Um norte-americano fascinado pela cultura europeia e transplantado para a Inglaterra, um escocês enredado pelo encanto dos arquipélagos do oceano Pacífico, e um afetuoso polinésio chamado Ori-a-Ori. Uma troca de cartas entre pessoas de backgrounds e universos mentais tão diversos, por si só pitoresca, se torna ainda mais interessante quando dois dos missivistas são os escritores Henry James e Robert Louis Stevenson. Eles haviam tido um primeiro contato em 1884, quando Stevenson publicou um “humilde protesto” contra o clássico ensaio de James sobre a arte da ficção. A discussão teórica desdobrou-se numa correspondência íntima e numa grande amizade. Em 18 8 7, contudo, Stevenson partiu para longa perambulação pela Polinésia. E foi no Taiti que fez amizade com seu anfitrião e guia Ori-a- Ori. Mais tarde, seguiria viagem rumo a Samoa, onde ficaria até morrer, em 1894.

 

De Henry James para Stevenson

 

CARTA ABERTA

DE VERE GARDENS, 34, WEST LONDON 31 DE JULHO DE 1888

Meu caro Louis,

Você está longe demais – ausente demais –, invisível, inaudível, inconcebível demais. A vida é brevíssima, e a amizade é matéria muito delicada para tais lances, para que se cortem nacos sanguinolentos assim – um ano de uma vez! Por isso, volte. Que tudo vá à breca, que tudo vá a pique – e que você volte logo. Mais um pouco e deixarei de acreditar em você: não quero dizer (no sentido habitual do termo) em sua veracidade, porém literalmente e mais fatalmente em sua verdade – sua existência objetiva. Você se tornou um belo mito – uma espécie de mort inusitado, incômodo, insepulto. Mês a mês, você faz soar sua voz em tons tão felizes – todavia, ela vem de muito longe, do outro lado do globo, e então você é para mim como um mosquitinho andando pela superfí­cie inferior da minha poltrona. Suas aventuras são, sem dúvida, maravilhosas; só não consigo, de fato, evocá-las, entendê-las, acreditar nelas. Posso crer nas que você escreve, Deus sabe, mas não nas que você vive, ainda que as últimas, eu sei, levem a novas revelações acerca das primeiras, e sua habilidade com elas seja, decerto, maravilhosa o bastante. Este é um brado pessoal e egoísta: eu o quero de volta; pois a literatura é solitária, e Bournemouth é árida sem você. Seu lugar em meus afetos não foi usurpado por outro, porque não há nem sequer a sombra de outro que possa usurpá-lo. Se houvesse, eu tentaria perver­samente me interessar por ele. Mas não há, repito, e literalmente não me inte­resso por nada senão por sua volta. Não tenho nem mesmo seu romance para enganar o estômago. Os lânguidos e úmidos meses vão passando e nem sinal dele. Sobre a cornija da lareira, vejo tremeluzir o belo retrato de sua mulher – o gentil McClure o trouxe há alguns meses, entretanto, a imagem parece difusa, distante e deliciosa como a de uma beldade do século passado. Quisera eu que você tivesse saudade – quisera eu que sua farra chegasse ao fim. O tempo anda sem feição. O verão está impregnado de reumatismo – uma estação sombria, sufocante, como nunca se viu. A cidade está vazia, mas não vou partir. Não tenho dinheiro, porém tenho algum trabalho. Faz pouco, escrevi uma série de relatos breves – esses você não vai ver enquanto não voltar para casa. Acabo de começar um romance [The Tragic Muse] que deve sair pela Atlantic [Monthly] a partir de 1º de janeiro e que espero concluir antes do fim deste ano. Na verdade, acho que não estarei livre dele até meados do ano que vem. Depois disso, se Deus quiser, não vou, por um bom período, escrever nada que não seja breve. Quero deixar uma multidão de imagens do meu tempo, projetando meu pequeno foco circular sobre o maior número possível de pontos, primando tanto pelo número como pela qualidade, de tal forma que o número chegue a um conjunto que tenha valor como observação e testemunho. Mas não há uma única criatura aqui para quem eu possa sequer murmurar tal intenção. Nada se destaca nestas ilhas a não ser a vil politicagem. A crítica é de uma estu­pidez e de uma puerilidade abjetas – ela não existe –; ela rebaixa a inteligên­cia de nossa raça a um nível muito rasteiro. Todas as manhãs, Lang, no D[aily] N[ews] e, creio, em centenas de outros lugares, emprega seu estro fácil e frágil para reduzir tudo ao mais baixo nível da falação filistina – é a visão da velhota aqui ao lado ou do sabichão a uma mesa de jantar. Outro dia, a Sociedade dos Autores Ltda. (sou membro e acho que você também, embora não saiba bem de que se trate) ofereceu um jantar aos literatos americanos para lhes agra­decer as preces em prol do copyright internacional. Eu tive o cuidado de me abster por achar precipitada a comemoração, e vejo pelo Times desta manhã que a ventilada ventura nunca esteve tão distante. Edmund Gosse enviou-me uma engenhosa biografia de Congreve, que acaba de sair, e eu a li, contudo não é tão boa quanto a outra, de Raleigh. Mas basta deste assunto insuportável… Vamos, meu caro Louis, não vivamos à míngua. Não tenho como demovê-lo porque, como disse, mal consigo concebê-lo. Você matou a imaginação em mim – aquela fração que o figurava e na qual você aparecia vívido e próximo. Sua mulher, sua mãe e o sr. Lloyd sofrem também, devo confessar, desta falta de alento, de fé. Tenho, claro, sua carta de Manasquan (é este o nome estú­pido?) do dia… Mas que ingenuidade a minha, pensar que havia uma data! Era terrivelmente impessoal – de pouco me serviu. Mais um tempo e já não acre­ditarei em você, já não poderei lhe mandar minhas bênçãos. Tome esta, por­tanto, como sua última chance. Sigo seus passos com uma asa dolorida, uma geografia inadequada e uma esperança imorredoura. Sempre seu, meu caro Louis, até o último ralho,

Henry James

 

De Stevenson para Henry James

 

HONOLULU, MARÇO DE 1889

Meu caro James,

É verdade – confesso –, estou em falta com a amizade e (o que não é tão grave, mas ainda assim digno de nota) com a civilização. Passo outro ano longe de casa. Aí está, nu e cru, e agora sim é que você não põe mais fé em mim e benfeito (dirá você) e que o diabo me carregue. Mas veja bem e me julgue com brandura. Tive mais diversão e prazer nos últimos meses do que jamais em minha vida, e mais saúde do que em dez longos anos. E mesmo aqui em Honolulu o frio me fez murchar; e estas preciosas águas estão repletas de ilhas a serem desbravadas; e ainda que o mar seja um ambiente funesto, gosto de navegar; e gosto das borrascas (depois que elas passam); e chegar a uma nova ilha, não sei nem dizer como isso é bom! Em suma: levo por mais um ano esta vida e pretendo tentar me esquivar às flechas envenenadas e (se possível) vol­tar são e salvo e conversar com Henry James como outrora; nesse meio-tempo, deixo instruções a H.J. para que me escreva mais uma vez. Que ele envie sua carta aqui para Honolulu, pois meus rumos são incertos; se ela for enviada para cá, há de me seguir e de me encontrar, se eu puder ser encontrado; e se eu não puder ser encontrado, o bom James terá cumprido seu dever, e nós estaremos no fundo do mar, onde não se pode esperar que carteiro algum nos descubra, ou definhando numa ilha de coral, servos resignados de algum potentado bárbaro – quiçá até de um missionário americano. Minha mulher acaba de enviar à sra. Sitwell uma tradução (tant bien que mal) de uma carta que recebi de meu melhor amigo neste canto do mundo: vá visitá-la e dê uma espiadela na carta; vai lhe fazer bem; é um método de correspondência ainda melhor que o de Henry James. Faço troça, mas, de verdade, é uma coisa estra­nha para um escriba de meia-idade, gasto e doente como R.L.S., receber uma tal carta de um homem de 5 0 anos, político de destaque, orador de primeira, a melhor cabeça de seu vilarejo: em poucas palavras, “o deputado mais popu­lar de Tautira”. Meu século 19 veio dar aqui, e se posta ao lado de algo belo e ancestral. Acho que o destinatário de uma carta como essa deveria se cobrir de modéstia – diria até [trecho ilegível] e, para mim, mais vale tê-la recebido do que ter escrito Redgauntlet ou o sexto canto da Eneida. Dito isto, se meus livros me permitiram ou me ajudaram a fazer esta viagem, a conhecer Rui e a receber essa carta, eles não terão sido (segundo a velha fórmula dos pre­fácios) escritos em vão. Isto pode soar menos a modéstia que a fanfarronice; porém posso lhe garantir que, de fato, as duas coisas são verdade. Um pouco do que diz a tal carta é mérito meu; não tudo, mas um pouco pelo menos; e este pouco me orgulha, e todo o resto me envergonha; e quão mais belo é no geral o homem antigo se comparado ao de hoje!

Ora, ora, Henry James é um bom homem, muito embora seja do século 19, e isso a olhos vistos. E para cair em suas graças, quisera eu ser mais explícito; porém, de fato, não tenho como ser menos vago, e não sei dizer o que vou fazer, nem para onde vou por algum tempo ainda. Assim que eu tiver cer­teza, você saberá. Todos vão muito bem –— a mulher, sua compatriota, menos que todos; os problemas não são completamente alheios; mas no geral pros­peramos, e somos, afetuosamente, seu,

Robert Louis Stevenson

 

De Ori-a-Ori para Stevenson

 

Faço você saber de meu grande afeto. Na hora em que você nos deixou, fiquei cheio de lágrimas; minha mulher, Rui Telime, também, e todo o pessoal da casa. Quando você embarcou, senti um grande sofrimento. É por isso que fui até a estrada, e você olhou daquele navio, e olhei para você no navio com grande tristeza até que vocês levantaram âncora e içaram as velas. Quando o navio partiu, corri pela praia para ver você ainda; e quando você já estava em mar aberto eu gritei: “Adeus, Louis”; e quando estava voltando para casa, tive a impressão de ouvir sua voz dizendo: “Rui, adeus”. Depois fiquei olhando o navio o quanto pude até cair a noite; e quando ficou escuro eu disse para mim mesmo: se eu tivesse asas, voaria para o navio para encon­trar vocês e para dormir no meio de vocês, para poder voltar à costa e dizer a Rui Telime: “Eu dormi no navio de Teriitera”.

Depois disso, passamos aquela noite na impaciência da tristeza. Por volta de oito horas, tive a impressão de ouvir sua voz, “Teriitera – Rui – aqui está a hora de putter [queijo] e tiro [melaço]”. Não dormi naquela noite, pen­sando continuamente em você, meu querido amigo, até de manhã; estando então ainda acordado, fui ver Tapina Tutu na cama dela, e, ai de mim, ela não estava lá. Depois olhei nos quartos de vocês; não fiquei feliz como antes. Não ouvi sua voz dizendo “Olá, Rui”; assim, pensei que você tinha partido e que você tinha me deixado. Então saí, fui à praia para ver seu navio e não o vi. Aí, chorei, até a noite, dizendo para mim mesmo sem parar: “Teriitera volta para seu próprio país e deixa seu querido Rui na tristeza, e por isso eu sofro por ele e choro por ele”. Não vou esquecer você em minha memó­ria. Aqui está o pensamento: desejo encontrar você de novo. É o meu que­rido Teriitera a única riqueza que desejo neste mundo. São seus olhos que desejo ver de novo. O que deve ser é que meu corpo e seu corpo vão comer juntos na mesma mesa: aí está o que faria meu coração contente. Mas agora estamos separados. Que Deus esteja com vocês todos. Que Sua palavra e Sua misericórdia acompanhem vocês, para que vocês fiquem bem e nós tam­bém, segundo as palavras de Paulo.

Ori-a-Ori, quer dizer,

Rui