Leituras não obrigatórias – por Wislawa Szymborska

Leituras não obrigatórias

por WISLAWA SZYMBORSKA

Consagrada por sua poesia, a polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012) foi também uma peculiar ensaísta, particularmente devotada ao comentário de livros não literários considerados “menores”. Muito antes de ser projetada internacionalmente pelo Nobel de Literatura de 1996, assinou mais de 300 resenhas, em sua maioria deste tipo, que seriam reunidas em três volumes batizados Leituras não obrigatórias, origem dos cinco textos que publicamos em tradução direta do polonês.

 

O IRMÃO MAIS NOVO

Apresentamos o humor francês, seleção e elaboração da antologia: Arnold Mostowicz. Varsóvia: Iskra, 1971.

O humor é o irmão mais novo da seriedade. Algo assim como um Ênio ao lado de um Beto, só que cósmicos. Entre os irmãos existe uma tensão constante. A seriedade olha o humor com a condescendência do mais velho, e, por causa disso, o humor é complexado. No fundo da alma, queria ser equilibrado como a seriedade, o que, felizmente, não consegue. Nas biografias dos humoristas (neste caso, nas notas biográficas desta antologia – mas esse é um exemplo que só confirma a regra), observo uma constante, embora inútil, aspiração dos autores a ocupar-se de criações sérias. Quase todo humorista tem na sua conta alguns romances ou peças teatrais melancólicas que “caíram no esquecimento”, e é sua obra humorística, geralmente tratada até o fim como secundária, que lhe garante “um lugar permanente na literatura”. Em toda a minha vida, nunca encontrei uma biografia em que se lesse o contrário: “Escreveu sem sucesso várias obras humorísticas e numerosas farsas, mas foi sua narrativa dramática da vida dos camponeses da Europa Central que lhe trouxe a imortalidade…”. Estranho! Acontece o mesmo com os atores. Parece que todo ator cômico sonha em segredo com um papel trágico. Mas nunca ouvi falar de um ator dramático que gritasse num café: “Esse cretino (na linguagem dos atores, o termo sempre se refere ao diretor) quer que eu interprete Hamlet outra vez! Nem lhe passa pela cabeça de bagre que nasci para interpretar sir Andrew Aguecheek!” É de fato muito curioso! Penso que a seriedade e o humor têm o mesmo valor, por isso espero com ansiedade o momento em que a seriedade comece a invejar o humor, como revanche. O humor, por exemplo, tem diferentes matizes, enquanto a seriedade, até agora, não esteve sujeita a nenhuma classificação por categorias, embora certamente devesse estar. Senhores críticos, já que se servem do termo “humor absurdo”, passem a usar o correspondente “seriedade absurda”! Da mesma forma, comecem a distinguir entre a seriedade refinada e a vulgar, a despreocupada e a macabra. Não somente a crítica mas também a escrita jornalística se beneficiarão com o revigorante conceito de pure sense. Não necessitamos descobrir, na vida e na arte, uma seriedade não refinada? Uma seriedade indecente? Uma seriedade brilhante? Uma seriedade bem-humorada? Leria com prazer sobre “o terrível senso de seriedade” do pensador X, “as pérolas de seriedade” do bardo Y, “a seriedade chocante” do vanguardista Z. Qual dos resenhistas vai finalmente se decidir a escrever que “a seriedade efervescente do epílogo salva a peça fraca do dramaturgo N.N.”, ou que “nos versinhos da poeta W.S. ressoam tons de uma seriedade não intencional”? E por que até hoje não há um cantinho para a seriedade nas revistas humorísticas? E, em geral, por que temos tantas revistas de humor e tão poucas sérias? Então?

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IMAGENS QUE FALAM

Escrita chinesa, de M.J. Künstler. Varsóvia: Naukowe, 1969

O livro não é dos mais recentes, foi lançado há dois anos. No entanto, não pude consegui-lo na ocasião, e só agora, de repente, dei com ele na vitrine de uma livraria. É lamentável viver neste mundo e não saber nada sobre a escrita chinesa. Depois dessa leitura, vou continuar não sabendo nada de fundamental, mas o dito “nada” perde seu sentido primitivo e adquire uma profundidade socrática. Encontrei no livro muitas informações sobre as línguas e dialetos chineses, sobre a história da escrita – cujos símbolos não correspondem aos sons, e sim ao significado das palavras –, sobre as possibilidades de composição desses símbolos e a caligrafia. Me interessou particularmente a composição. Assim, por exemplo, o símbolo que significa “paz” é composto de três elementos pictóricos: telhado, coração e vaso. Já é, em si, um poema microscópico. Em geral, os símbolos chineses forçaram os poetas a uma imensa concretude. Se quisessem escrever um poema sobre um pássaro, precisavam decidir de imediato que pássaro tinham em mente: se de cauda curta ou longa. Ou talvez escolhessem um terceiro símbolo, que liga os dois primeiros e significa um pássaro grande, gordo? Naturalmente, existe também um símbolo para um pássaro sem atributos, mas, no caráter pictórico da escrita, permanece até hoje um espírito de resistência às ideias abstratas. Manteve-se também uma aversão às mulheres. Na simplificação gráfica, “briga” são duas figuras femininas; “traição”, até três mulheres juntas… E, obviamente, há um símbolo para esposa e outro para amante. “Esposa” é uma mulher mais uma vassoura; “amante”, uma mulher mais uma flauta. Não sei se existe um símbolo que expresse o ideal propagado por todas as revistas femininas na Europa: a junção da vassoura com a flauta. Agradecendo ao autor pela riqueza das informações e clareza da exposição, lamento, porém, ter dedicado tão pouco espaço ao uso diário do alfabeto chinês. Me interessaria saber, por exemplo, quanto tempo leva o aprendizado da leitura e da escrita nas escolas chinesas. Depois de quanto tempo pode-se saber de cor todos os símbolos de uso corrente? Com que eficiência é possível tomar notas? E, finalmente, como é uma máquina de escrever chinesa? Por enquanto, imagino-a como um objeto do tamanho de uma locomotiva, transportado de um lugar para o outro por 80 enérgicas datilógrafas. Nesse caso, o símbolo para datilógrafa seria uma combinação de mulher com dragão.

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FIÉIS ATÉ A MORTE

Quando o cachorro adoece, de Peter Teichmann. Varsóvia: Rolnicze i Lesne, 1974

Neste livro sobre doenças caninas, encontramos uma discussão sobre praticamente todas as enfermidades humanas, da anemia à icterícia. Os cães sofrem e morrem das mesmas causas que as pessoas. Até nisso eles nos fazem companhia. Naturalmente, sofrem de modo muito mais discreto: não nos falam de seus males, não têm hipocondrias irritantes, nem abreviam a vida fumando cigarros ou bebendo vodca. Isso não significa em absoluto que sua saúde seja estatisticamente melhor que a dos humanos, pois, além das doenças que têm em comum conosco, ainda sofrem de doenças especificamente caninas. Não é à toa que o livro tenha mais de 400 páginas e dê a impressão de ser uma obra exaustiva. Mas não é. O autor deixou de lado as doenças mais frequentes entre os cães, isto é, todos os tipos de neuroses e psicoses. Antigamente, a medicina veterinária não se importava com elas, mas hoje a vida psíquica dos animais domésticos se torna um campo de pesquisas interessante. É uma pena que nesse livro não haja nada sobre o tema. Certamente aprenderíamos que não é nem um pouco fácil a vida dos nossos Rex e Fafik. Eles passam a vida tentando nos entender, adaptar-se às regras de comportamento que lhes são impostas, descobrir nas nossas palavras e gestos um sentido que diga respeito a eles. Isso exige um esforço enorme, uma tensão constante. Cada vez que saímos de casa, o cachorro entra em desespero, como se saíssemos para sempre. Cada retorno nosso é para ele uma alegria que beira um choque – como se por um milagre nos salvássemos. Essas despedidas e saudações nos comovem, mas deveriam também nos causar consternação. Quando viajamos por algumas semanas, não temos como avisar o cachorro da data da nossa volta, e nem dá para consolá-lo com um postal ou um telefonema interurbano. O cachorro está condenado a uma eternidade de espera desesperadora. Mas não termina aí, pois há uma centena de outras situações em que ele perde o equilíbrio, oscilando sem cessar entre as demandas de sua natureza e o mundo humano que lhe é estranho. Finalmente, cedo ou tarde, começa a correr atrás do próprio rabo, o que, dizem, não é um joguinho alegre, mas um sinal de que nosso pupilo perdeu o senso de realidade. Nas pessoas, por falta de rabo, esse estágio da doença permanece assintomático.

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OS DIAS

Calendário de parede para o ano 1973. Varsóvia: Ksiazka i Wiedza, 1972

E por que não escrever umas palavrinhas sobre o calendário de parede, desses dos quais se arrancam as folhas? Afinal, não deixa de ser um livro, e grosso, pois não pode ter menos do que 365 folhas. Chega às bancas numa tiragem de 3,3 milhões de exemplares, portanto é o best-seller dos best-sellers. Exige dos editores pontualidade absoluta, pois não se pode adiar a publicação um ano ou um ano e meio. Dos revisores, requer perfeição profissional, porque o menor erro provocaria perturbações nas mentes. Dá até medo imaginar duas quartas-feiras numa semana, ou a festa de São Jorge no dia de São José. O calendário não é uma obra científica em que tradicionalmente se acrescenta uma errata. Também não é um volume de poesia no qual os erros de revisão passam por caprichos da inspiração. Dessa argumentação, conclui-se que estamos lidando com uma raridade editorial. Mas isso não é tudo. O destino do calendário é ser eliminado pelo arrancar das folhas. Milhões de livros sobrevivem a nós, e, desses, uma quantidade considerável é mal escrita, sem sentido e datada. O calendário é o único livro que não almeja sobreviver a nós, não aspira a uma sinecura na estante da biblioteca, está programado para uma existência breve. Na sua modéstia, nem sonha ser lido atentamente, folha por folha, e somente por alguma eventualidade está repleto de textos. Tem um pouco de tudo: aniversários históricos que caem em determinado dia, cantigas, máximas, anedotas (aquelas de calendários, é óbvio!), informações estatísticas, quebra-cabeças, advertências sobre fumar e dicas sobre como eliminar insetos domésticos. Uma misturada incrível de matérias, dissonâncias atrozes: a solenidade da história convivendo com a banalidade do cotidiano, as sentenças dos filósofos concorrendo com as previsões do tempo rimadas, as biografias dos heróis ombreando-se indulgentemente com os conselhos práticos da tia Clementina. Quem quiser que fique chocado; quanto a nós, aqui em Cracóvia (e, portanto, em círculos próximos de tumbas reais), as ambiguidades do calendário nos comovem. No meu caso, até percebo nele alguma semelhança secreta com os grandes romances universais, como se o calendário fosse parente da epopeia, um filho ilegítimo… E, quando numa determinada data (auspiciosa, espero!) encontrei um fragmento de um de meus poeminhas, aceitei o fato com humildade melancólica. Do outro lado, havia uma receita de torta de ricota vienense: meio quilo de queijo, uma colher de fécula de batata, uma xícara de açúcar, seis colheres de manteiga, quatro ovos, aromatizante, passas. E, concluindo com as passas, desejo aos meus magnânimos leitores um feliz ano-novo.

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SOLIDÃO POVOADA

O homem e aqueles outros do cosmos, de Olgierd Wolczek. Wroclaw: Ossolineum, 1983

A vida é exigente e demanda uma composição de condições deveras especiais – um exemplo delas se observa no nosso planeta e, até agora, em nenhum outro lugar. O que não significa que, entre bilhões e bilhões de estrelas, uma situação semelhante não possa acontecer. Pode, claro, e é justamente de especulações sobre esse tema que trata o livro de Olgierd Wolczek, divulgador do campo da astronomia e da astrofísica que faleceu recentemente. Livros dessa natureza despertam sentimentos mistos em mim porque, ainda que o problema da existência de vida fora da Terra me interesse bastante, preferiria, entretanto, que a questão não fosse decidida de maneira tão rápida e positiva. Por exemplo, o fato já praticamente aceito de que não existe vida em nenhum outro planeta do nosso sistema solar mais me alegra do que desaponta. Gosto de ser um capricho da natureza no nosso único, extraordinário planeta Terra. Além disso, não espero por nenhum óvni, e só vou acreditar neles quando me derem uma cutucada nas costas. De resto, nem sei o que esperar deles. Quem sabe venham só fazer uma visita de inspeção às borboletas-azuis ou às moscas-das-frutas. A convicção de que nos ajudariam em tudo, se quisessem, me parece terrivelmente banal. No início do século, estavam na moda mesinhas giratórias ao redor das quais se invocava o espírito de Copérnico para saber quem roubou um anel com pedra, ou o espírito de Sabina, morta aos três anos, que podia predizer com autoridade se, e quando, começaria a guerra na Europa. Presumia-se que cada espírito deveria saber tudo e ser bom em tudo. Mas por que escrevo sobre acreditar ou não acreditar em óvnis? Parece até mesmo falta de tato em relação a um livro que se atém aos fatos científicos, tirando conclusões cautelosas unicamente a partir deles. Bem, talvez seja por isso que o faço, porque a crença em óvnis tem um lado sério: o medo da solidão cósmica. Não tenciono fazer troça, somente colocar algumas perguntas. Será que essa solidão seria realmente tão terrível? Tão insuportável? Tão “desastrosa e repulsiva”, como em determinado momento sublinha o autor? Será que realmente precisaríamos cair no mais profundo desespero com a notícia de que não  existe vida fora da Terra? Ah, já sei, já sei, nenhum cientista vai dar uma notícia dessas nem hoje nem amanhã, pois não há quaisquer dados, nem mesmo a possibilidade de consegui-los num futuro concebível. Mas vamos considerar uma revelação semelhante. Seria ela a pior de todas as notícias possíveis? Será que, ao contrário, não nos tornaria mais fortes e lúcidos, não nos ensinaria respeito mútuo e não nos forçaria a pensar num modo de vida um pouco mais humano? Será que falaríamos tanta asneira e tantas mentiras sabendo que ressoam por todo o cosmos? Talvez a vida singular do outro  finalmente adquirisse o valor que merece, o valor de um fenômeno, o valor de uma revelação, o valor de um espécime único na escala universal? Todo encenador sabe que a minúscula figura do ator num enorme palco vazio com um fundo de cortinas escuras torna-se monumental a cada palavra e gesto… E, ademais, será que essa solidão que tememos tanto seria realmente solidão? Junto a todas as outras pessoas, plantas e animais? Pode-se ainda falar de uma solidão tão complexa e variada? Eu acrescentaria que o pensamento da solidão da Terra no cosmos também ocorre a alguns astrofísicos contemporâneos. Poucos, é verdade, mas alguns. E se estiverem equivocados, que equívoco interessante!

Tradução de Regina Przybycien

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