1.

Quase ao mesmo tempo em que Pablo Picasso pintava Guer­nica, em maio e junho de 1937, Sergei Eisenstein começava a preparar Os cavaleiros de ferro (Alexander Nevski), em junho e julho de 1937, e José Clemente Orozco dava início ao mural La Conquista de México (setembro de 1937). Nas duas pintu­ras e no filme, a imagem de um cavalo representa o horror da guerra. São três obras encomendadas pelo Estado. Orozco atendia a um convite do governador de Jalisco: para produ­zir murais para o salão nobre da universidade, o palácio do governo e o Hospício Cabañas, em Guadalajara. Para Eisens­tein, havia sido proposto um tema pela Direção Estatal da Indústria de Cinema e Fotografia (Guk –— Gosudarstvennoe Upravlenie Kinematografii) de Moscou, “uma prescrição, com a exatidão de uma fórmula matemática, para a ‘criação’ de um personagem que estivesse de acordo com o tema”. E a Picasso, fora feito um convite do governo da República espa­nhola: a produção de um trabalho especial para o pavilhão da Espanha na Exposição Internacional de Artes e Técni­cas da Vida Moderna, em Paris.

Nenhuma relação direta entre essas obras, além do fato de responderem à tensão daquele momento entre a Guerra Civil Espanhola, iniciada em julho de 1936, e a Segunda Guerra Mundial, que começaria em setembro de 1939. Em 7 de julho de 1937 – um mês depois de Picasso terminar de pintar Guernica, uma semana antes da inauguração do pavilhão espa­nhol na feira de Paris –, o Japão entrava em guerra com a China.

Nenhuma relação direta entre essas obras, mas talvez elas possam ser vistas hoje como se formassem uma trilogia que parte de Orozco, com o cavalo espanhol na conquista do México –— cabeça de ferro e corpo de engre­nagens, correntes e fuzis – passa por Picasso, com o cavalo espanhol de Guer­nica cabeça jogada para cima, boca aberta, grito contorcido no meio do bombardeio alemão – e vem até Eisenstein, com o cavalo alemão na batalha do gelo – a armadura branca da cabeça de porco destruída na neve.

 

Cortesia Naum Kleiman

Os originais (anotações e schetches) são do Arquivo Eisenstein, de RGALI (Russian State Archive of Literature and Art) – coleção # 1923-II, unidade 194. As cópias foram gentilmente cedidas pelo Eisenstein Memorial Flat

 

2.

Em janeiro de 1937, pouco antes de receber o convite para participar do pavi­lhão espanhol na exposição de Paris, Picasso começou a produzir uma série de gravuras, Sueño y mentira de Franco. Ao todo, 18 estampas dispostas como numa história em quadrinhos em duas folhas de 30 por 40 centímetros. Na primeira folha, nove quadros e uma data, 8 de janeiro. Na segunda folha, três datas: 8 de janeiro, 9 de janeiro, 7 de junho. As quatro últimas gravuras da série, de estilos diferentes das anteriores, foram produzidas depois de Guernica, que Picasso acabou de pintar em 4 de junho. De certo modo, são uma extensão do quadro. Mostram um rosto de mulher que chora e três mulheres com o filho morto. O poema escrito por Picasso para acompanhar as gravuras parece uma descrição de Guernica: “Gritos de niños, gritos de mujeres, gritos de pájaros, gritos de flores, gritos de maderas y de piedras, gritos de ladrillos, gritos de muebles, de camas, de sillas, de cortinas, de cazuelas, de gatos y de papeles, gritos de olores”.

Em fevereiro de 1937, meses antes de dar início ao mural do Hospício Cabañas, Orozco entregou o primeiro dos três murais que pintou em Guada­lajara, o do salão nobre da universidade. Nas paredes em volta do palco, três painéis: O povo e os líderes, Trabalhadores e soldados e Os miseráveis. Um quarto painel na cúpula: O homem. Em agosto, terminou o segundo mural, nas pare­des em torno da escadaria central do palácio do governo: O padre Hidalgo e as lutas fratricidas, As forças tenebrosas, O circo contemporâneo e As vítimas. Em setembro, começou a pintar os 54 painéis e a cúpula central, O homem de fogo, que contam a conquista do México no Hospício Cabañas.

Em março de 1937, meses antes da encomenda para filmar Os cavaleiros de ferro, Eisenstein fora proibido de concluir O prado de Bejin (Bejin lovii). Mon­tagem terminada, filme exibido para a direção de cinema, a proibição foi ime­diata. Inspirado num conto de Ivan Turguêniev (em Anotações de um caçador/ Zapíski Okhótnika, publicado em 185 2) e na história de Pavlik Morozov, jovem de 13 anos assassinado pelos pais em 1932 depois de denunciá-los como ini­migos do socialismo, O prado de Bejin começou a ser filmado em maio de 1935. Uma primeira interdição interrompeu o filme em abril de 1936. As filmagens foram retomadas em agosto desse mesmo ano, com a substituição do pri­meiro roteiro, de Alexander Rjechevski, por outro escrito por Eisenstein e Isaac Bábel. Em 17 de março de 1937, sendo o filme duramente criticado pela direção estatal de cinema, todos os materiais foram confiscados – conta Jay Leyda, ex-aluno de Eisenstein e seu assistente de direção em O prado de Bejin, no livro Eisenstein at work, escrito em parceria com Zina Voynow. Quando, no dia seguinte ao da proibição, Eisenstein chegou para montar os negativos, foi impedido de entrar na sala com uma frase seca: “A ordem não é montar, mas desmontar o filme”, conta Esfir Tobak, assistente de montagem de O prado de Bejin, em depoimento reproduzido no livro de Barthélemy Amengual, ¡Que viva Eisenstein!. No dia 19, a proibição era anunciada nos jornais, com a reco­mendação de que o diretor não fosse mais autorizado a fazer filmes. O mate­rial do filme, recolhido nos arquivos da direção de cinema, diz a versão oficial, foi destruído durante a Segunda Guerra Mundial. “Duas catástrofes”, anotou Eisenstein anos mais tarde em suas memórias, “a ruína de ¡Que viva México! e a tragédia de O prado de Bejin…”.

O que Picasso realizou pouco antes de Guernica, o que Orozco pintou pouco antes do mural do Hospício Cabañas e o que Eisenstein não pôde concluir pouco antes de filmar Os cavaleiros de ferro são gestos que já fazem parte dessas obras.

Guernica, na realidade, começa antes e termina depois de Guernica. Tem iní­cio nas gravuras de Sueño y mentira de Franco – ou mesmo antes, nas cenas de touradas do início da década de 1930, figuras em que o cavalo ferido escancara a boca num grito; na série Minotauromaquia, em que já se encontram o touro, o cavalo ferido, a mulher na janela, a mulher com o braço estendido com uma lamparina ou vela acesa. Começa aí e vai até as cabeças de mulher chorando que Picasso desenhou e pintou até dezembro de 1937.

O homem de fogo da cúpula do Hospício Cabañas começa no homem da cúpula da Universidad de Guadalajara e passa pelo fogo na mão do padre Hidalgo e nas lutas fratricidas que Orozco pintou nas paredes do palácio do governo. Em outras palavras, La conquista de México sai do circo contemporâ­neo e das forças tenebrosas.

Os cavaleiros de ferro começa com uma lembrança mexicana de Eisenstein, uma calavera, um crânio atravessado por uma flecha. Não fosse a eliminação de um rolo que “esqueceram” de incluir na cópia enviada para aprovação, os dez minutos da batalha fratricida entre os habitantes de Novgorod, seria fácil perceber também que a história de Alexander Nevski começa no México e passa pelo prado de Bejin antes de chegar aos cavaleiros teutônicos, vence­dores em Pskov e derrotados na batalha no lago gelado próximo de Novgorod.

 

3.

Nos estudos para a realização do mural do Hospício Cabañas, desenhos a lápis e guache sobre papel, o cavalo de ferro tem um nome: A Espanha de Carlos v. No mural, a figura – máquina de guerra, não gente ou animal, um cavalo e um cavaleiro feitos de engrenagens, correntes e fuzis – ocupa um dos seis painéis do teto do Cabañas, no extremo esquerdo do prédio. Abaixo de A Espanha de Carlos v, nas paredes laterais, em torno da janela, retratos de Cervantes e de El Greco. Os dois painéis que se seguem à Espanha de Carlos v mostram uma cena de batalha – nos estudos, anotada com o nome de Belicosidade – e um retrato de Hernan Cortés, figura formada pela montagem de um rosto humano sobre uma engrenagem metálica idên­tica à do cavalo de engrenagens e correntes. No outro extremo da constru­ção, à direita da cúpula central, os painéis do teto mostram as figuras de um padre, um retrato do rei Filipe n de Espanha e, entre um e outro, o painel que nos estudos tem o nome de Os cavalos na conquista: um guerreiro de espada e armadura de ferro num cavalo de duas cabeças.

Eisenstein não chegou a ver os murais de Guadalajara, eles ainda não existiam quando ele esteve no México, entre dezembro de 1930 e fevereiro de 1932, para as filmagens de ¡Que viva México!. Nem chegou a se encontrar pessoalmente com Orozco. Mas viu trabalhos do pintor nos Estados Unidos – o mural da New School for Social Research, em Nova York, e o Prometheus do Pomona College, na Califórnia. O breve comentário poético que fez num ensaio, que se refere também a Rivera e a Siqueiros e tem como título Prometheus, pode ser tomado como expressão do que toma conta do espec­tador diante de La conquista de México do Hospício Cabañas. Diz Eisenstein que “não há nada mais fascinante do que observar os voos fulgurantes de Orozco na parede, porque o mundo que ele cria com sua pintura quebra o equilíbrio do universo, surge como uma faísca brilhante no lugar do sol plácido de cada dia”.

A conquista do México, anotou Orozco em sua autobiografia, “parece que foi ontem: a destruição de Tenochtitlán parece ter acontecido um ano antes, não no começo do século 16”. No tempo da conquista, o ferro e o fogo; no presente, as correntes e os fuzis. O passado como experiência presente ou, uma vez que se quebra o equilíbrio do universo, o presente como uma experiência do passado. Os guerreadores e as vítimas: as imagens que no Hospício Cabañas contam a chegada de Cortés e da Espanha de Carlos v são idênticas às que compõem as lutas fratricidas e as forças tenebrosas nas pare­des do palácio de governo. As vítimas sob as patas dos cavalos e o conquista­dor no teto do Cabañas são como O povo e os líderes na parede do salão nobre da universidade. Na guerra da conquista do México, Orozco pinta também a Guerra Civil Espanhola, a guerra na Ásia e o que já se anunciava nesses conflitos, a Segunda Guerra Mundial. No mural, uma operação de fusão e deslocamento semelhante à realizada por Picasso em Guernica.

Os jornais continuavam a publicar fotos da destruição de Guernica no bombardeio de 26 de abril de 1937 quando Picasso, em 1o de maio, riscou, lápis sobre papel, o primeiro esboço da tela que começaria a pintar uma semana mais tarde: a figura retorcida de um cavalo. Logo, lápis sobre papel e óleo sobre tela, novos esboços: o detalhe da cabeça de um cavalo, boca aberta, língua e dentes projetados para fora num grito de dor. Em Guernica, o cavalo seria a figura dominante. As fotos de Dora Maar que registram o pro­cesso de trabalho de Picasso revelam as seguidas alterações da tela em busca da forma e da posição exatas do cavalo. No primeiro instante, ele aparece dobrado, retorcido, caído no chão. No quadro finalizado, ele é uma cabeça que salta para fora do corpo num último grito. Em Guernica, enfim, nem armas, nem soldados, nem aviões, nem bombardeios: uma cabeça de cavalo que grita. Mãe com o filho morto no colo, mulher em fuga, braços erguidos em desespero, mas, principalmente, cabeça de cavalo. Não a guerra, mas o horror da guerra, operação de fusão e deslocamento próxima da realizada por Orozco em La conquista de México e não muito distante da realizada por Eisenstein em Os cavaleiros de ferro.

 

4.

Em fevereiro de 1937, perto de concluir a montagem de O prado de Bejin, Eisenstein começou a pensar em seu próximo filme com uma série de dese­nhos. Seria sobre a Espanha, então há sete meses em guerra civil. Alguns desses desenhos são esboços de vida independentes, figuras de um só traço sob o tema “bombas e terror na Espanha”; outros são estudos de cenas do filme, que se passaria quase inteiramente na plaza Mayor de uma cidade atacada por soldados franquistas. O ator e cantor americano Paul Robe­son, em Moscou para uma série de concertos, colocara-se à disposição para trabalhar entre julho e outubro no filme. Robeson estava então em evi­dência, tanto por seu trabalho no teatro (interpretara Otelo, em Londres) e no cinema (como protagonista da adaptação para cinema de The Empe­ror Jones, de Eugene O’Neil), quanto por seu ativismo político –— atuara em espetáculos de solidariedade às Brigadas Internacionais e contra o racismo e o nazismo. Ao passar por Berlim a caminho de Moscou, ele fora agredido pelas tropas de choque do partido nazista. Alguns anos antes, em 1932, Eisenstein tentara fazer um filme com o ator, Black Majesty, mas o projeto fora proibido. Em Hispania, Robeson faria o papel de um soldado marro­quino – contou o diretor em carta a Jay Leyda, datada de 1º de fevereiro de 1937: “Um tema cola com perfeição no outro, a luta contra o racismo e contra o nazismo na guerra revolucionária na Espanha”.

Da mesma forma que os episódios de ¡Que viva México! foram inspirados em Posada, Siqueiros, Rivera e Orozco, o filme sobre a Espanha seria, muito provavelmente, em alguma medida inspirado em El Greco. E, por isso, Eisens­tein começou a redigir, ainda em fevereiro, anotações para um ensaio sobre o pintor, originalmente com título em espanhol, El Greco y el cine”, que termi­nou de escrever em setembro de 1937.

No ensaio, entre várias outras observações, Eisenstein diz que El Greco pinta como se filmasse com uma lente de 28 milímetros; diz que essa obje­tiva cria um conflito entre o objeto e sua aparência: a mão de uma pessoa estendida na direção da lente aparece incrivelmente grande em relação ao corpo inteiro; que, no cinema, a lente de 28 milímetros permite repre­sentações expressivas, deformadas, como as dos quadros de El Greco; que Tempestade sobre Toledo é uma tela que resulta não de um único ponto de vista, mas de um passeio pela cidade e pelos arredores, ou, em outras pala­vras, da montagem de diferentes pontos de vista; que esta é a primeira pai­sagem da história da pintura, a primeira paisagem em si e per si; que, por ser uma das primeiras paisagens sem uma figura humana, é uma imagem de forte presença humana; que Tempestade sobre Toledo é de fato um autor­retrato, não um registro de uma nuvem de tempestade sobre a cidade, mas um retrato do que o pintor sentia enquanto pintava.

Eisenstein observa ainda que El Greco e Orozco vão além da reprodu­ção das formas da natureza, que se servem de uma igual arbitrariedade no uso das cores e na relação entre as cores da obra e aquelas do modelo. Orozco muito provavelmente teria gostado do paralelo. No relato da viagem que fez em 1932 à Europa, ele se refere com entusiasmo à simplicidade geométrica do Cristo adorado na cruz, de El Greco, no Museu do Louvre, e com entusiasmo ainda maior a O enterro do conde Orgaz, na igreja de São Tomé, em Toledo. Diz, em sua autobiografia, que, em Toledo, continuam a enterrar todos os dias o conde Orgaz; diz que El Greco continua vivo ali, continua a pintar seus apóstolos todos os dias.

“El Greco y el cine” é, de modo indireto, uma anotação para pensar Hispania. Outras anotações para esse pro­jeto não realizado encontram-se nas séries de desenhos A Guerra Civil Espanhola, Bombas e Terror na Espanha, lápis preto sobre papel, com alguns detalhes traçados em ver­melho. Feitos entre fevereiro e maio de 1937, os últimos a partir das notícias do bombardeio de Guernica, os desenhos foram expostos na Espanha durante o Festival de Cinema de Huelva, em novembro de 1989, por iniciativa de Naum Kleiman, responsável pelo arquivo de Eisenstein e diretor do Museu de Cinema de Moscou. São, simultaneamente, um estudo do filme a ser feito, uma nota ou comentário visual de uma notícia de jornal sobre a Guerra Civil Espa­nhola e uma referência ao que desabava sobre a cabeça das pessoas com impacto idêntico ao de uma guerra civil na União Soviética de então. Na Espanha dos desenhos de Eisenstein, Franco e Stálin são um só personagem.

 

5.

Arnold Schönberg já tinha apresentado a sua Música para acompanhar uma cena de cinema (Begleitungsmusik zu einer Lichtspielszene, 1930), composição inspirada pelo cinema, mas não uma trilha sonora de um filme. Silvestre Revuel­tas fizera para Fred Zinnemann e Emilio Gómez Muriel a música de Redes (1936), trabalhando ao lado dos direto­res e do fotógrafo Paul Strand durante as filmagens. Virgil Thomson musicara dois documentários de Pare Lorentz, The Plow That Broke the Plains (1936) e The River (1937), com­pondo a música diretamente estimulado pelas imagens do filme, improvisando ao piano durante a projeção de uma primeira versão da montagem. Heitor Villa-Lobos acabara de compor O descobrimento do Brasil para o filme de mesmo nome de Humberto Mauro (1936).

O cinema inspirava a música, e vice-versa, quando Eisenstein e Sergei Prokofiev se reuniram para fazer Os cavaleiros de ferro. O diretor colocava em prática o que havia planejado realizar em ¡Que viva México!, que filmara em 1931 e não pôde montar: trabalhava o contraponto orquestral de imagens visuais e sonoras. A colaboração entre o compositor e o diretor é amplamente analisada em “Montagem vertical” – texto publi­cado em janeiro de 1941 na revista A arte do cinema (Iskusstvo Kino) e, pos­teriormente, retrabalhado e incluído em O sentido do filme com o título “Forma e conteúdo: prática”. Quando escreveu o ensaio, Eisenstein traba­lhava no roteiro de Ivan, o terrível, e talvez tenha retornado à relação entre imagem e música para pensar a colaboração seguinte com Sergei Prokofiev.

Não se trata, aqui, de retomar ou tentar resumir a análise que Eisenstein faz em “Montagem vertical” da relação entre música e imagem no começo da batalha do gelo, nos 12 planos montados imediatamente antes dos três quadros da paisagem de horizonte baixo e muito céu de nuvens carregadas. Mas vale retomar o que o diretor anota sobre aquilo que considera essen­cial na relação entre música e imagem num filme, “encontrar a chave para a igualdade rítmica de uma faixa de música e uma faixa de imagem” e, desse modo, “unir ambas as faixas, vertical ou simultaneamente”.

Depois de esclarecer que existem no filme cenas em que a música foi escrita de acordo com a montagem final dos planos e cenas em que os pla­nos foram montados de acordo com a música previamente gravada, Eisens­tein diz que, para a cena em que os soldados vitoriosos tocam flautas e tam­bores, não conseguiu explicar a Prokofiev o efeito que deveria ser visto por meio da música. Diz então que mandou fabricar “alguns instrumentos-ade­reços”, que filmou os instrumentos “sendo tocados visualmente (sem som)” e projetou os resultados para Prokofiev, que quase imediatamente entregou

um exato equivalente musical daquela imagem visual de flautas e tambores que eu lhe mostrara. De modo semelhante, foram produzidos os sons das grandes trombetas sopradas pelos teutônicos. Do mesmo modo, mas no sentido inverso, seções inteiras da partitura sugeriram soluções visuais plásticas que nem ele nem eu havíamos vislumbrado antes.

No ensaio biográfico sobre Eisenstein que publicou em 1972 (Kniga ob Eizensteine”), Viktor Chklóvski observa que o impulso musical-poético do filme é tão forte que espectadores de todas as épocas não sentem dificuldade em saltar sobre uma lacuna de Os cavaleiros de ferro. Conta que uma noite telefonaram da parte de Stálin, exigindo que lhe enviasse imediatamente o filme; a ordem se executou no ato e, naquela mesma noite, o filme foi exi­bido para ele. Tudo correu bem, continua Chklovski, e o diretor recebeu felicitações pelo telefone, mas uma cena não havia sido mostrada: os dez minutos da guerra entre os moradores de Novgorod foram esquecidos na sala de montagem e, uma vez o filme aprovado sem ela, a cena nunca mais voltou a ser inserida. Lembra Chklovski que, do ponto de vista da lógica da história narrada, surpreende o fato de ninguém, nenhum crítico, nenhum espectador, ter notado a falta dessa cena e de todos terem aceitado uma fala sem sentido (pois se referia à batalha entre os moradores de Novgorod na ponte da cidade). Nevski pergunta como eles, que viviam em guerra uns com outros, esperavam que ele pudesse ajudá-los. A batalha na ponte, diz Chklovski, era uma metáfora da guerra civil que dividiu o país na revolução socialista e criou um mal-estar que se estendia até aquele momento, com perseguições e prisões dos considerados inimigos do socialismo. Ele con­clui que o impulso musical-poético do filme é tão forte que o espectador não tem dificuldade de voar sobre essa lacuna semântica, assim como um esquiador atravessa o espaço depois de saltar do trampolim. Três fotogra­mas da cena da guerra civil entre os moradores de Novgorod encontram-se reproduzidos no livro de Jay Leyda e Zina Voynow, Eisenstein at work.

A música inspirada por instrumentos musicais incapazes de produzir qualquer som e a imagem inspirada pela música, e não por uma lógica qual­quer imediatamente identificável no desenrolar da história: talvez seja pos­sível imaginar que uma solução semelhante, num outro espaço de expres­são, tenha permitido a invenção de uma imagem como a do cavalo tanque de guerra – ferro, engrenagens, armas – de La conquista de México. E a inven­ção da lâmpada acesa e do pássaro apagado no horror da guerra de Guernica.

 

6.

Terminada a Exposição Internacional de Artes e Técnicas da Vida Moderna, em Paris, em novembro de 1937, Guernica foi enviado para exposições em Oslo, Copenhague e Estocolmo, entre janeiro e abril de 1938. Retornou em seguida ao estúdio de Picasso, que em outubro o enviou à Inglaterra para exposições em busca de fundos para os refugiados espanhóis. A expo­sição de Guernica em Londres foi inaugurada em novembro de 1938, mesmo mês em que, em Moscou, estreava Os cavaleiros de ferro.

Em maio de 1939, Guernica e os mais de 60 estudos feitos a lápis sobre papel e óleo sobre tela chegaram a Nova York. Em setembro, foram envia­dos para uma exposição em Los Angeles. E então, enquanto Los Angeles via Guernica, no mesmo setembro de 1939, Orozco concluía os murais do Hospício Cabañas, em Guadalajara, e na União Soviética, em razão do pacto Ribbentrop-Molotov, Os cavaleiros de ferro era retirado dos cinemas. De certo modo, o pacto de não agressão entre os nazistas e a União Soviética, assi­nado em 24 de agosto de 1939, fora pressentido dois anos antes por Oroz co, que, em O circo contemporâneo, mural do palácio de governo do estado de Jalisco, mostra um político vestido com a suástica e com a foice e o martelo, e outro com uma suástica e uma estrela vermelha. No comício do circo con­temporâneo os militantes debatem armados de foices e martelos, ou de um fascio e de uma cruz católica. A guerra e o pacto foram pressentidos também por Eisenstein, que, em Os cavaleiros de ferro, se serve da decoração de um capacete, a mão estendida sobre a cabeça como uma espécie de unicórnio, para levar um cavaleiro a repetir a saudação nazista diante do grande mestre dos teutônicos, e decora com uma suástica estilizada o chapéu do bispo que abençoa os cavaleiros teutônicos antes da batalha.

Guernica permaneceria nos Estados Unidos, no MoMA de Nova York, até setembro de 1981, quando, “restabelecidas as liberdades públicas na Espa­nha”, de acordo com a condição estabelecida por Picasso, transferiu-se em definitivo para a Espanha. Os cavaleiros de ferro retornaria aos cinemas depois da invasão da União Soviética pelos nazistas, em junho de 1941.

 

7.

Com a proibição, em março de 1937, apenas alguns fotogramas e anota­ções do roteiro de O prado de Bejin foram salvos. Os desenhos feitos por Eisenstein para preparar o filme, os negativos e as cópias de trabalho foram destruídos. Em 1967, 30 anos depois da proibição, a partir das anotações e dos poucos fotogramas preservados às escondidas, Sergei Yutkevitch e Naum Kleiman montaram um mapa cinematográfico de O prado de Bejin. Um mapa, na realidade, com duas versões. A primeira com 30 minutos, a segunda com 60. Existem ainda dois documentos indiretos do que o filme poderia ter sido e do estado de coisas que impediu a conclusão do projeto. O primeiro desses relatos está em Os erros de O prado de Bejin (Oshibki Bejin lovii), retratação que o diretor foi obrigado a escrever depois das acusações e julgamentos públicos na associação dos trabalhadores de cinema nas semanas seguintes ao anúncio da proibição. Publicada em abril de 1937, a confissão dos “erros” escrita por Eisenstein traz uma análise da estrutura de composição. Diz, entre outras coisas, que, no coração do filme, está o episódio onde o pai assassina o filho; que o assassinato, depois de o filho denunciar o pai como inimigo da coletivização da fazenda, não é um epi­sódio impossível de acontecer; que tais coisas não são típicas, mas podem acontecer; que a posição dessa cena no centro do roteiro confere ao epi­sódio o status de ação independente, suficiente em si mesma; que a cena deixa, assim, de ser uma imagem da luta de classes no país; que o assassi­nato do filho se aproxima de algo como o instante em que Abraão sacrifica Isaac; que, como a primeira versão do roteiro não conseguiu demonstrar o triunfo final da fazenda coletiva, trabalhou uma segunda versão; que, na segunda versão, o conflito entre pai e filho apareceu mais claramente como um episódio provocado pela luta de classes no campo; que, ainda assim, não se conseguiu evitar que o assassinato do filho continuasse a ser o foco central de atenção; que a primeira versão tinha eliminado qualquer traço de humanidade na figura do pai, construída com uma brutalidade inveros­símil; que a segunda foi longe demais na direção oposta: por cima de tudo aparece o drama humano do pai, o desespero incontrolável do pai obrigado a matar o filho para lutar contra o socialismo.

O segundo texto, aquele em que o diretor descreve o estado de proibi­ções e julgamentos, é “Palavra e imagem” ou “Montagem 1938” (“Word and Image”/ “Montazh 1938”), escrito em 1937, mas publicado somente em janeiro de 1939, depois da estreia e da boa acolhida a Os cavaleiros de ferro. O texto, mais tarde, foi incluído em Film Sense, editado em Nova York em 1942 e tradu­zido para o português em 1990 pela editora Jorge Zahar.

Para explicar como um diretor ou um ator de cinema compõem uma cena dramática a partir da montagem de fragmentos da vida cotidiana, para demonstrar que a estrutura de uma cena deve ser determinada pela estrutura da emoção de quem faz a cena, Eisenstein propõe um tema – Sou um crimi­noso aos olhos de meus ex-amigos e conhecidos. As pessoas me evitam. Sou colocado no ostracismo por elas – e a partir dele, duas situações: “A primeira situação na qual me imagino é o tribunal, onde meu caso está sendo julgado. A segunda situação será minha volta à vida normal depois de cumprir minha pena.” Enumera, em seguida, “apenas o que veio à minha mente quando esta­beleci para mim mesmo a tarefa”. Na breve descrição, cada frase soa como se fosse um plano de um filme:

O tribunal. Meu caso está sendo julgado. Estou no banco dos réus. A sala está repleta de pessoas que me conhecem – algumas casualmente, outras muito bem. Capto o olhar de meu vizinho fixado em mim. Somos vizinhos há 30 anos. Ele percebe que o vi olhando para mim. Seus olhos resvalam sobre mim com afetada abstração. Ele olha fixo para a janela, fingindo fastio… Outro espectador na sala do tribunal – a mulher que vive no apartamento acima do meu. Encontrando meu olhar, ela baixa os olhos, aterrorizada, enquanto olha para mim com o rabo do olho…

Algumas outras imagens do julgamento, “os sussurros de censura e o mur­múrio de vozes. Como um golpe atrás do outro, caem as palavras da súmula do promotor…” e, então,

a outra cena com a mesma nitidez – minha volta da prisão. A batida dos portões atrás de mim, quando sou libertado… O olhar espantado da empregada, que para de limpar as janelas do vizinho quando me vê entrando em meu velho prédio… Há um nome novo na caixa do correio… O chão do vestíbulo foi recentemente encerado e há um novo tapete em frente à minha porta… A porta do apartamento ao lado se abre… Pes­soas que eu nunca vira antes me olham com suspeita e inquisitivamente. Os filhos se agarram nelas; instintivamente se escondem. Embaixo, com os óculos tortos no nariz, o velho porteiro, que se lembra de mim, olha para cima através do vão da escada…

Três ou quatro cartas amareladas enviadas para meu endereço antes que minha desgraça fosse de domínio público… Duas ou três moedas tilintam em meu bolso… E então – a porta é fechada na minha cara pelos ex-conhecidos que agora ocupam meu apartamento…

E conclui:

E assim por diante. Acima está o resultado apenas de anotações sobre tudo o que passa pela minha mente e sentimentos quando, tanto como diretor quanto como ator, tento me apossar emocionalmente da situação proposta.

Pouco depois da publicação de “Palavra e imagem” na revista A arte do cinema (Iskusstvo Kino, jan. 1939), Eisenstein começou um novo filme, O grande canal de Ferghana (Bolshoi Ferganskii Kanal), mas, em agosto de 1939, momento em que alemães e soviéticos assinavam o pacto de não agressão, também este projeto foi interrompido. Pouco depois, Os cavaleiros de ferro deixava de ser exibido. Em Eisenstein at work Jay Leyda reproduz dois dese­nhos de Eisenstein, datados de 20 de setembro de 1939 e com um título em inglês: “That’s how I do feel”. No primeiro, uma figura em pé dá um tiro na cabeça. No segundo, uma figura dá uma cabeçada numa parede de tijolos. Dois meses depois, em novembro de 1939, Eisenstein voltava a desenhar cavalos teutônicos para a encenação de As Valquírias, de Richard Wagner, no teatro Bolshoi.

 

8.

Algo na composição de Guernica lembra o processo cinematográfico – talvez o preto e branco dos filmes de então, talvez o fato de o quadro se estrutu­rar por meio de um processo de montagem semelhante ao do cinema. Em Guernica, como um diretor de cinema na sala de montagem, Picasso ordena imagens que filmara em anos anteriores –— touro, cavalo, lâmpada, chama na mão estendida – para representar na estrutura da composição o bombar­deio de Guernica. A montagem convida o olhar a correr pelo quadro, assim como um filme corre na tela do cinema: a porta entreaberta, o punho cer­rado que antes de se quebrar foi lança ou espada, a seta, a mesa, a flor, o telhado, o pássaro abatido e apagado no meio do voo, o braço estendido com o lampião, a cabeça decapitada da estátua de guerreiro, a madeira partida, a pata dobrada, o pé contorcido, a mão contraída, a lâmpada acesa como um olho sobre a cabeça do cavalo, os dentes e a língua que saltam da boca para o grito de dor e os muitos gritos mudos na tela: a mãe com o filho morto nos braços, a mulher na casa em chamas, a mulher que foge para lugar nenhum, a mulher que se debruça para fora da janela –— tudo se move em Guernica.

Algo do processo do cinema, ou pelo menos da experiência do especta­dor no instante da projeção de um filme, encontra-se também nos murais de Orozco em Guadalajara –— talvez as linhas de composição dos painéis e a rela­ção que eles estabelecem com o espaço arquitetônico. A vista não alcança de uma só vez e por inteiro as imagens nas paredes em torno da escada prin­cipal do palácio do governo de Jalisco. A pintura se descobre à medida que o espectador sobe a escada, o que faz cada pedaço do mural ganhar novos contornos, se enquadrar de outro ponto de vista a cada degrau. É como se a pintura, e não o espectador, se movesse. E no Hospício Cabañas, constru­ção de quase 200 metros de extensão, com tetos e paredes curvadas e uma grande cúpula central, é impossível até mesmo a apreensão de apenas parte do mural de um único ponto de vista e de uma só vez. Enquanto caminha no meio da obra, ou aqui e ali se deita num dos bancos de madeira para melhor observar o teto, o espectador é envolvido pela sensação de que o mundo está prestes a desabar sobre ele: o cavalo de ferro, com engrenagens, correntes e fuzis, voa sobre nossas cabeças, pronto a despejar suas bombas. As patas dos cavalos da conquista ameaçam como lanças. O guerreiro no cavalo de duas cabeças empunha a espada para o golpe final.

Algo na construção de Os cavaleiros de ferro lembra o processo da pintura. Não só o fato de o filme ter sido quase todo desenhado antes de ser filma do. Não só o fato de o filme passar como um desenho, com planos em que internamente nada, ou quase nada, se move além da luz: as imagens iniciais do filme, por exemplo – cinco paisagens, quatro delas marcadas pelos esqueletos insepultos de uma batalha há muito ocorrida. Os planos que pre­cedem o avanço da cabeça de porco na batalha do gelo são outro exemplo. São três imagens de uma planície em que a linha do horizonte está colada na moldura inferior da tela, e o quadro é dominado por um céu de nuvens de tempestade, como aquele pintado por El Greco sobre a cidade de Toledo. Algo de pintura, mas não porque cada plano se apresenta como se fosse uma pintura e se deixa ficar na tela por um tempo superior ao necessário para o reconhecimento das pessoas, objetos e paisagens filmadas, mas quase como uma pintura que fica na parede. Não é a ação dos personagens em cena que conta, ou pelo menos não só ela. Importa a ação da imagem em si e per si. O olhar é chamado a agir assim como age diante do jogo expressivo da ausên­cia de cor no Guernica de Picasso ou da exuberância de cor em La conquista de México, de Orozco. De certo modo, a qualidade que Eisenstein identifi­cou em Orozco – “o mundo que ele cria com sua pintura quebra o equilíbrio do universo” –— encontra-se também em Os cavaleiros de ferro: os planos não se referem a uma coisa qualquer que existe antes, fora, independente dele. Quebram o equilíbrio, criam um universo poético, transpõem para o cinema a experiência dos construtivistas (“Na poesia, as palavras e as imagens não são um modo de expressar uma ideia, elas expressam a si mesmas. Não são a sombra de um objeto ou ação, são objeto e ação”). No cinema, a experi­ência da pintura: cada quadro parece partir não do olhar dinâmico da foto­grafia, mas do olhar em profundidade da pintura. Talvez seja possível dizer que Os cavaleiros de ferro foi montado como se tivesse usado Guernica como roteiro, inspiração, convite, desafio para a invenção. Talvez seja certo dizer que, pelo menos em parte, ele foi montado com a memória do bombardeio em Guernica. Em plena Rússia do século 13, entre Pskov e Novogorod, uma cidade basca destruída pela aviação alemã.

 

9.

“Ossos. Caveiras. Campos calcinados. Ruínas de casas queimadas. Homens reduzidos a escravos. Cidades arruinadas. A dignidade humana pisoteada. Assim se desenha o quadro horroroso das primeiras décadas do século 13 na Rússia.”

O texto de apresentação de Os cavaleiros de ferro, escrito por Eisenstein para um livro sobre cinema e história publicado em Moscou em janeiro de 1939, começa com essas palavras, tal como o filme. Ossos, caveiras, campos calcinados: no filme e no texto, estamos numa Rússia não muito distante do México de José Guadalupe Posada. O abril da batalha no gelo, em 1242, é também o abril do bombardeio de Guernica, em 1937, o março da destrui­ção de Bejin, em 1937, e o janeiro das perseguições e prisões em Moscou, em 1939?

Nesse mesmo texto, Eisenstein diz que os acontecimentos do século 13, não ao pé da letra, mas em seu espírito, estão próximos dos de nosso tempo. Tal proximidade, sublinha, se dá às vezes até mesmo ao pé da letra: tudo está tão perto que a notícia no jornal parece um erro de revisão. Foi o que ele sentiu no dia em que, depois de ler nos jornais o bombardeio de Guer­nica, encontrou num livro de história, na pesquisa sobre a Rússia do século 13 para a realização de Os cavaleiros de ferro, uma descrição idêntica de como os cruzados haviam destruído a cidade de Guersika.

A pesquisa, iniciada um mês depois da apreensão de O prado de Bejin e da ameaça de proibição de fazer filmes, procurava dar vida a um argumento do escritor Vsevolod Vishnevski, que nos processos públicos se posicionara ao lado de Eisenstein – um elogio ao patriotismo, com o título provisório de Nós, o povo russo, em torno da história de um herói nacional do século 13, Alexander Nevski. O argumento e a pesquisa histórica levaram ao roteiro feito em parceria com Piotr Pavlenko, escritor indicado pela Direção Estatal de Cinema para trabalhar no projeto e evitar os “erros” do filme anterior.

Em novembro de 1937, o projeto Rússia, de Pavlenko e Eisenstein, foi enviado para aprovação, mas, enquanto aguardava a autorização para fil­mar, o diretor continuou a pensar e preparar o filme em desenhos, às vezes anotações de figurinos e enquadramentos, outras vezes traços mais livres, ilustrações reunidas sob o título “Ideias musicais”. Desenhava e escrevia em busca da estrutura da composição do filme e da forma de uma cena em especial, a da batalha do gelo, solução encontrada a partir de uma sugestão do escritor Victor Chklovski, o conto popular da lebre e da raposa. Na his­tória, a raposa, ao perseguir uma lebre, termina presa entre dois galhos de uma árvore. E a lebre, com a raposa presa entre os galhos, dá meia-volta para atacá-la por trás. A partir do conto popular, o diretor encontrou a solução para conduzir a ação e desenhar o ataque com a forma de cabeça de porco dos cavaleiros teutônicos como um equivalente à raposa e o lago gelado como se fosse os galhos de árvore do conto popular. A raposa teutônica, assim, seria derrotada pelas lebres russas.

No final de março de 1938, o projeto foi aprovado com a indicação de um diretor assistente, Dmitri Vassiliev, e de uma data precisa para a conclusão, 7 de novembro. Em parte pela pressão do prazo para a realização do filme, em parte porque o projeto se desenhara em sua imaginação mais perto de uma construção operística que de um registro realista – os personagens do século 13 deveriam falar e gesticular como os daquele instante do século 20 –, Eisens­tein decidiu filmar a batalha do gelo em pleno verão. As filmagens começaram no final de junho com antigas câmeras de corda e filtros vermelhos e laranjas sobre as lentes para interferir no tom da imagem e nos movimentos dos per­sonagens, ligeiramente deformados pela relativa imprecisão das câmeras de corda, em especial nas cenas da batalha no gelo. Não se tratava de criar um falso inverno, uma ilusão de inverno, mas de situar a cena numa realidade outra, gestos mecânicos num cenário não natural. O trabalho começou em junho e seguiu num ritmo intenso. Como os enquadramentos estavam cuidadosa­mente anotados em desenhos, Vassiliev podia filmar algumas ações enquanto Eisenstein filmava outras ou se dedicava à montagem da batalha no gelo.

Os cavaleiros de ferro estreou em Moscou em 27 de novembro de 1938, cinco meses depois de iniciadas as filmagens. Em março de 1939, o filme de Eisenstein foi lançado nos cinemas de Nova York. Em maio, a Valentine Gallery, de Nova York, expôs o Guernica de Picasso. Em outubro, terminado La conquista de México em Guadalajara, Orozco foi a Nova York para expor desenhos e pinturas na Hudson D. Walker Gallery.

Cinco anos depois de Os cavaleiros de ferro, ou porque o exército russo adotou a estratégia da lebre contra a raposa, ou porque o exército nazista ado­tou a estratégia da cabeça de porco, ou ainda porque uma outra vez a vida imitava a arte, os alemães foram cercados e derrotados numa nova batalha no gelo, a de Stalingrado, em 31 de janeiro de 1943.

 

10.

A arte não imita a vida, repetia Eisenstein aos alunos na escola estatal de téc­nica cinematográfica (GTK – Gosudartsvennoe Tekhnikum Kinematografii), não devemos copiar um objeto para fazer outro, mas estudar os princípios estruturais de um objeto para inventar outro. Como Picasso, como Orozco, estudar o cavalo para retratar, em outro cavalo, o não humano da guerra, o horror da guerra.

Não inventamos a pintura para enfeitar as paredes dos apartamentos, repetia Picasso pouco depois de realizar Guernica. Para ele, a pintura, então, deveria ser usada como uma arma de guerra para se defender e para ata­car o inimigo, como o cavalo de ferro de Orozco, como Os cavaleiros de ferro, de Eisenstein.

A pintura deve dar conta do momento histórico em que ela é feita, repe­tia Orozco enquanto produzia La conquista de México. Para ele, o essencial no artista é a capacidade crítica, a consciência das relações que estabelece com a sociedade em que vive. Como Picasso diante do que se passara em Guernica, como Eisenstein diante do que se passava na União Soviética.

Talvez exatamente por isso seja mesmo possível montar, com La con­quista de México, Guernica e Os cavaleiros de ferro, uma trilogia em que o cavalo espanhol pintado por um mexicano é vítima do bombardeio alemão pintado por um espanhol, e o alemão cai do cavalo no filme de um russo que passou pelo México. Talvez por tudo isso seja possível dizer que Orozco, Picasso e Eisenstein inventaram um cavalo de batalha de três cabeças: uma cospe fogo pelas ventas, outra grita de dor no fogo do bombardeio, a terceira se apaga num lago gelado –— invenção simultânea, elaborada entre maio de 1937, a Espanha em guerra, e outubro de 1939, o mundo em guerra. Talvez seja possível dizer que, ao pintarem o cavalo não para retratá-lo como ele é, mas para tornar visível nesse outro cavalo o que sentiam com o mundo então em guerra, eles convidam o espectador –— num processo semelhante ao do pintor e ao do diretor de cinema – a estudar o princípio estrutural da obra para continuar a reinventá-la, para permitir que ela se reinvente o tempo todo, sendo sempre vista de uma maneira nova.