O apanhador no campo de centeio foi rejeitado pela The New Yorker. A revista havia publicado seis dos contos de J.D. Salinger, incluindo dois dos mais populares, “Um dia perfeito para peixes-banana”, em 1948, e “Para Esme – com amor e sordidez”, em 1950. Mas quando o romance foi mostrado aos editores, eles declinaram da publicação de um excerto. Disseram a Salinger que a precocidade das quatro crianças Caulfield não era crível, e que a escrita era exibicionista – que parecia concebida para mostrar a inteligência do autor, mais que para apresentar a história. O apanhador no campo de centeio já tinha sido rejeitado pela editora que o pedira, a Harcourt Brace, quando um executivo da empresa chamado Eugene Reynal conquistou da pior maneira a imortalidade ao se queixar de que não conseguia saber se Holden Caulfield devia ser considerado louco ou não. O agente de Salinger levou o livro à Litile, Brown, onde o editor John Woodburn foi prudente o bastante para não fazer esse tipo de pergunta. A obra foi publicada em julho de 1951 e, a partir de então, vendeu mais de 60 milhões de exemplares.
O mundo é triste, disse Oscar Wilde, porque um títere um dia foi melancólico. Estava se referindo a Hamlet, um personagem que, a seu ver, tinha ensinado ao mundo uma nova espécie de infelicidade – a infelicidade do eterno desapontamento com a vida como ela é, Weltschmerz.1 Quer Shakespeare a tenha inventado ou não, ela se mostrou uma das mais viciantes emoções literárias. Os leitores consomem volumes repletos dela, e então pedem para conhecer o autor.
Também se revelou uma das emoções literárias mais duradouras, uma vez que a vida consegue ser quase sempre insatisfatória. Cada geração, porém, sente-se desapontada à sua própria maneira, e parece demandar sua própria literatura do descontentamento. Para muitos americanos que cresceram nos anos 1950, O apanhador no campo de centeio é a essência mais pura desse estado de ânimo. Holden Caulfield é seu rei desditoso. Os americanos que cresceram nas décadas seguintes ainda leem o romance de Salinger, mas têm sua própria versão da história, com diferentes sabores de Weltschmerz – O apanhador no campo de centeio se reescreve, é um gênero literário em si mesmo.
Na arte, como na vida, os ricos ficam ainda mais ricos. As pessoas normalmente leem O apanhador no campo de centeio por volta dos 14 anos, em geral porque o livro lhes foi dado ou indicado por pessoas – pais ou professores –— que o leram quando tinham 14 anos, porque alguém lhes deu ou indicou naquela época. O livro segue adquirindo leitores, em outras palavras, não porque os garotos continuem descobrindo-o, mas porque adultos que o leram quando garotos seguem fazendo com que os garotos o leiam. Isso parece crucial para explicar sua popularidade. O apanhador no campo de centeio é um retrato empático de um rapaz que se recusa a ser sociabilizado e que se tornou (entre certos leitores, de todo modo, pois ele ainda é ocasionalmente banido em escolas conservadoras) um instrumento padrão de sociabilização. Fui apresentado ao livro por meus pais, pessoas que, se tivessem imaginado que eu pudesse, depois de terminada a leitura, fugir da escola, fumar feito uma chaminé, mentir sobre minha idade em bares, contratar uma prostituta ou proferir blasfêmias a cada três frases, teriam (para usar os termos do romance) umas duas hemorragias cerebrais cada um. De algum modo, eles sabiam que não seria esse o efeito.
Supostamente, a garotada responde a O apanhador no campo de centeio porque se reconhece no personagem Holden Caulfield. Imagina-se que Salinger deu voz ao que todo adolescente –— ou pelo menos todo adolescente sensível e inteligente de classe média – pensa, mas é inibido demais para dizer, ou seja, que o sucesso é uma fraude e que as pessoas bem-sucedidas são predominantemente falsas. Ler a história de Holden seria o equivalente literário de mirar-se no espelho pela primeira vez. Isso parece subestimar a originalidade do livro. Garotos de 14 anos, mesmo os garotos de 14 anos sensíveis e inteligentes de classe média, geralmente não pensam que o sucesso é uma fraude, e se, às vezes, se sentem infelizes, furiosos ou excluídos, não é porque pensam que os outros são, em sua maioria, falsos. Todo o fardo emocional da adolescência é que a gente não sabe por que se sente infeliz, furioso ou excluído. O apelo de O apanhador no campo de centeio, o que o torna viciante, é que ele fornece uma razão. Dá conteúdo à química.
Holden fala como adolescente, e isso torna natural presumir que também aja como adolescente. Mas, a exemplo de todos os garotos e garotas espertos da ficção de Salinger – como Esme, Teddy e os numerosos e brilhantes Glasses –, Holden pensa como adulto. Nenhum adolescente (e muito poucos adultos, a bem da verdade) consegue enxergar por trás da fachada de outros seres humanos de modo tão rápido, claro e implacável como ele. Holden é um demônio de incisão verbal. Sumariza as pessoas como um romancista:
Ele estava sempre pedindo à gente para lhe fazer um grande favor. Basta um sujeito ser bonitão, ou pensar que é o cara mais bacana do mundo, e está sempre pedindo aos outros que lhe façam um grande favor. Só porque eles se acham fabulosos, pensam que todo mundo também os acha fabulosos, e que a gente está doido para lhes fazer um favor. De certo modo, até que é engraçado.
Ela estava interrompendo a droga do trânsito todo na passagem. A gente via logo que ela gostava um bocado de parar o trân- sito. Tinha um garçom esperando que ela saísse da frente, mas ela nem reparou no sujeito. Era engraçado. Estava na cara que o garçom não gostava dela e que nem o cara da marinha gostava muito dela, embora estivesse saindo com ela. E eu não gos- tava muito dela. Ninguém gostava. De certa maneira a gente tinha que sentir pena da infeliz.
O nome do cara era George qualquer coisa –- nem me lembro – e estudava em Andover. Grande coisa. Dava gosto ver a cara do sujeito quando a Sally pediu a opinião dele sobre a peça. Tratava-se de um desses cretinos que precisam de espaço quando começam a falar. Deu um passo para trás e pisou em cheio no pé de uma dona que estava bem ali. Acho que não sobrou um dedo inteiro no pé da infeliz. Disse que a peça em si não era nenhuma obra-prima, mas os Lunts, evidentemente, eram uns anjos. Anjos, pomba! Anjos. Era o fim.2
“De certa maneira a gente tinha que sentir pena da infeliz.” O segredo da autoridade de Holden como narrador é que ele nunca deixa as coisas se defenderem por si mesmas. Ele sempre diz o que devemos pensar. Rotula todo mundo. É por isso que é tão divertido. Mas os editores da The New Yorker estavam certos: Holden não é um adolescente comum – é um prodígio. Ele parece (e é por isso que sua personalidade pode ser tão viciante) ter algo que poucas pessoas chegam a alcançar com coerência: uma atitude diante da vida.
A moral do livro pode parecer a de que Holden por fim amadurecerá e superará sua atitude, e essa é provavelmente a lição que a maioria dos professores de colégio que mandam ler O apanhador no campo de centeio espera transmitir aos alunos – a de que o desajuste é apenas uma fase. Mas as pessoas não superam a atitude de Holden, ou não superam por completo, nem querem superar, porque é uma atitude bem proveitosa. Uma das metas da educação é ensinar as pessoas a desejar as recompensas que a vida tem a oferecer, mas outra meta é ensinar também a ter um moderado desprezo por essas recompensas. Na vida americana, em que – especialmente se você é um membro sensível e inteligente da classe média –— as recompensas são constantemente anunciadas como algo ao alcance das mãos, o sentimento de frustração é muito mais frequente que o sentimento de sucesso, e, se não aprendêssemos a não nos importar, os fracassos nos destruiriam. Dar O apanhador no campo de centeio a seus filhos é como fornecer uma camada de isolamento psíquico.
Que o livro pudesse ir parar no currículo de inglês do colégio era provavelmente uma das últimas coisas que Salinger tinha em mente quando o escreveu. Ele não estava tentando expor a pobreza espiritual de uma cultura conformista; escreveu uma história sobre um garoto cujo irmãozinho tinha morrido. Holden, afinal de contas, não está infeliz porque vê que as pessoas são falsas; ele vê que as pessoas são falsas porque está infeliz. O que torna tão mordaz sua visão das outras pessoas e tão implacável sua decepção é a mesma coisa que torna os sentimentos de Hamlet tão mordazes e implacáveis: a dor. É verdade que Holden foi concebido como uma espécie de gênio moral intuitivo. (Hamlet, presumivelmente, também.) Mas sua percepção de que nada tem valor é simplesmente o sentimento normal que as pessoas têm quando morre alguém que elas amam. A vida começa a parecer um intento pateticamente transparente de tapeá-las para que se esqueçam da morte; elas perdem o gosto por ela.
O que atraiu Salinger a esse enredo? Holden Caulfield aparece pela primeira vez na obra de Salinger em 1941, num conto intitulado “Ligeira rebelião nas redondezas da rua Madison”, que apresenta um personagem chamado Holden (que não é o narrador) e sua namorada Sally Hayes. (O conto foi comprado pela The New Yorker, mas só seria publicado em 1946.) E há personagens de nome Holden Caulfield em outros contos que Salinger produziu em meados dos anos 1940. Mas a maior parte de O apanhador no campo de centeio foi escrita depois da guerra, e embora pareça estranho chamar Salinger de escritor de guerra, ambos os seus biógrafos, Ian Hamilton e Paul Alexander, acham que a guerra foi o que transformou Salinger em Salinger, foi a experiência que tornou sombria sua sátira e instilou tristeza no seu humor.
Salinger passou a maior parte da guerra numa unidade de contrainteligência da 4a Divisão de Infantaria. Desembarcou em Utah Beach na quinta hora da invasão do Dia d e foi parar no meio de alguns dos confrontos mais sangrentos da libertação – na floresta Hürtgen e depois na Batalha do Bulge, no inverno de 1944. A 4a Divisão sofreu terríveis baixas nesses combates, e Salinger, segundo seu próprio relato em cartas, ficou traumatizado. Combateu por 11 meses durante o avanço sobre Berlim, e, no verão de 1945, depois da rendição alemã, tinha sofrido, ao que parece, um colapso nervoso. Internou-se num hospital militar em Nuremberg. Pouco depois de ter alta, e quando ainda estava na Europa, escreveu o primeiro conto narrado pelo próprio Holden Caulfield, o verdadeiro início de O apanhador no campo de centeio. Chamava-se “Estou louco”. (Foi publicado na revista Collier’s em dezembro de 1945.)
“Um dia perfeito para peixes-banana”, publicado pouco mais de dois anos depois, é, evidentemente, a história que apresentou Seymour Glass, o mais velho e mais inverossimilmente dotado dos inverossimilmente dotados meninos Glass, e também aquela que o liquidou, uma vez que Salinger faz Seymour se matar na última página. Se avaliarmos Seymour com base apenas nas narrativas posteriores da saga dos Glass, nas quais ele aparece como uma espécie de santo – “Franny” e “Pra cima com a viga, moçada” (ambos publicados na The New Yorker, em 1955), “Zooey” (1957), “Seymour: uma introdução” (1959) e “Hapworth 16, 1924” (1965), última obra publicada de Salinger –, provavelmente concluiremos que ele se matou porque a estupidez do mundo o enlouquecera. Mas em “Um dia perfeito para peixes-banana” fica claro que Seymour se mata porque a guerra o enlouqueceu. Ele acabou de receber alta do hospital militar, e seu comportamento no conto não é o de um santo, o de um visionário ou o de um excêntrico cativante; é maluco e, no fim das contas, psicótico. Seymour é uma vítima da guerra. Como também o é, de modo muito mais óbvio, o protagonista não nomeado de “Para Esme – com amor e sordidez”, um soldado americano que faz amizade com uma menina inglesa de 13 anos pouco antes de partir para participar da invasão do Dia D. O apanhador no campo de centeio se tornou um best-seller quando foi publicado, em 1951, mas sua recepção como manifesto cultural importante só aconteceria em meados daquela década, quando as pessoas começavam a falar sobre “desajuste”, “conformismo” e “cultura jovem” – a época de Uivo, de Juventude transviada, dos primeiros discos de Elvis Presley. Foi como herói daquela cultura que Holden Caulfield sobreviveu. Mas O apanhador no campo de centeio não é um romance dos anos 1950; é um romance dos anos 1940. E não é uma celebração da juventude. É um livro sobre a perda e sobre um mundo que deu errado.
Em meados dos anos 1950, Salinger tinha desaparecido na sua toca em New Hampshire. A rejeição de O apanhador no campo de centeio pela The New Yorker evidentemente não teve efeito nenhum sobre ele como escritor. Criticado por criar uma família com quatro crianças precoces e por escrever num estilo que atraía atenção para si próprio, ele foi em frente e criou uma família com sete crianças precoces, e produziu, em “Zooey” e “Seymour”, obras de supremo exibicionismo literário.
“Zooey” e “Seymour” são exibicionistas porque a corrente emocional que move os personagens se tornou livre de qualquer coisa que de fato lhes tenha acontecido. Eles não são lançados num estado de intensidade mais elevada pelo trauma ou pela dor. Em “Franny”, a crise espiritual de Franny Glass é uma espécie de biombo que encobre a circunstância bastante mundana de que ela foi engravidada por um homem que ela percebe que continuará sendo, a vida toda, um major inglês pomposo. Mas em “Zooey”, publicado dois anos depois, a crise espiritual de Franny é legítima, porque, ao que parece, ter crises espirituais é o preço que se paga por ser um Glass neste mundo sórdido. Não há sinal nenhum de gravidez. Temos, em vez disso, a Senhora Gorda de Seymour. Depois de 1955, Salinger parou de escrever histórias, no sentido convencional. Parecia ter perdido o interesse pela ficção como forma de arte – talvez achasse que havia algo de manipulador ou inautêntico no dispositivo literário e no controle autoral. Sua presença começou a se dissolver no mundo da sua criação. Ele deixou que os títeres assumissem a direção do teatro.
A The New Yorker não viu problema em publicar “Zooey” (que é até hoje o mais extenso texto de ficção que ela já publicou) e “Seymour”. A revista parece ter deixado para trás sua preocupação com a credibilidade e a transparência. Salinger modificou a estética da The New Yorker, numa época em que a estética da The New Yorker era o padrão-ouro da ficção curta, e isso é um indício do impacto que ele teve na escrita americana. Há muitos outros. Os primeiros contos de Philip Roth, reunidos em Adeus, Columbus, têm algo da voz de Salinger e de seu timing cômico, e é difícil ler os monologuistas posteriores de Roth, divertidos, pesarosos, resmungões, sem imaginar Holden Caulfield e Zooey Glass como presenças ancestrais.
Ainda assim, Roth não estava tentando reescrever O apanhador no campo de centeio; a completa ausência de ironia de Salinger dificilmente poderia exercer um apelo sobre ele. Mas outros autores tentaram, pelo menos um em cada década desde que o livro surgiu. Sylvia Plath fez uma versão dele para garotas em A redoma de vidro (1963); Hunter Thompson produziu uma para gente que não conseguia acreditar que Nixon era presidente e que Jim Morrison tinha morrido, em Medo e delírio em Las Vegas (1971). Brilho da noite, cidade grande (1984), de Jay McInerney, era a versão metropolitana; Uma comovente obra de espantoso talento (2000), de Dave Eggers, é a da era MTV. Muitos livros protagonizados por jovens sedutoramente infelizes foram publicados depois de O apanhador no campo de centeio, é claro, e alguns deles foram escritos por gente que sem dúvida via Salinger como um modelo e uma influência. Mas isso não faz desses livros repetições nem reelaborações de O apanhador no campo de centeio. A barreira a ser saltada foi colocada bem mais alto que isso, e a razão tem a ver com a mística de Salinger.
A razão por que Salinger optou por sumir de vista e deixar de publicar é problema dele, e em princípio não deveria ter nada a ver com o modo como as pessoas leem a obra que ele publicou. Mas tem. Os leitores não conseguem evitar. O recolhimento de Salinger é uma das coisas por trás, por exemplo, da transformação de Holden Caulfield de personagem ficcional em herói cultural: ele ajuda a confirmar a crença de que a infelicidade de Holden era menos pessoal do que parece – de que ela é na verdade algum tipo de protesto contra a vida moderna. Ajudou também a confirmar a percepção, incentivada pela própria conduta posterior de Salinger, de que não havia distinção entre Salinger e seus personagens – de que se você topasse com Salinger na agência do correio de Cornish, New Hampshire (que ao que parece é onde seus espreitadores geralmente o flagravam), seria exatamente como topar com Holden Caulfield ou Seymour Glass. Ao se isolar, Salinger glamourizou seus desajustados, pois ser um desajustado que também é capaz de escrever como J.D. Salinger – um Holden Caulfield que publica na The New Yorker – deve ser de fato muito glamouroso.
É por isso que o narrador, nas obras que são novas versões de O apanhador no campo de centeio, é sempre um redator de revista. O mesmo, evidentemente, vale para o autor de cada nova versão de O apanhador no campo de centeio, e o autor e o narrador estão separados quando muito por uma linha muito tênue. O modelo para o narrador não é mais Holden Caulfield. E não é J.D. Salinger imaginado como Holden Caulfield. É o autor imaginado como J.D. Salinger imaginado como Holden Caulfield. Não se pode, em outras palavras, reescrever O apanhador no campo de centeio simplesmente contando a história de um adolescente infeliz e atualizando as referências culturais, ou transpondo os eventos para uma cidade diferente, ou mudando o sexo do protagonista. É preciso reproduzir a mística de Salinger, porque a mística se tornou parte do que O apanhador é. O produto final da reescrita ideal de Salinger não é uma história de Salinger. É Salinger. Para reescrever a história de Holden Caulfield você tem que se tornar um gênio melancólico também. Tem que ser o seu próprio rei desditoso.
O livro que parece, em alguns aspectos, mais próximo do de Salinger é o de Plath. Plath pertencia à primeira geração de leitores de O apanhador. Ela o leu em algum momento antes de 1953, quando, aos 20 anos, passou parte de um verão em Nova York como estagiária na Mademoiselle. (Quando chegou à revista, pediu que a mandassem entrevistar Salinger, cujas Nove histórias tinham acabado de ser publicadas. Em vez disso, deram-lhe Elizabeth Bowen.) Esse estágio e o subsequente colapso e hospitalização de Sylvia Plath seriam a base, dez anos depois, para A redoma de vidro.
Resenhistas notaram imediatamente a semelhança com O apanhador, e há ecos da voz e da história de Holden na voz e na história da heroína de Plath, Esther Greenwood. Mas Plath não estava meramente se apropriando.
Deve ter sentido que uma aspirante a redatora de revista na Nova York de 1953, quando Salinger estava no auge, veria naturalmente a vida de um jeito salingeriano. Quando Esther diz, por exemplo, “Sou estúpida com relação a execuções” (1953 é o ano em que os Rosenberg foram executados), está adotando uma atitude de Caulfield. A vaga aversão de Esther ao sexo é uma aversão parcialmente aprendida com O apanhador; sua obsessão pela loucura e o suicídio é em parte a obsessão de uma admiradora de “Teddy” e de “Um dia perfeito para peixes-banana”. Em outros aspectos, porém, A redoma de vidro e O apanhador no campo de centeio são livros muito diferentes, e a diferença pode ser sintetizada no fato de que nenhum leitor jamais quis ser Esther Greenwood. Holden (a despeito da confusão do executivo da Harcourt Brace) não é louco; ele relata sua história instalado num sanatório (onde se internou por causa do temor de estar com tuberculose), não num hospício. A brutalidade do mundo o deixa doente. A mesma brutalidade enlouquece Esther.
A redoma de vidro também se tornou parte do currículo de inglês do colégio, um texto oficialmente aprovado para adolescentes, um livro sobre a cultura dos jovens. As versões posteriores de O apanhador –— as de Thompson, McInerney e Eggers –— ainda não são canônicas nesse sentido. As pessoas não as leem por terem sido recomendadas pelos pais. Leem pela mesma razão que as leva a escutar rock alternativo ou ver Pulp Fiction seis vezes – porque são coisas que ensinam uma atitude. São manuais de sensibilidade, mostram que tipo de infelicidade está na moda na década em curso.
As novas versões de O apanhador no campo de centeio são todas construídas, grosso modo, sobre o mesmo molde: o trauma desencadeado por uma morte (no livro de Thompson, é a morte dos anos 1960), seguido por um episódio de regressão emocional e uma espécie de guerra obscura, predominantemente mental, com o restante do mundo. Elas compartilham com O apanhador e A redoma uma temática vagamente cristã referente a salvação, redenção e renascimento, e se servem fartamente do catálogo de Salinger e Plath: múmias, fetos, comas, manchetes sensacionalistas, perversões, sexo desastrado, tentativas de suicídio, suicídios, fantasias de morte, mortes. Os narradores têm um desprezo mordaz por tudo e todos, incluindo eles próprios. Os livros são divertidos, mas são sobre perda, frustração e derrota. E cada um deles parece ter atingido um nervo geracional, como se ninguém tivesse contado antes aquela história, ou tocado aquelas notas. O que torna tão irresistível a sua melancolia?
Pensamos na nostalgia como uma emoção que cresce com a idade, mas, como a maioria das emoções, ela é mais aguda quando somos jovens. Há alguma nostalgia mais poderosa que os sentimentos de um aluno do quarto ano revisitando sua classe da pré-escola? Aquelas cadeiras minúsculas, os velhos tubos de massinha, os cantinhos onde empilhávamos nossos agasalhos sobressalentes – queremos entrar de novo naquele mundo, mas agora estamos no quarto ano, somos grandes demais. Caímos fora do carrossel. Embora “juventude” supostamente signifique entusiasmo pela mudança, gente jovem não tem mais vontade de mudar do que qualquer outra pessoa, e é até provável que tenha menos. O que eles secretamente querem é o que quer Holden: querem que o mundo seja como o Museu de História Natural, com cada coisa congelada exatamente do jeito como era na primeira vez que a encontraram.
Uma boa parte da “cultura jovem” – isto é, as coisas que as pessoas mais jovens consomem, em oposição às coisas que as pessoas mais velhas consomem (como O senhor das moscas) com o intuito de aprender sobre “a juventude” –— apela para esse sentimento de perda. Você vai a uma festa em que está tocando uma nova canção pop, e pelo resto da sua vida ouvir aquela canção desencadeia a mesma emoção. Ela toca no rádio e você pensa: naquele tempo é que as coisas eram boas de verdade. Você quer ouvir de novo e de novo. Ficou viciado. A cultura da juventude adquire sua pungência com o tempo, e de modo tão completo que você mal consegue ver o que ela é em si. É simplesmente, e de modo permanente, a “sua canção”, a sua história. Quando pessoas que cresceram nos anos 1950 dão O apanhador no campo de centeio a seus filhos, é como se mostrassem um velho álbum de fotografias: este sou eu.
Não é, claro. Talvez, na verdade, a nostalgia da cultura jovem seja completamente espúria. Talvez ela convide a nos entregarmos a lembranças agridoces de uma infância que nunca tivemos, a um idílio de canções dos Beach Boys e cheeseburgers e conversíveis e amores adolescentes que foi construído por canções pop, programas de televisão e filmes, e tem muito pouca relação com qualquer experiência que tenhamos mesmo vivido. Mas, seja espúria ou não a emoção, as pessoas a sentem. É a certeza romântica, com a qual todos esses livros nos seduzem, de que de algum modo, em algum lugar, alguma coisa foi tirada de nós, e não podemos consegui-la de volta. Um dia, no passado, giramos de fato num carrossel. Dava a impressão de que ele duraria para sempre.