Joe McGinniss, o jornalista que aparece no título e atua como vilão deste livro, certa noite foi à casa do escritor William Styron para entrevistá-lo. Conversaram e beberam até bem tarde, e McGinniss aceitou o convite do anfitrião para pernoitar. Na manhã seguinte, o jornalista acordou com fome. Como não havia mais ninguém na casa e o dono ainda dormia, ele foi à cozi­nha e abriu a geladeira, onde encontrou uma lata de carne de caranguejo.

Styron havia mencionado a lata na véspera. Era uma iguaria cara e rara, reservada para alguma ocasião especial. McGinniss abriu a lata, pegou farinha, molho inglês, tabasco, ovos e creme. Usou todo o caranguejo para preparar e assar uma torta, que serviu ao estupefato Styron quando ele se levantou. Depois do choque inicial, o entrevistado comeu, embora observasse em tom de lamento que “essa carne de caranguejo tem um sabor muito delicado”.

Descrito pelo próprio McGinniss, o incidente é pinçado por Janet Malcolm para servir como uma de suas violentas metáforas sobre a relação entre jor­nalista e entrevistado. A tenra carne de caranguejo é a vida do entrevistado e sua versão sobre os fatos de que participou. A gororoba servida pelo jor­nalista – diz Janet Malcolm –— é consequência de um furto prometeico, seme­lhante ao vandalismo que McGinniss cometeu na geladeira de sua vítima.

Janet Malcolm escreveu oito livros, baseados em labirínticas reporta­gens publicadas na revista The New Yorker. Seu assunto pode ser o legado de escritores como Anton Tchekhov, Gertrude Stein e Sylvia Plath, a dis­puta pelo acesso aos arquivos de Freud ou processos judiciais que causaram comoção nos Estados Unidos, como no caso deste O jornalista e o assassino. O tema subjacente, porém, é sempre o próprio jornalismo.

Não o jornalismo noticioso, dos furos de reportagem obtidos e relatados às pressas, da informação como serviço público de primeira necessidade.

Mas um jornalismo mais extensivo e elaborado, situado já nas vizinhanças da biografia, do ensaio e da crítica literária. Mesmo nessas alturas rarefei­tas, porém, subsiste a relação crucial entre aquele que narra e aquele que é objeto da narração, entre escritor e fonte. A autora argumenta que essa é uma relação de poder em que a fonte é invariavelmente prejudicada.

Nascida em Praga, em 1934, numa família judia levada pelo pai psiquiatra para os Estados Unidos em 1939, Janet Malcolm estudou na High School of Music and Art de Nova York e na Universidade de Michigan. Aos 29 anos, começou a trabalhar na The New Yorker, escrevendo inicialmente sobre decoração, design, compras e fotografia. A partir dos anos 1970 passou a colaborar também na The New York Review of Books. Vive em Nova York.

O jornalista americano Murray Kempton (1917-1997) disse que o traba­lho dos editorialistas – autores de comentários opinativos e judiciosos, em geral não assinados –— é “descer das colinas depois da batalha para matar os feridos”. Nos termos dessa imagem, Janet Malcolm desce para ouvir o que os moribundos têm a dizer. Ela exuma as versões sepultadas nas diversas narrativas, mostrando a intrincada rede de conflitos, acidentes e compro­missos que as engendrou. Publicada em 1990, O jornalista e o assassino é sua principal obra.

Em 1970, Jeffrey MacDonald, um médico então a serviço do exército ame­ricano, foi acusado de matar a mulher grávida e as duas filhas pequenas na casa da família, na Carolina do Norte. As vítimas haviam sido trucidadas a golpes de bastão e faca. Ferido superficialmente na cena do crime, MacDonald alegou que a casa fora invadida por delinquentes drogados e que ele desmaiara ao ser atingido pelos criminosos.

Anos mais tarde, quando o réu aguardava novo julgamento depois de absol­vido num tribunal militar, o jornalista Joe McGinniss o procurou para uma entrevista. MacDonald gostou tanto de McGinniss que sugeriu a ele escrever um livro sobre o caso. O acusado franquearia livre acesso ao repórter, inclusive às reuniões com seus advogados. Parte dos adiantamentos e ganhos com o livro seria repassada pelo autor a MacDonald, a fim de custear a defesa.

O acordo foi cumprido. Durante quatro anos o jornalista conviveu com o réu. Trocavam correspondência e frequentavam-se como amigos. Todas as aparências indicavam que McGinniss confiava na inocência de MacDonald. Fatal Vision foi lançado com estardalhaço em 1983. Mas suas quase 700 páginas eram um libelo contra MacDonald, apresentado do início ao fim sob luz desfa­vorável e enquadrado na categoria psiquiátrica de “narcisista patológico”.

Embora condenado à prisão perpétua, MacDonald, que sempre se decla­rou inocente, processou McGinniss pelo livro. Sustentava que o relato era distorcido e que o autor abusara de sua boa-fé, fazendo crer que escrevia uma narrativa sobre sua inocência enquanto preparava o retrato de um psicopata.

Insinuara-se em sua intimidade a fim de colher aspectos aptos a incriminá-lo. Nos Estados Unidos, o júri tem de deci­dir por unanimidade, o que não aconteceu nesse processo. Antes de ocorrer novo julgamento, McGinniss pagou 325 mil dólares a MacDonald, encerrando a pendência.

Esses são os fatos. Mas Janet Malcolm não está interes­sada neles. Embora seja meticulosa e detalhista quanto a fatos, ela ressalta a dificuldade de saber a verdade sobre qualquer coisa. Pode-se examinar um incidente com máximo cuidado, ela escreve, “tal como os investigadores passaram anos trabalhando com o assassinato da família MacDonald, e no fim não obter nenhuma resposta segura sobre o que ‘realmente’ aconteceu”. O foco de Janet Mal­colm é o emaranhado de versões e a luta de seus autores para fazer a sua prevalecer.

Isso não significa que ela cultive uma atitude de neutra­lidade ou indiferença como narradora. Empenha-se em ler todo material disponível sobre o assunto e registrar em lon­gos e sucessivos encontros o que suas personagens têm a dizer. Mas não é raro que tome partido (no caso deste livro, a favor do “assassino” e contra o “jornalista”), deixando explícito que entre fato e relato se interpõe o filtro da personalidade de quem escreve.1

Sua capacidade de observação, descrição e síntese é pro­digiosa. Críticos que resenharam seus livros mencionam o temor imaginário de um dia recebê-la em casa, já que Janet Malcolm parece capaz de deduzir todo o caráter de uma pes­soa a partir de um relance de olhos por sua sala de estar. Seu texto é rápido, vigoroso, rico em referências cultas, obser­vações argutas e metáforas inspiradas. Embora a narrativa às vezes se perca em meio à massa de detalhes que esmiúça, ela tem a facilidade aparente do bom romancista para pren­der a atenção do leitor.

Malcolm compara seu método à “observação parti­cipante” dos antropólogos. Na realidade, ela explora um gênero de fecunda tradição no jornalismo americano desde meados do século passado. Foi na própria The New Yorker (e mais tarde na revista Esquire) que esse gênero se desenvol­veu na forma de reportagens extensas e minuciosas, depois convertidas em livro, escritas por autores hoje considerados clássicos como John Hersey (Hiroshima), Lillian Ross (Filme), Truman Capote (A sangue frio) e Joseph Mitchell (O segredo de Joe Gould) – este último citado por Janet Malcolm, numa das raras entre­vistas que concedeu, como “influência e inspiração”. Aos precursores do que se passou a chamar de “jornalismo literário” viriam juntar-se, nos anos 1960-1970, autores como Norman Mailer, Tom Wolfe e Gay Talese.

Como o termo indica, esses escritores-jornalistas incorporaram recursos da literatura ao jornalismo que faziam. Ao contrário do jornalismo tradicio­nal, em que são banidas, as impressões que os fatos provocam na sensibili­dade do narrador são descritas com fidelidade igual à empregada no manejo dos próprios fatos. Diálogos são transcritos em profusão. Cenas específicas e pormenores singulares, dada sua expressividade, ganham relevo despro­porcional ao conjunto. Não existe um resumo noticioso no início do texto, que é urdido passo a passo, compondo um tecido complexo que esgota o assunto por saturação.

Ao contrário do que parece, é um tipo de jornalismo difícil de realizar. Não basta reproduzir as reações subjetivas do jornalista durante a apura­ção. Cada reportagem dessas demanda tempo (meses, às vezes anos de intenso trabalho) para ser bem feita. Requer exatidão e distanciamento por parte do jornalista, sem os quais ele produzirá um mero panfleto, e a misteriosa habilidade de conservar vivo o interesse da narrativa durante uma leitura demorada, exigente.

Com Janet Malcolm, esse gênero submete-se a um brutal autoexame em seus objetivos, métodos e valores. As reflexões da autora são imbuídas de certo fatalismo ao convergir para um problema que seria estrutural: a “fal­sidade que está embutida no relacionamento entre escritor e personagem e sobre a qual nada pode ser feito”.

A fonte – seja ela objeto de entrevista, biografia ou perfil – reitera a sua versão dos fatos de modo prolixo e obsessivo, convencida de que aquele relato corresponde exatamente à verdade. Procura por todos os meios influenciar, iludir e manipular o jornalista, para ela uma valiosa peça no contra-ataque ao imenso maquinismo posto em funcionamento para esma­gar a sua história, a única legítima.

Ocorre que são raras, diz Malcolm, as personagens pertencentes “àquela maravilhosa raça de autoficcionistas, como o Joe Gould de Mitchell ou o Perry Smith de Truman Capote […] que fazem grande parte do tra­balho pelo escritor, mediante sua própria autoinvenção”. Joe Gould (men­digo escritor), Perry Smith (assassino confesso) e seus similares na vida real tendem a ser “chatos prolixos e malucos patéticos” que apenas por meio da condensação literária realizam a ambição para a qual “na realidade eles apenas acenam grotescamente”.

De acordo com Janet Malcolm, somente o escritor de ficção é fiel à ver­dade, pois os “fatos” que relata no texto existem em sua imaginação tal como ele os descreve (será?). Já o escritor não ficcional, quando resume, seleciona e edita a loquacidade da fonte, acaba traindo a confiança que lhe foi empres­tada ao substituir a versão dela pela sua, porque esta é mais interessante e serve melhor aos propósitos da história vertida em texto. Estamos sempre no reino das versões, já que a verdade é postulada como inalcançável.

Ninguém que tenha escrito sobre Janet Malcolm deixa de citar a famosa frase de abertura deste livro: “Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável”. Numa escritora tão sensível a nuances e tão precisa no uso das palavras, esse é um juízo drástico, com um timbre algo sensacionalista, como se o objetivo fosse provocar a agitada reação, que de fato sobreveio, de polêmica e também de hostilidade em relação à autora entre seus colegas.

Perguntou-se, com toda lógica, se acaso seria defensável que ela decla­rasse imoral um gênero que não obstante seguia praticando. Por mais que seu intento fosse problematizar os fundamentos de uma linhagem presti­giosa, considerada a forma mais elevada de jornalismo, a própria Malcolm, ao utilizar os procedimentos e recursos que condenava, incidia na mesma atitude “moralmente indefensável”. Tampouco se poderia ressalvar que o caso abordado em sua investigação fosse excepcional ou aberrante, pois ela deixa expressa, no final deste livro, sua opinião de que McGinniss fizera às claras o que “a maior parte dos jornalistas faz com mais sutileza e discrição”.

Sua crítica, embora se concentre no jornalismo, é radical a ponto de alcançar todas as formas de narrativa, igualmente inconfiáveis, com a exce­ção, como vimos, das estritamente ficcionais. Em seu livro sobre Tchekhov, por exemplo, publicado em 2001, Janet Malcolm reconstitui a cena da morte do grande escritor russo na noite de 2 de julho de 1904, num exercí­cio fascinante de crítica comparada.

Tchekhov morreu num quarto de hotel na Alemanha, vítima de longa tuberculose, na presença de sua mulher, Olga Knipper, de um médico ale­mão e de um estudante russo conhecido da família. Segundo o relato da mulher, publicado poucos anos depois, Tchekhov disse ao doutor: “Ich sterbe” [Estou morrendo]. O médico ministrou-lhe uma injeção de cânfora e pediu champanhe. Serviu um copo ao doente, que se ergueu na cama para bebê-lo inteiro, dizendo à mulher que fazia tempo desde que tomara cham­panhe. Em seguida, recostou a cabeça e expirou.

Num segundo relato, posterior ao primeiro, Olga acrescentou dois detalhes que têm voltagem literária. Uma “grande mariposa irrompeu no quarto como um redemoinho” e logo depois, quando o doutor deixou o aposento, “no calor da noite a rolha recolocada na garrafa de champanhe saltou com um terrível estampido”. Outros pormenores foram divulgados pelo médico e publicados na imprensa nos dias seguintes à morte, e pelo estudante russo quando este, décadas após o episódio, resolveu fixar suas lembranças por escrito.

Depois de apresentar esse material primário, Malcolm reproduz a cena da morte tal como figura em nada menos do que oito biografias de Tchekhov. Em algumas, os tons melodramáticos são enfatizados e os lan­ces de mais rendimento se encompridam; em outras, detalhes propícios são supridos pela fantasia do biógrafo. Certos itens – champanhe, “Ich sterbe” – voltam em meio às variações narrativas como motivos musicais.

O leitor sai da experiência persuadido de que Tchekhov morreu de forma não muito diversa da narrada (não há discrepâncias relevantes entre os relatos), mas também de que sua morte, tal como realmente ocorreu, jamais será conhecida. Malcolm deduz dessa cena a trivialidade de toda bio­grafia, e filosofa que o âmago morre conosco, o que perdura é a casca.

Antes de trabalhar no que viria a ser O jornalista e o assassino, nossa autora passara pela mesma situação de Joe McGinniss, quando também se viu processada pelo protagonista bastante real de um livro seu, In The Freud Archives, de 1983. Essa investigação trata da mirabolante e algo humorística luta pelo acesso e controle dos arquivos pessoais de Sigmund Freud, o cria­dor da psicanálise, preservados por sua filha Anna num grande armário na casa em que seu pai morrera, em Londres.

Os documentos estavam sob a guarda de uma sumidade na ortodoxia psicanalítica, K.R. Eissler. Espécie de rei Lear, o idoso Eissler sentia que o encargo lhe pesava e procurava um sucessor confiável. Deixou-se seduzir por um jovem e talentoso scholar, Jeffrey Moussaieff Masson, especialista em sânscrito na Universidade de Toronto, no Canadá, que abandonara a disciplina para se dedicar com paixão à história da psicanálise. Eissler trans­feriu então a Masson o posto de secretário dos arquivos de Freud.

Quando dava os primeiros passos na elaboração da teoria psicanalítica, nos últimos anos do século 19, Freud se correspondia com um médico ber­linense, Wilhelm Fliess, a quem relatava o andamento de suas pesquisas. Mais tarde, o pai da psicanálise destruiu as cartas de Fliess, mas este conser­vou as do amigo eminente. Depois de um rocambolesco percurso em que foram dadas como perdidas na Segunda Guerra Mundial, as cartas reapare­ceram. Foram parcialmente editadas em 1950. Masson estava autorizado a publicá-las na íntegra.

A correspondência Freud-Fliess cobre o delicado período em que o psicó­logo visionário abandonou a chamada teoria da sedução. Com base no depoi­mento dos primeiros pacientes, Freud concluíra que a origem de suas neu­roses remontava a algum episódio de abuso sexual de que haviam sido alvo quando crianças. Subitamente, porém, ele mudou de ideia, passando a acre­ditar que tais episódios não haviam acontecido na realidade, mas eram proje­ções fantásticas de desejos incestuosos reprimidos na infância. Tal mudança é essencial no cânone psicanalítico por ter dado ensejo à formulação do com­plexo de Édipo, que estruturou todo o desenvolvimento posterior da teoria.

Enquanto preparava a edição das cartas, Masson chegou à alarmante cer­teza de que Freud não alterara o rumo de seu pensamento por convicção, mas por oportunismo, depois de a teoria da sedução ter sido repelida pela comunidade médica de Viena. As notórias evidências de que sua nova hipó­tese suscitara repulsa ainda mais veemente que a anterior não abalaram a opinião que Masson passou a advogar com o entusiasmo e a eloquência que lhe eram característicos.

Eissler rompe relações com o pupilo traidor e o destitui do cargo de gestor dos arquivos. Nesse ponto, entra em cena outro aventureiro, Peter Swales, ex–assistente da banda Rolling Stones e autodidata erudito em psicanálise, que tenta envolver o iludível Eissler exatamente como Masson fizera pouco antes. Os especialistas em Freud parecem agora arqueólogos que rivalizam pelo achado do tesouro, como numa história de Indiana Jones. (Em seu livro sobre a luta em torno da “história” de Sylvia Plath, Malcolm diz, com efeito, que “cartas são fósseis dos sentimentos”, sempre muito cobiçadas por biógrafos.)

No ano seguinte ao lançamento do livro de Janet Malcolm sobre todo esse imbróglio, Masson entrou na Justiça contra a autora, acusada de atri­buir a ele, por má-fé, declarações errôneas. Num passo embaraçoso, a jorna­lista não conseguiu apresentar em juízo anotações de três das declarações contestadas (posteriormente, disse ter encontrado o caderno em que cons­tavam tempos depois de encerrado o caso, no sótão de sua casa). Mesmo assim, após dez anos de processo, no qual Masson pedia 2 milhões de dóla­res como reparação, Malcolm foi absolvida. Quando saiu O jornalista e o assassino, especulou-se que escrevera o livro como uma estranha forma de expiação do processo que Masson lhe impingira.

Esse é um ângulo interessante não somente porque o repertório cultural de Janet Malcolm é lastreado na psicanálise – o generoso estoque de ferra­mentas a que ela recorre quando confrontada com qualquer obstáculo inte­lectual –, mas porque são numerosas em seus escritos as analogias entre a relação psicoterapêutica e a narração não ficcional.

Ela diz, por exemplo, que o encontro jornalístico tem sobre o indivíduo “o mesmo efeito regressivo que a psicanálise”: ele é filho do escritor, consi­derado como mãe permissiva, mas o livro será escrito pelo pai severo. Em outra passagem, Malcolm compara novamente as fontes ao paciente psi­canalítico: repetem a mesma história não importa para qual repórter, para qual analista. E acrescenta que no discurso desconexo do entrevistado as mensagens se transmitem de modo elíptico, assim como nos sonhos.

Malcolm considera que existe algo de literário na neurose, e que o tra­balho da psicanálise é solapar essa estrutura dramática ou decompor seu enredo, “de um romance gótico, digamos, para uma comédia doméstica”, devolvendo à pessoa “a liberdade de ser desinteressante”. Nesse sentido, jornalista e analista atuariam em direções exatamente opostas.

“As personagens não ficcionais”, escreveu, “não menos que as ficcionais, derivam dos desejos mais idiossincráticos e das ansiedades mais profundas do escritor”. Em autora tão impregnada pela mentalidade psicanalítica, não é surpresa que sua própria obra revele, aqui e ali, resíduos do que terá sido seu romance familiar. Na maior parte de seus trabalhos é possível discernir certas personagens-chave que voltam à cena sob diferentes disfarces. Pode­mos chamá-las de o aventureiro sedutor (McGinniss, Masson, Peter Swales, Ted Hughes no livro sobre Sylvia Plath, Bernard Faÿ no livro sobre Gertrude Stein), a vítima incauta (MacDonald, Eissler, o “espírito” de Sylvia Plath) e o guardião do tesouro (Eissler e MacDonald de novo, a irmã de Ted Hughes). No cerne de suas turbulentas relações está a confiança outorgada e traída. Prosseguir nessas especulações seria usurpar as funções do psicanalista e adentrar numa seara ao abrigo de todo leitor.

Depois de redigir a maldição bíblica contida na primeira frase deste livro, Janet Malcolm ironiza os jornalistas que se absolvem da invectiva recorrendo a princípios pomposos como “liberdade de expressão” ou “direito do público de saber”. Sem prejuízo de sua crítica devastadora, é nesse ponto que o jor­nalismo noticioso – vulgar, superficial, feito às pressas – recobra seus direitos.

Pois toda discussão sobre jornalismo cedo ou tarde se depara com o velho conflito entre dois valores, o direito de livre acesso às informações de interesse público e o direito das personagens do noticiário à sua própria versão dos fatos. Sempre haverá uma solução empírica e acomodatícia para as manifestações desse dilema. É duvidoso que o primeiro dos dois valo­res deva predominar quando se trata de saber da intimidade sexual de Sylvia Plath ou das batalhas de vaidade travadas entre psicanalistas. Mas essa dúvida se dissipa em grande parte quando se trata da notícia clássica, aquela que concerne e preocupa todo mundo.

Quanto ao jornalismo literário, poucos o terão levado a uma consecução tão requintada como Janet Malcolm – e decerto ninguém o sujeitou a escru­tínio tão exaustivo. Para discorrer sobre as ambições frustradas de todo nar­rador, ela evoca a conclusão de “O aleph”, conto de Jorge Luis Borges em que o protagonista vai a um porão de onde pode ver nada menos do que tudo sob todos os ângulos. “Mas como ver todas as formigas do planeta”, ela se pergunta, “quando se usam os antolhos da narrativa?”. A resposta, precá­ria, é que sabemos com razoável certeza como foi que Tchekhov morreu. E sabemos muito sobre sua morte, quase mais do que precisaríamos, depois de ler Janet Malcolm.