Os privilégios – por Stendhal

Os privilégios

STENDHAL

10 de abril de [18]40, Mero

 

God me conceda a seguinte carta de privilégios:

ARTIGO 1

Nenhuma dor séria até a velhice muito avançada: e, então, nenhuma dor, mas a morte por apoplexia, na cama, durante o sono, sem nenhuma dor moral ou física. Não mais que três dias de indisposição a cada ano. O corpus inodoro, assim como tudo que dele provém.

 

ARTIGO 2

Ninguém há de perceber ou suspeitar dos milagres seguintes.

 

ARTIGO 3

A mentula à maneira do dedo indicador, no que diz respeito à dureza e ao movimento, ambos sempre ao bel-prazer. Quanto à forma, duas polegadas maior que o maior dedo do pé, mesma grossura. Mas prazer para a mentula apenas duas vezes por semana. Vinte vezes a cada ano, o privilegiado poderá transformar-se na criatura que bem quiser, contanto que esta já exista. Cem vezes a cada ano, ele saberá por vinte e quatro horas a língua que bem quiser.

 

ARTIGO 4

Milagre. O privilegiado levará um anel num dos dedos; ao apertá-lo enquanto olha para uma mulher, esta cairá de amores por ele, com a mesma paixão que se atribui a Heloísa diante de Abelardo. Se o anel for só molhado com um pouco de saliva, a mulher será apenas uma amiga terna e dedicada. Se o pri­vilegiado olhar para a mulher e tirar o anel do dedo, cessarão os sentimentos inspirados em virtude desses privilégios. O ódio transforma-se em benevo­lência quando ao mesmo tempo se olha para o ser tomado de ódio e se esfrega o anel contra o dedo. Esses milagres não poderão se dar mais que quatro vezes a cada ano para o amor-paixão, oito vezes para a amizade, vinte vezes para a anulação do ódio e cinquenta vezes para a sugestão de simples benevolência.

 

ARTIGO 5

Cabelo bonito, dentes excelentes, pele boa, nunca áspera. Odor suave e leve. Em 1 de fevereiro e 1 de junho de cada ano, as roupas do privilegiado voltam a ser como eram na terceira vez que as usou.

 

ARTIGO 6

Milagres. Aos olhos de todos que não me conhecem, o privilegiado terá as formas do general De Belle, morto em Santo Domingo, mas sem nenhuma imperfeição. Saberá jogar perfeitamente o whist, o écarté, o bilhar, o xadrez, mas não poderá jamais ganhar mais que cem francos; saberá atirar com pis­tola, montar a cavalo e esgrimar à perfeição.

 

ARTIGO 7

Milagre. Quatro vezes a cada ano, o privilegiado poderá se transformar no ani­mal que bem quiser e, em seguida, voltar a ser homem. Quatro vezes a cada ano, poderá se transformar no homem que bem quiser, para depois concen­trar sua vida num animal qualquer, em caso de morte ou de impedimento do primeiro homem em que se transformou, podendo assim voltar à forma natural do ser privilegiado. Assim, o privilegiado poderá, quatro vezes por ano e por um tempo ilimitado a cada vez, ocupar dois corpos ao mesmo tempo.

 

ARTIGO 8

Quando segurar ou puser num dos dedos, por dois minutos, um anel antes levado por um instante à boca, o homem privilegiado será invulnerável pelo tempo que houver designado. Dez vezes a cada ano, terá uma visão de águia e poderá correr cinco léguas em uma hora.

 

ARTIGO 9

Todos os dias, às duas horas da manhã, o privilegiado encontrará em seu
bolso um napoleão de ouro, mais o valor equivalente a quarenta francos na moeda corrente do país onde se encontrar. As somas que porventura lhe roubarem reaparecerão, às duas horas da manhã, sobre uma mesa diante dele. No momento de golpeá-lo ou de lhe servir veneno, os assassinos terão um ataque de cólera aguda, que durará oito dias. O privilegiado poderá abre­viar essas dores, dizendo: “Peço que os sofrimentos de fulano cessem agora ou sejam transformados em tal ou tal dor”. Os ladrões terão um ataque de cólera aguda quando estiverem a ponto de cometer o roubo.

 

ARTIGO 10

Durante a caça, oito vezes a cada ano, uma bandeirola indicará ao privile­giado, a uma légua de distância, a presa e sua posição exata. Um segundo antes que a presa fuja, a bandeirola se iluminará; desnecessário dizer que a dita bandeirola não será visível para ninguém senão o privilegiado.

 

ARTIGO 11

Uma bandeira semelhante indicará ao privilegiado as estátuas ocultas embaixo da terra, sob as águas ou atrás de paredes, bem como a natureza dessas está­tuas, de quando são, quem as fez e qual o preço que alcançarão, uma vez desco­bertas. O privilegiado poderá transformar essas estátuas numa bala de chumbo de um quarto de onça. Esse milagre da bandeira e da transformação sucessiva em bala e em estátua não poderá se dar mais que oito vezes a cada ano.

 

ARTIGO 12

O animal montado pelo privilegiado ou atrelado a seu veículo jamais ficará doente, jamais cairá. O privilegiado poderá se unir a esse animal, de modo a lhe instilar suas vontades e partilhar suas sensações. Assim, quando montar um cavalo, o privilegiado se unirá a ele e lhe instilará suas vontades. O ani­mal, assim unido ao privilegiado, terá força e vigor três vezes maiores que os que possui em estado normal.

Transformado, por exemplo, em mosca e pousado sobre uma águia, o pri­vilegiado se unirá a essa águia.

 

ARTIGO 13

O privilegiado não poderá roubar; caso tente fazê-lo, seus órgãos se recusarão a tal ação. Poderá matar dez seres humanos a cada ano, contanto que não lhes tenha falado antes. No primeiro ano, poderá matar um homem, contanto que não lhe tenha dirigido a palavra em mais de duas ocasiões diferentes.

 

ARTIGO 14

Caso o privilegiado tente contar ou revelar qualquer um dos artigos de sua carta de privilégios, sua boca não será capaz de formar um único som e ele terá dor de dente durante vinte e quatro horas.

 

ARTIGO 15

Caso o privilegiado aperte um anel contra o dedo e diga: “Peço que os insetos daninhos morram”, todos os insetos num raio de seis metros do anel, em todas as direções, cairão mortos. Entre os ditos insetos, contam-se as pulgas, os percevejos, os piolhos de toda espécie, as sarnas, os mosquitos, as moscas, os ratos etc. etc.

As cobras, as serpentes, os leões, os tigres, os lobos e todos os animais venenosos correrão em fuga, amedrontados, e tomarão uma légua de distância.

 

ARTIGO 16

Seja onde for, ao dizer: “Peço por minha comida”, o privilegiado encontrará: duas libras de pão, um bife ao ponto, um pernil idem, uma garrafa de Saint-Julien, uma garrafa de água, uma fruta, um sorvete e meia xícara de café. Esse pedido será aten­dido duas vezes a cada vinte e quatro horas.

 

ARTIGO 17

Dez vezes a cada ano, a um pedido seu, o privilegiado não dei­xará de acertar, com um tiro de fuzil, pistola ou outra arma qualquer, o objeto que designar.

Dez vezes a cada ano, ele esgrimará com o dobro da força de seu adversário ou companheiro de armas; mas não poderá causar ferimento que leve a morte, dor ou incômodo superior a cem horas.

 

ARTIGO 18

Dez vezes a cada ano, a um pedido seu, o privilegiado poderá reduzir em três quartos a dor da criatura que designar ou, estando essa criatura a ponto de morrer, poderá prolongar sua vida em dez dias, reduzindo em três quartos a dor atual. A um pedido seu, poderá obter para essa criatura em sofrimento uma morte súbita e sem dor.

 

ARTIGO 19

O privilegiado poderá transformar um cachorro em mulher, bela ou feia; essa mulher lhe dará o braço e terá o espírito da sra. Ancilla e o coração de Mélanie.1 Esse milagre poderá se renovar vinte vezes a cada ano.

O privilegiado poderá transformar um cachorro num homem com o feitio de Pépin de Bellisle e o espírito de *** (o médico judeu).2

 

ARTIGO 20

O privilegiado jamais será mais infeliz do que foi entre 1º de agosto de 1839 e 1º de abril de 1840.3

Duzentas vezes a cada ano, o privilegiado poderá reduzir o sono a duas horas, que produzirão o efeito físico de oito horas. Terá a visão de um lince e a agilidade de um Debureau.4

 

ARTIGO 21

Vinte vezes a cada ano, o privilegiado poderá adivinhar os pen­samentos de todas as pessoas a seu redor, a vinte passos de dis­tância. Cento e vinte vezes a cada ano, poderá ver o que está fazendo nesse exato instante a pessoa que designar; exceção completa é feita para a mulher a quem mais ama. Faz-se igual­mente exceção para as ações vis e asquerosas.

 

ARTIGO 22

O privilegiado não poderá ganhar, pelos meios supramencio­nados, nenhum dinheiro além de seus sessenta francos diários. Cento e cinquenta vezes por ano, poderá obter, a um pedido seu, que uma dada pessoa esqueça-se por inteiro do privilegiado.

 

ARTIGO 23

Dez vezes por ano, o privilegiado poderá ser transportado para o lugar que bem quiser, à razão de uma hora para cada cem léguas; durante esse trânsito, ele dormirá.

 

 

Henri Beyle, o STENDHAL (1783-1842), escreveu esta lista de desejos em forma de tratado jurídico aos 57 anos, dois anos antes de morrer. O texto foi incorpo­rado ao autobiográfico Lembranças de egotismo, que só seria publicado em 1892 como parte da vasta obra póstuma do autor de A Cartuxa de Parma.

 

tradução de SAMUEL TITAN JR.

 

1. “Ancilla” (“serva” ou “auxiliar”, em latim) remete à madame Ancellot (1792-1875), mulher de letras que Stendhal conheceu em 1827; e “Mélanie”, a Mélanie Guilbert (1780-1828), amor da juventude do escritor. [N. Do T.]

2. Segundo Romain Colomb, primo de Stendhal, trata-se de um certo dr. Kouffe. [N. Do T.]

3. É o momento em que Giulia Rinieriabandona Stendhal e este vive seu last romance com a misteriosa “Earline”. [N. Do T.]

4. Célebre mímico e saltimbanco parisiense. [N. Do T.]

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *