Holden aos sessenta

serrote #7, março 2011

Holden aos sessenta

LOUIS MENAND


O apanhador no campo de centeio foi rejeitado pela The New Yorker. A revista havia publicado seis dos contos de J.D. Salinger, incluindo dois dos mais populares, “Um dia per­feito para peixes-banana”, em 1948, e “Para Esme – com amor e sordidez”, em 1950. Mas quando o romance foi mostrado aos editores, eles declinaram da publicação de um excerto. Disseram a Salinger que a precocidade das quatro crianças Caulfield não era crível, e que a escrita era exibicio­nista – que parecia concebida para mostrar a inteligência do autor, mais que para apresentar a história. O apanhador no campo de centeio já tinha sido rejeitado pela editora que o pedira, a Harcourt Brace, quando um executivo da empresa chamado Eugene Reynal conquistou da pior maneira a imor­talidade ao se queixar de que não conseguia saber se Hold­en Caulfield devia ser considerado louco ou não. O agente de Salinger levou o livro à Litile, Brown, onde o editor John Woodburn foi prudente o bastante para não fazer esse tipo de pergunta. A obra foi publicada em julho de 1951 e, a partir de então, vendeu mais de 60 milhões de exemplares.

O mundo é triste, disse Oscar Wilde, porque um títere um dia foi melancólico. Estava se referindo a Hamlet, um personagem que, a seu ver, tinha ensinado ao mundo uma nova espécie de infelicidade – a infelicidade do eterno desa­pontamento com a vida como ela é, Weltschmerz.1 Quer Shakespeare a tenha inventado ou não, ela se mostrou uma das mais viciantes emoções literárias. Os leitores consomem volumes repletos dela, e então pedem para conhecer o autor.

Também se revelou uma das emoções literárias mais duradouras, uma vez que a vida consegue ser quase sempre insatisfatória. Cada geração, porém, sente-se desapontada à sua própria maneira, e parece demandar sua pró­pria literatura do descontentamento. Para muitos americanos que cresceram nos anos 1950, O apanhador no campo de centeio é a essência mais pura desse estado de ânimo. Holden Caulfield é seu rei desditoso. Os americanos que cresceram nas décadas seguintes ainda leem o romance de Salinger, mas têm sua própria versão da história, com diferentes sabores de WeltschmerzO apa­nhador no campo de centeio se reescreve, é um gênero literário em si mesmo.

Na arte, como na vida, os ricos ficam ainda mais ricos. As pessoas nor­malmente leem O apanhador no campo de centeio por volta dos 14 anos, em geral porque o livro lhes foi dado ou indicado por pessoas – pais ou pro­fessores –— que o leram quando tinham 14 anos, porque alguém lhes deu ou indicou naquela época. O livro segue adquirindo leitores, em outras pala­vras, não porque os garotos continuem descobrindo-o, mas porque adultos que o leram quando garotos seguem fazendo com que os garotos o leiam. Isso parece crucial para explicar sua popularidade. O apanhador no campo de centeio é um retrato empático de um rapaz que se recusa a ser sociabili­zado e que se tornou (entre certos leitores, de todo modo, pois ele ainda é ocasionalmente banido em escolas conservadoras) um instrumento padrão de sociabilização. Fui apresentado ao livro por meus pais, pessoas que, se tivessem imaginado que eu pudesse, depois de terminada a leitura, fugir da escola, fumar feito uma chaminé, mentir sobre minha idade em bares, con­tratar uma prostituta ou proferir blasfêmias a cada três frases, teriam (para usar os termos do romance) umas duas hemorragias cerebrais cada um. De algum modo, eles sabiam que não seria esse o efeito.

Supostamente, a garotada responde a O apanhador no campo de centeio porque se reconhece no personagem Holden Caulfield. Imagina-se que Salinger deu voz ao que todo adolescente –— ou pelo menos todo adolescente sensível e inteligente de classe média – pensa, mas é inibido demais para dizer, ou seja, que o sucesso é uma fraude e que as pessoas bem-sucedidas são predominantemente falsas. Ler a história de Holden seria o equivalente literário de mirar-se no espelho pela primeira vez. Isso parece subestimar a originalidade do livro. Garotos de 14 anos, mesmo os garotos de 14 anos sen­síveis e inteligentes de classe média, geralmente não pensam que o sucesso é uma fraude, e se, às vezes, se sentem infelizes, furiosos ou excluídos, não é porque pensam que os outros são, em sua maioria, falsos. Todo o fardo emocional da adolescência é que a gente não sabe por que se sente infeliz, furioso ou excluído. O apelo de O apanhador no campo de centeio, o que o torna viciante, é que ele fornece uma razão. Dá conteúdo à química.

Holden fala como adolescente, e isso torna natural presumir que também aja como adolescente. Mas, a exemplo de todos os garotos e garotas espertos da ficção de Salinger – como Esme, Teddy e os numerosos e brilhantes Glasses –, Holden pensa como adulto. Nenhum adolescente (e muito poucos adultos, a bem da verdade) consegue enxergar por trás da fachada de outros seres humanos de modo tão rápido, claro e implacável como ele. Holden é um demônio de incisão verbal. Sumariza as pes­soas como um romancista:

Ele estava sempre pedindo à gente para lhe fazer um grande favor. Basta um sujeito ser bonitão, ou pensar que é o cara mais bacana do mundo, e está sempre pedindo aos outros que lhe façam um grande favor. Só porque eles se acham fabulosos, pensam que todo mundo também os acha fabulosos, e que a gente está doido para lhes fazer um favor. De certo modo, até que é engraçado.

Ela estava interrompendo a droga do trânsito todo na passagem. A gente via logo que ela gostava um bocado de parar o trân- sito. Tinha um garçom esperando que ela saísse da frente, mas ela nem reparou no sujeito. Era engraçado. Estava na cara que o garçom não gostava dela e que nem o cara da marinha gostava muito dela, embora estivesse saindo com ela. E eu não gos- tava muito dela. Ninguém gostava. De certa maneira a gente tinha que sentir pena da infeliz.

O nome do cara era George qualquer coisa –- nem me lembro – e estudava em Andover. Grande coisa. Dava gosto ver a cara do sujeito quando a Sally pediu a opinião dele sobre a peça. Tra­tava-se de um desses cretinos que precisam de espaço quando começam a falar. Deu um passo para trás e pisou em cheio no pé de uma dona que estava bem ali. Acho que não sobrou um dedo inteiro no pé da infeliz. Disse que a peça em si não era nenhuma obra-prima, mas os Lunts, evidentemente, eram uns anjos. Anjos, pomba! Anjos. Era o fim.2

“De certa maneira a gente tinha que sentir pena da infeliz.” O segredo da autoridade de Holden como narrador é que ele nunca deixa as coisas se defenderem por si mesmas. Ele sempre diz o que devemos pensar. Rotula todo mundo. É por isso que é tão divertido. Mas os editores da The New Yorker estavam certos: Holden não é um adolescente comum – é um prodígio. Ele parece (e é por isso que sua personalidade pode ser tão viciante) ter algo que poucas pessoas chegam a alcan­çar com coerência: uma atitude diante da vida.

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