.Paulo de 25 de se­tembro de 1998 (véspera das eleições em que o político concor­ria ao governo do estado de São Paulo): “Lembrá-lo em plena luta política –— difícil e indefinida –, quando as pesquisas não o favorecem, é uma manifestação de apreço compreensível, mesmo quando ele não pertence à nossa linha ideológica, mas a respeita. Daí recordar o meu amigo Orestes Quércia, os tem­pos em que com ele colaborei na obra do Memorial da América Latina e o apoio incondicional sempre dele recebido.”18

O comunista Niemeyer endossa o peemedebista Quércia. Talvez nada seja tão característico e sintomático da política bra­sileira. Principalmente com a inversão de valores que se expli­cita na conclusão do artigo opinativo: “É claro que, de um modo geral, estou sempre ao lado de meus camaradas da esquerda, mas em certos casos a amizade deve prevalecer”. 19 Difícil não ouvir aí os ecos, talvez distorcidos, da célebre frase do arquiteto: “Para mim a arquitetura não é o mais importante. Importantes são a família, os amigos e este mundo injusto que devemos mo­dificar. ”20 Em certo sentido, afirma-se aí um salvo-conduto para a aceitação de tudo: as mais estranhas e absurdas alianças e en­comendas. E atente-se à hierarquia: as amizades ficam à frente do mundo injusto que devemos modificar.

Para nos aprofundarmos nesse imoderado pragmatismo político, é esclarecedor o segundo número da Nosso Caminho, revista gestada e editada dentro do escritório de Niemeyer em agosto de 2008. A publicação dá conta que, na época, a presi­dência da Fundação Oscar Niemeyer era ocupada pelo político pernambucano Marco Maciel, do PFL (atual Democratas), vice­-presidente de Fernando Henrique Cardoso entre 1995 e 2002. Na página 34, Nosso Caminho presta homenagem e apoio a Fidel Castro, em texto curto e laudatório que se conclui com o se­guinte parágrafo: “Atenta ao que ocorre nos países latino-ameri­canos, Nosso Caminho se solidariza com o movimento em defesa de sua soberania e com os que corajosamente o lideram – como o presidente da Venezuela Hugo Chávez e o presidente da Bolí­via Evo Morales – e o apoiam, a exemplo do presidente Lula, que, patriota, sabe reagir a tudo que ofende a integridade nacional.”21

A salada ideológica ganha conotação esdrúxula e cons­trangedora no texto “Aécio Neves”, assinado pelo próprio Niemeyer, no qual faz elogios rasgados ao político mineiro: “Poucas vezes –- muito poucas –- tivemos contato com um di­rigente dotado de qualidades que Aécio Neves exibe, preocu­pado em deixar, de sua passagem pelo governo de Minas, um exemplo de idealismo, coragem e determinação” .22 Trata-se de uma introdução ao projeto da Cidade Administrativa do estado de Minas Gerais (2010), empreendimento que reúne o gabinete do governador, todas as secretarias e setores ligados ao poder executivo estadual. Desloca milhares de funcionários públicos da praça da Liberdade e de outros pontos da região central de Belo Horizonte para o extremo norte do município, a 18 quilômetros do logradouro original – Aécio tinha ambi­ção de repetir o movimento de JK, distanciando a população do poder. Às margens da rodovia que leva ao longínquo aero­porto de Confins, em meio a colinas onde ainda predomina a vegetação, o complexo de Niemeyer parece uma miragem. A Cidade Administrativa niemeyeriana não surpreende por ser inédita ou admirável, mas pelo exagero de tamanho e des­proporção das formas. Tudo nela parece descalibrado. O pa­lácio do Governo é uma grande estrutura de quatro apoios em concreto branco que suspende com tirantes uma caixa de vidro escuro. Estudos do governo previam a construção de 15 edifícios para as secretarias, mas Niemeyer aglomerou­-as em duas mastodônticas lâminas curvas de 255 metros de comprimento e 13 andares, fazendo um dueto de côncavo e convexo no qual, dependendo do ângulo, um acoberta o ou­tro. O ímpeto fáustico do arquiteto sintonizou-se assim com os desejos fáusticos de políticos.

Painel de Eduardo Kobra em homenagem a Oscar Niemeyer na Avenida Paulista / Cortesia Studio Kobra

Por mais vulgares que fossem as relações políticas, Niemeyer poderia ter continuado a projetar obras-primas à altura do conjunto da Pampulha – e, é claro, este ensaio não faria sen­tido. O que ocorre, porém, é que essas conveniências obscenas passam a reverberar nos projetos. Há diversos indícios disso, contudo nada me parece tão simbólico do período de declínio quanto o uso indiscriminado do vidro fumê.

Chamemos de fumê todo vidro escuro como resultado de sua própria composição química, por pintura a posteriori ou como efeito de uma película aplicada para controle da inci­dência solar. O vidro fumê começa a aparecer em Niemeyer com os bons projetos da sede do Partido Comunista Francês (19 65), em Paris, e da editora Mondadori (19 68), em Milão, mas na década de 19 8 0 passa a ser uma tônica. O vidro fumê tem características antagônicas ao ideal moderno de transparência. Enquanto as vanguardas arquitetônicas modernistas exalta­vam a permeabilidade visual entre o exterior e o interior pro­porcionada pelas superfícies de vidro, o fumê é opaco. Não há continuidade visual entre dentro e fora, entre a esfera íntima e a comum, entre o domínio da arquitetura e o da natureza. Diante de uma fachada de vidro fumê tem-se, no máximo, um reflexo, mesmo que quem esteja no interior possa ver o que ocorre no exterior. Efeito mais simbólico do que prático, faz com que edifícios como os da sede da Procuradoria-Geral da República, o Parlamento do Memorial da América Latina e os prédios da Cidade Administrativa mineira emulem a aquies­cência do arquiteto com as intenções daqueles que estão den­tro, o poder associado à obscuridade.

O campo de potencialidades do vidro fumê é ainda mais amplo. Ele faculta algo que, ainda em Brasília, Niemeyer cha­mou de “simplificação da forma plástica”.23 O vidro fumê é uma vigorosa artimanha para a total planificação do raciocínio de Niemeyer. Quando o vidro torna-se uma superfície opaca, o projeto pode ser somente um desenho bidimensional. Perde-se o belo senso de profundidade que encontramos nos projetos dos palácios do Planalto, da Justiça e da Alvorada. A lógica da sucessão de planos se esvai. Confundem-se simples e simplório. O arquiteto parece esquecer as três dimensões e permite-se construções como o Mirante do Parque da Cidade (2008), de Natal, no Rio Grande do Norte, no qual compreen­demos todo o projeto pelo desenho da fachada. O vidro fumê não revela como é o interior. Tal torre é a sua elevação frontal extrudada alguns metros para trás. E só.

Esse movimento de bidimensionalização do raciocínio projetivo desenvolve-se em paralelo com uma reincidência de soluções formais. O velho Oscar criou um repertório limitado a cerca de duas dezenas de edificações com formatos de fácil cognição, o que permitia pequenas variações conforme a en­comenda – o melhor exemplo está na comparação entre a bri­zolista Apoteose do Sambódromo (1983) e a cabralina Passarela da Rocinha (2010). A partir dessas matrizes, seu modus operandi consistia em agenciar três a cinco elementos (isto é, os edifícios do seu repositório) a fim de compor conjuntos arquitetônicos.

Como estratégia para viabilizar sua numerosa produ­ção tardia, ele não se constrange com a total autorreferên­cia. Niemeyer foi quem melhor exerceu a máxima de Rem Koolhaas: “Fuck Context”. No texto “Bigness, or the Problem of the Large”,24 o arquiteto holandês trata das construções com escalas tão grandes que ignoram o tecido urbano e social que circunda o sítio do projeto. Sem qualquer traço de culpa, assumem a total desconexão com a cidade ao redor. Em outros termos, é o total desleixo com o impacto que uma nova edificação tem na urbe existente. Não é isso que ocorre no Memo­rial da América Latina? Portanto, independentemente do lu­gar, Niemeyer seguiu com a questão que havia constatado na criação de Brasília: o problema “do prédio isolado, livre a toda imaginação”.25 Tudo parece possível. Tudo é permitido. Oscar Niemeyer realmente passou a acreditar que ele era o milagre.

Nas últimas três décadas, quase metade dos estados bra­sileiros foi “abençoada” com pelo menos um projeto de Niemeyer. Em Goiânia e Curitiba, foram construídos um centro cultural (2006) e um museu (2001) que levam o seu nome – há de se dizer que o “olho suspenso” curitibano é uma ampliação do pavilhão do museu que Niemeyer já havia feito na década de 1960. O cilindro branco com recortes pitorescos na cobertura, tal como um cabelo penteado, abriga o Teatro de Araras (1990), no interior de São Paulo. Essa mesma solução é replicada na sala de música e apresentações de Duque de Caxias, cujo conjunto se complementa com um segundo volume para a biblioteca (2004). A estação Cabo Branco (2008), em João Pessoa, re­toma o tema do volume soerguido, porém com curvas enrijecidas em planos. Já em São Luís, a monumentalidade niemeyeriana definha no Memorial Maria Aragão (1998): três volumes curvilíneos pequenos e acanhados numa praça árida, dentre os quais um anfiteatro cívico que mais se assemelha a um des­cuidado coreto do interior.

Nesse fim de caminho, muitos projetos se perderam, como o Observató­rio e Museu Interativo do Pantanal (2008), em Campo Grande, a sede admi­nistrativa da Usina Hidrelétrica de Itaipu (2004) e a abandonada construção da Universidade da Integração Latino-Americana (Unila), ambas em Foz do Iguaçu, e a autossabotagem que seria a Praça da Soberania (2009), em Brasí­lia, onde Niemeyer quase emplacou um ciclópico relógio de sol na Esplanada dos Ministérios para tapar a vista do Eixo Monumental. Para além das fron­teiras brasileiras, Niemeyer foi um dos primeiros arquitetos estrelas globais a desenhar o pavilhão temporário da Serpentine Gallery, no verão londrino de 2003, um de seus projetos que se sintetiza (ou melhor, se simplifica) inte­lectualmente no desenho do perímetro da fachada. Em 2011, a pequena cidade espanhola de Avilés pediu a Niemeyer que fizesse a sua versão do efeito Bilbao (da dobradinha Guggenheim e Frank Gehry): à beira d’água, o arquiteto lança sua cúpula, o edifício linear, o teatro de elevação ondulada e a torre, a qual, no caso, é especialmente complicada, por ser um cilindro nada gracioso sobre uma haste envolvida por uma espiral, tal como uma serpente. Na Itália, foi o vilarejo de Ravello que quis entrar no mapa-múndi arquitetônico pelas gra­ças de Niemeyer: o auditório de 2010 tem algo da Escola Estadual Governador Milton Campos (1954), em Belo Horizonte, e do olho curitibano, mas parece mais um edifício niemeyeriano a querer decolar, não conseguindo, no entanto, alçar voo nesse povoado da costa amalfitana.

Niterói foi a derradeira cidade onde Niemeyer teve uma presença substan­tiva: o Museu de Arte Contemporânea (1996), onde com graça conseguiu se relacionar com as montanhas ao fundo da paisagem do Rio, é o seu canto do cisne. Contudo, os trabalhos que se seguiram no mesmo município – o dito Caminho Niemeyer –— surgem com a pretensão de organizar um passeio pú­blico na orla niteroiense com vista para a baía de Guanabara, mas não passam de um punhado de prédios espaçados em meio a áreas áridas. Diferentemente do que o próprio Niemeyer já conseguira fazer magistralmente em 1954 na marquise do Ibirapuera, os prédios em Niterói são formas autorreferentes que não se compõem nem se conectam. Mesmo estando lado a lado, não há diálogo entre o Teatro Popular (que tem muitas semelhanças com o projeto espanhol), o Memorial Roberto Silveira e o atual Museu da Ciência e Criati­vidade –Casa do Conhecimento. Este último, aliás, foi construído para ser sede da Fundação Oscar Niemeyer e abrigar seu acervo – que nunca chegou a ocupar o edifício em meio a controvérsias sobre gestão e desentendimentos familiares. Este museu e o memorial são, diga-se de passagem, variações de um recorrente elemento niemeyeriano: a cúpula, primorosa quando surgiu com a Oca paulistana, já reincidente no Museu Nacional (2006) em Brasília e no complexo de Avilés, e, enfim, raquítica nas duas peças brancas instaladas no Caminho Niemeyer.

Por fim, no último retorno à cidade que concebeu, Niemeyer volta ao naturalismo da terra de gigantes percebida por Moravia, porém agora com um buquê de flores. No lugar das pétalas, redomas de vidro e uma antena vermelha. As formas delicadas já não estavam mais presentes na Torre de TV Digital de Brasília (2012). Não eram mais flores da primavera juvenil, mas de uma homenagem póstuma.

O grande arquiteto teve um fim de carreira melancólico, prestando-se ao papel de starchitect barato. Se cumprisse a regra que ele mesmo impôs da pro­cedência popular de uma encomenda (ou seja, de uma demanda estatal), todo tipo de projeto dessa origem seria aceitável. Um neocoronel tupiniquim de in­terior ou periferia ou um pretensioso prefeito de qualquer província do planeta podiam comprar seu Oscar Niemeyer, a assinatura de Oscar, a marca Niemeyer. Querendo emular JK, qualquer pequeno poderoso poderia adquirir uma “face” para sua cidade ou, pelo menos, deixar como legado de sua administração um símbolo pseudofuturista –— e, convenhamos, antiquado no século 21.

Para assumirem-se como marcas, os projetos de Niemeyer tinham de fazer sentido em sua própria obra, e não no lugar onde são implantados. O velho Niemeyer necessitava simular o próprio Niemeyer. A farsa de encenar-se ele mesmo. Mais do que ser repetitivo, ele abriu mão de testar novidades – a experi­mentação e a surpresa formal começaram e terminaram com o jovem Niemeyer.

 

Francesco Perrotta-Bosch (1988) é arquiteto e ensaísta. Foi vencedor do 2o prêmio de ensaísmo serrote, em 2013, quando escreveu sobre as relações entre o prédio do Masp, Lina Bo Bardi e John Cage.


Notas

 

  1. Lucio Costa, “Muita construção, alguma arquitetura e um milagre” [1951], in Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 157.
  2. Ibidem, p. 168.
  3. Idem, “Oscar Niemeyer. Prefácio para o livro de Stamo Papadaki” [1950], cit., p. 195.
  4. Idem, “Muita construção, alguma arquitetura e um milagre”, cit., p. 169.
  5. Ibidem, p. 170.
  6. “Arquiteto não ‘rabisca’, arquiteto risca”. Idem, “Interessa ao arquiteto”, cit., p. 119.
  7. Idem, “Muita construção, alguma arquitetura e um milagre”, cit., p. 170.
  8. Ibidem, p. 170.
  9. Oscar Niemeyer, “Depoimento”, Módulo. Rio de Janeiro, n. g, fev. 1958, pp. 3-4.
  10. Alberto Moravia, “Brasília barroca” [1960], in Alberto Xavier e Julio Katinsky (orgs.), Brasília – Antologia crítica. Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 91.
  11. Ibidem, p. 92.
  12. Oscar Niemeyer, “Minha experiência de Brasília”, Módulo. Rio de Janeiro, n. 18, jun. 1960, p. 16.
  1. Georges Bataille, “Documents” [1929], in Denis Hollier, Against Architecture: The Writings of Georges Bataille. Cambridge: The mit Press, 1992, 47.
  2. Oscar Niemeyer, cit., 1958, p. 3.
  3. Ibidem.
  4. Ibidem, p. 4.
  5. Ibidem.
  6. Oscar Niemeyer, “Quércia e o Memorial da América Latina”, Folha de S.Paulo, 25.09.1998. Disponível em: www.folha.uol.com.br/ fsp/opiniao/fz25099810.htm.
  1. Ibidem.
  2. Idem, Minha arquitetura. Rio de Janeiro: Revan, 2000, p. 5.
  3. “Homenagem”, Nosso Caminho. Rio de Janeiro, n. 2, ago. 2008, p. 34.
  4. Oscar Niemeyer, “Aécio Neves”, in ibidem, p. 15.
  5. Idem, op. cit., 1958, p. 4.
  6. Rem Koolhaas, “Bigness, or the Problem of the Large”, in Rem Koolhaas e Bruce Mau (orgs.), S, M, a, xa. Nova York: Monacelli, 1995.
  7. Oscar Niemeyer, cit., 1958, p. 5.

 

 

 

 

 

 

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