A princípio considerada uma pedra atirada no jardim das belas-artes, a fotografia transformou-se, no século 20, e mais particularmente depois da pop-art, numa das novas fronteiras onde a arte encontra a não arte. Essa expansão da arte em direção à fotografia foi, como todas as con­quistas, uma assimilação (do outro) e uma alteração (pelo outro). A arte deixou o terreno das belas-artes. O ver foi substituído pelo fazer. O modelo do estudo (como exercí­cio preparatório ou até mesmo simples exercício) foi subs­tituído pelo da apropriação estética.

Os fotógrafos do século 19 denominavam “estudos” tudo que não ousavam apresentar como obra autônoma, como composição acabada, submetendo-se assim, ou fingindo submeter-se, às categorias convencionais das belas-artes. Em O salão, de 1959, Baudelaire lastima que os pintores realistas, sobretudo os paisagis­tas, ousem apresentar simples estudos como quadros de verdade. Hoje, essas querelas de palavras parecem distantes, como se a arte houvesse adotado outro vocabulário. A ima­gem registrada, “coisa vista”, fragmento de experiência, imagem capturada – às vezes de surpresa –, não é um estudo. A con­cepção de mundo do qual ela procede, ou que dela resulta, não é mais aquela, estável, una, que o homem do século 19 ainda podia deduzir do modelo da composição pictó­rica quando falava do “quadro da natureza”. No século 19, esse quadro, ao se multipli­car, rachou, difratando-se nos espelhos da reprodução. A industrialização da fotografia mudou a escala de produção das imagens.

No início, o quadro pictórico impôs, e continua a impor, a ordem de medida, em todos os sentidos do termo, da imagem fotográfica. Essa referência estética, con­tudo, fundamentava-se na permanência do modelo artesanal da produção de ateliê. A fotografia dissociou-se da pintura quando passou ao regime industrial. Incontáveis reproduções de quadros vieram ocupar lugar nos álbuns ao lado de vistas de monu­mentos e logradouros turísticos, que são, por sua vez, reproduções, uma vez que tratam esses motivos como imagens. Dessa forma, o quadro da natureza viu-se esface­lado, quando, de um lado, a natureza, de tanto ser tratada efetivamente como um quadro cujos detalhes reproduzimos, foi reduzida a uma coleção de fragmentos; e, de outro, quando as próprias pinturas tor­naram-se imagens miniaturizadas, análo­gas e assimiláveis a todas as outras imagens triadas pelo registro no estoque inesgotá­vel do visível. Cézanne, embora ainda fale do quadro da natureza, evoca um modelo já antigo, quando não esgotado, que ele é obrigado a reconstruir integralmente, por meio do estudo.

Cézanne e seus contemporâneos, observava Robert Smithson, foram expulsos de seus ateliês pela imagem fotográfica. Competiram efetivamente com a fotografia e foram obri­gados a ir ao motivo. Com a fotografia, a natu­reza tornou-se um conceito impossível.1

 Doravante, são poucos os pintores a ignorar que a fotografia como modelo subs­tituiu a natureza. Uma primeira exposição das coleções de fotografias da Escola de Belas-Artes de Paris em 1982 intitulava-se, precisamente, A fotografia como modelo. Essa fórmula pode ser entendida em seu sentido mais amplo. Warhol e Richter não copiaram fotografias. Não era mais a época da cópia. Eles integraram a reprodução e apropria­ram-se das fotografias para com elas fazer quadros pintados. A fotografia não era mais apenas um reservatório de imagens passí­veis de ser estudadas e utilizadas, mas um modelo em si, um paradigma. Após ter sido, na primeira fase de suas experimentações estéticas e técnicas, pensada analogamente ao estudo pictórico ou gráfico, a fotografia tornara-se o modelo de uma apropriação estética que, sem dúvida, é o procedimento mais comum da arte do século 20.

É possível detectar os antecedentes dessa atitude no turismo culto do século 18, nos amantes de natureza pitoresca que percor­riam uma paisagem procurando nela pontos de vista, equipados com os instrumentos de óptica utilizados pelos pintores, como o famoso espelho de Claude.2 No entanto, esse jogo ainda era restrito, pois a imagem capturada pelo espelho não pode ser fixada, registrada. Após a invenção da fotogra­fia, quando ela se torna registro, o jogo se expande consideravelmente, até integrar­-se aos hábitos do turismo de massa. Nos artistas, a lógica de apropriação desenvol­veu-se sobretudo na exploração de arqui­vos, privados ou públicos. Assemelha-se, a princípio, aos procedimentos de citação, que, desde o maneirismo, privilegiam os exemplos da história da arte calcados na história da natureza. A colagem e a foto­montagem estenderam a citação aos reper­tórios de imagens as mais variadas. Mas foi com a invenção do documento poético pelos surrealistas que a apropriação tornou­-se explícita, quando as imagens anônimas começaram a ser reproduzidas nas revistas de vanguarda, ao lado das fotografias de Man Ray, Kertész, Krull, Lotar etc. A arte moderna reatava com uma cultura da curio­sidade que, desde a Renascença, associara arte, ciência, história e entretenimento.

Marcel Duchamp opôs a decisão artística à apropriação estética ao estabelecer a indife­rença (suspensão do juízo de gosto) ao princí­pio do ready-made. A distância entre as duas atitudes, porém, é irrisória, e a indiferença, insustentável. Sua atração pelas formas tec­nológicas (a famosa hélice contemplada no Salão da Aviação ao lado de Léger e Brancusi), seu interesse pela fotografia e os jogos ópti­cos, sua rejeição à “cozinha pictórica”, fazem parte de um revival da curiosidade.

Portanto, se as coleções de fotografias formadas no século 19 com fins pedagógi­cos foram, nos últimos dez anos, objeto de uma reavaliação estética, isso não se deve apenas à existência de uma história da fotografia ou de historiadores da fotografia, mas também ao fato de as noções de docu­mento poético e de apropriação tenderem a reconstituir uma cultura da curiosidade anterior às especializações institucionais.

Todavia, entre os gabinetes de curiosi­dades e as coleções de imagens documen­tais, a distância histórica é irredutível. À heterogeneidade dos objetos e materiais, opõe-se a uniformidade da imagem. Esta é o equivalente genérico dos objetos de conhe­cimento, estudo, contemplação e uso, os quais a imagem permite reunir num lugar comum. Ela nivela o que aglutina. Allan Sekulla reconheceu nesse nivelamento o princípio do formalismo:

Da mesma forma como o dinheiro é a medida padrão do valor de troca, reunindo todos os bens desse mundo num sistema único de transações, a fotografia, a princípio, reduz todas as percepções a relações de equivalên­cia formal. […] O formalismo reúne todas as imagens do mundo num único grande mer­cado estético, arrancando-as de todo con­texto de origem, sentido e uso.3

Os historiadores da fotografia que hoje exploram arquivos documentais veem-se então confrontados com uma dupla tarefa. Se, por um lado, “inventam” documentos artísticos, atitude justificada pelo exemplo da arte moderna e contemporânea, por outro, devem evitar reduzir uma diversi­dade histórica que corresponde a funções, usos e procedimentos distintos.