Por uma convenção editorial, a Revista Brasileira não fazia distinção gráfica entre ficção e ensaio, nem os separava em seções distintas. Por uma outra convenção, também não indicava junto ao título de cada texto o nome de seu autor, que saía na última página, à maneira de assinatura. Assim, o leitor que começasse a folhear o número de 15 de março de 1880 não teria como saber à primeira vista de quem eram e a que gênero pertenciam aquelas Memórias póstumas de Brás Cubas que a revista começava então a publicar.
As tais Memórias começavam de chofre, no primeiro capítulo, com uma epígrafe de Shakespeare (As You Like It III.2) mas sem a dedicatória “Ao verme” e a nota “Ao leitor” a que nós, leitores do romance em livro, estamos acostumados. Essa ausência, aliás, torna mais saborosa a esquisitice do título: num exercício especulativo, podemos imaginar que mais de um leitor da Revista Brasileira terá começado a ler o romance como se fossem as memórias postumamente publicadas de algum sujeito de carne, osso e nome de sabor histórico, para logo se ver confrontado no primeiro parágrafo com o óbito do narrador, não “propriamente um autor defunto, mas um defunto autor”.1
É um efeito ou escaramuça menor, que só pode se produzir no formato da revista, isto é, sem capa ou folha de rosto a indicar de saída a diferença entre o autor Machado de Assis e o narrador Brás Cubas; mas é o suficiente para que nos perguntemos se o escritor não terá tratado de incorporar vários aspectos da revista, como as convenções gráficas, a prática da serialização – as Memórias foram publicadas na Revista Brasileira entre 15 de março e 15 de dezembro de 1880 – e mesmo os vizinhos de página à textura do romance.
Assim, é delicioso notar, lendo-se as Memórias na Revista, como volta e meia Machado realça o fim de um maço de capítulos destinados a um dado número da revista por meio de um fecho de parágrafo mais desaforado – e, portanto, também realça o desaforo ao postá-lo no fim de uma leva de capítulos. Assim, em 15 de abril, a última frase do atual capítulo 22 (“Não, não alonguemos o capítulo”) deixava o leitor a ver navios até o número seguinte. O convite terrível ao fim do atual capítulo 34, que encerrava a quota do número de 15 de maio (“e acabemos de uma vez com esta flor da moita”), e no qual se tratava da pobre Eugênia, certamente soava mais terrível por não haver espaço para maiores explicações. O mesmo vale para a conclamação final do atual capítulo 109 (“Eu fui direto ao mar. Venha para o humanitismo”), cujo ar de bravata e de “piparote” ao bom senso do leitor era ainda maior por vir ao fim da leva de 1 de outubro .2
Nada disso é, em princípio, estranho à praxe oitocentista do romance de folhetim serializado, gênero bem conhecido do nosso autor e de seus leitores de 1880. Conhecedor do gênero, da técnica – as Memórias eram seu quarto romance publicado em forma seriada – e da expectativa do público, Machado diverte-se, contudo, em atiçar a curiosidade romanesca do leitor apenas para frustrá-la em tom de zombaria. No folhetim, por exemplo, a aparição de uma mulher misteriosa anuncia grandes peripécias; no capítulo 1 das Memórias, Virgília é anunciada apenas para ser posta para fora da cena: “Tenham paciência! Daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora”. No capítulo 3, é a vez de Cotrim, outra personagem central, a ganhar nome mas não corpo: “O Cotrim, um sujeito que… Mas não antecipemos os sucessos; acabemos de uma vez com o nosso emplasto.”
Esse prazer meio perverso em frustrar o leitor ganha nome (“pachorra”) no capítulo 4:
“Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra […].”
E, quando parece retornar à boa regra e cuida de providenciar uma transição narrativa mais corriqueira, o narrador de Machado o faz em tom explícito, excessivo e paródico: “E agora vejam com que destreza, com que arte faço eu a maior transição deste livro”.
Mais do que apenas praticar um gênero, Machado o pratica e o expõe, num movimento que é tanto cômico quanto autorreflexivo. Esse viés da escrita machadiana distingue-a, de um lado, da indústria com que um Alencar se aplica a incorporar a fórmula do romance folhetinesco à literatura brasileira e, de outro, do modo como um Flaubert, publicando Madame Bovary na Revue de Paris ao longo de 1856, converte a peripécia romanesca em tema do romance e já não permite que o suporte serializado afete a composição da narrativa. Mais tarde, no livro de 1881, o próprio Machado se encarregaria de formular, na nota “Ao leitor”, a sua própria singularidade: “[…] a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual”.
Mas o jogo de espelhos entre as Memórias e seu contexto imediato vai além de aspectos gráficos e editoriais. Como já vimos, na Revista Brasileira as Memórias dividiam espaço em pé de igualdade metonímica com o que passava por ser a fina flor da cultura letrada do Brasil da época.
Folheando a revista nos anos em torno a 1880, o leitor dá com uma homenagem coletiva a Camões (para a qual Machado contribuiu com o soneto “Um dia, junto à foz do brando e amigo”); o longo poema “O Beata Solitudo! (Nas Cabeceiras do Rio Barcarena)”, assinado por um certo Júlio César; ensaios sobre “Delinquentes impúberes”, “As bactérias e os vibriões”, “As ostreiras de Santos e os kiokken-moddings da Dinamarca”; uma tradução do Tartufo e outra das Institutas do imperador Justiniano; sem falar de “Gwerziou breiz izel” ou “Cantos populares da Baixa Bretanha”. A prática da serialização aplicava-se também aos ensaios mais extensos, de modo que, números a fio, as Memórias eram acompanhadas ou antes perseguidas pelos sucessivos capítulos da “Poesia popular no Brasil”, de Silvio Romero, e pela “Questão penitenciária no Brasil” (longa, muito longa, insuportavelmente longa), de um certo A.H. de Souza Bandeira.
Se então, com a pauta da Revista Brasileira ainda fresca na memória, retomar as Memórias, o leitor dificilmente escapará à sensação de déjà-vu. No romance e na revista, encontrará a mesma erudição bacharelesca, a mesma grandiloquência, os mesmos fumos de classicismo e, por que não dizê-lo, a mesma “sede de nomeada”, tão pronunciada nos muitos colaboradores da revista quanto no narrador Brás Cubas. Lendo-se por esse viés, o capítulo “A moeda de Vespasiano” passa a fazer parte do mesmo mundo que a tal versão das Institutas de Justiniano, a reminiscência de um verso latino em “O autor hesita”, em que se fala de Virgília, replica a douta querela em torno à “Interpretação de um verso da Eneida” (Revista Brasileira, 15 de abril de 1880); do mesmo modo, o humanitismo de Quincas Borba e o emplasto de Brás Cubas começam a se assemelhar às discussões fartas e quase sempre de segunda mão que correm soltas nas páginas da revista.
Com uma diferença, entretanto: o que é levado a sério nas páginas da revista (que, aliás, é muito pobre em humor), é elevado ao absurdo risível no corpo da narrativa de Machado. Não por obra da sátira aberta ou amena, que afinal seria apenas mais um jogo de letrados, mas antes, como sugeriu Roberto Schwarz, por obra da arte astuciosa de mimetizar os modos e a falta de modos, verbais e não-verbais, de certos tipos sociais brasileiros. O que os exemplos acima sugerem é que algo dessa estratégia literária foi, não determinada, mas sugerida a Machado pela convivência, promíscua e fértil, do romance com a revista. Num efeito de mise-en-abîme, a figura de Brás Cubas com sua “singular volubilidade” seria, entre outras coisas, a redução, a suma maliciosa e paródica dos colaboradores que a Revista Brasileira reunia a cada novo número.
Um exemplo curioso pode dar ideia do alcance desse modo de escrita. Como já vimos, faltam à edição serializada das Memórias a nota “Ao leitor” e a dedicatória: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. A frase, de intenção fúnebre e solene, acaba por soar estapafúrdia em sua mistura de pompa, sentimentalismo e inverossimilhança.
Pois bem, ao final do número de 1 de março, nas páginas que precedem o início da publicação das Memórias, a Revista Brasileira publicara “Flores funestas”, um buquê de poemas de Teófilo Dias. O último destes, “A esfinge”, terminava assim: “Eu te amo, beleza fátua, / Minha perpétua loucura, / Como o verme a flor mais pura, / E o musgo a mais bela estátua”. Não há como ser taxativo nessas coisas, mas é bem plausível que o verme homenageado nas Memórias seja parente deste outro verme contíguo que ama e corrompe a flor mais pura, que o gesto retórico de Brás Cubas aluda parodicamente à pose satanista de Teófilo Dias e que, estendendo o raciocínio, Machado tenha trazido a revista não só para dentro do relato mas também para dentro do próprio livro. Alguma evidência histórica e filológica aponta nessa direção.
O maranhense Teófilo Dias (1854-1889), sobrinho de Gonçalves Dias, pertenceu, ao lado de Carvalho Jr., Fontoura Xavier e Afonso Celso Jr., ao grupo de jovens poetas de fins da década de 1870 que Antonio Candido estudou em A educação pela noite3 e que Machado de Assis comentou no calor da hora na resenha “A nova geração”, publicada justamente na Revista Brasileira de 1 de dezembro de 1879. Em sua vida breve, Teófilo Dias morou no Rio de Janeiro – onde travou relações com Machado –, bacharelou-se em direito em São Paulo e publicou quatro volumes de poesia: Lira dos verdes anos (1878), Cantos tropicais (1878), Fanfarras (1882) e A comédia dos deuses (1887).
Em seus poemas, como nos de seus companheiros, a recusa do lirismo romântico se traduz na adesão a um satanismo de sabor baudelairiano, conjugado a certa apoteose do amor carnal em tudo estranha à melancolia corrosiva do poeta francês. Candido fala de “satanismo atenuado e sexualidade acentuada”: um verso de “Antropofagia”, de Carvalho Jr., por exemplo, fala de “vermes sensuais” que se distanciam, em sua encarnação brasileira, da “vermine / qui vous mangera de baisers” das Flores do mal e que por vezes se aproximam da mera grosseria; o lamento de um torna-se o elogio do “amordevoração” no outro. Sobre o mesmo poema, Machado comentava no artigo sobre “A nova geração”, com ar de quem enumera lugares-comuns: “Lá estão, naquela mesma página, as fomes bestiais, os vermes sensuais, as carnes febris”. O gosto jovem entendia “realismo” meramente como “expressão de certa nota violenta”, comentava Machado, para arrematar, a propósito da filiação do grupo a Baudelaire: “não sei se diga que a imitação é mais intencional do que feliz. O tom dos imitadores é demasiado cru.” Aliás, não era outra “a tradição de Baudelaire entre nós”; “tradição errônea”, que trazia “o perigo de reproduzir os ademanes, não o espírito, a cara, não a fisionomia”.
De modo que, à mesma altura em que trabalhava nas Memórias póstumas e refletia sobre o sentido do realismo na literatura, Machado debruçava-se igualmente sobre os poemas de uma geração que “carrega[va] a mão”. Não é nada descabido, portanto, pensar que, na página inicial do livro, Machado deu vazão a sua desconfiança diante dos “ademanes” da “nova geração”, encarregou seu defunto narrador de imitar os imitadores, reiterou o verme das “Flores funestas” no verme da dedicatória e, assim fazendo, fez de Brás Cubas, moço bem-nascido mas em tudo cru, um avatar possível de Teófilo Dias ou Carvalho Jr. – e vice-versa. Vale lembrar que o próprio Brás Cubas volta e meia lança mão da metáfora, como quando reencontra Marcela, a beleza destruída pelas bexigas que lhe “escalavraram” o rosto e a alma tomada pela “paixão do lucro, que era o verme roedor daquela existência”.
Em “Posto de gasolina”, primeiro fragmento de Rua de mão única, Walter Benjamin afirmava que o exercício da inteligência, a “verdadeira atividade literária”, já não podia se dar apenas “dentro de molduras” tradicionais e devia “cultivar as formas modestas”, como “folhas volantes, brochuras, artigos de jornal e cartazes”, mais pertinentes e efetivas que “o pretensioso gesto universal do livro”. Essa “linguagem de prontidão” era a única a se mostrar à altura dos tempos. Com os ajustes devidos, digamos que Machado de Assis intuiu, no Rio de Janeiro de 1880, algo do que Benjamin formulou na Berlim de 1928. E o intuiu não teoricamente, mas no coração de sua própria variante de “linguagem de prontidão”. Com as Memórias, Machado abriu os vasos comunicantes entre o livro e o periódico, trouxe a impureza deste para a composição daquele e, ao mesmo tempo, produziu uma visão desconcertante da Revista Brasileira e de seu mundo no espelho cômico e autorreflexivo do romance.
Não foi uma intuição passageira. Mesmo ao abandonar, depois de Quincas Borba e de Casa Velha, a prática da serialização, Machado conservou nos três romances finais, publicados diretamente em forma de livro, o capítulo curto, a alusão contemporânea, as formas narrativas marcadas a fundo pelo tempo dissolvente que vai passando enquanto se escreve o livro, como no quase diário de Bento Santiago ou no memorial do conselheiro Aires. Para fazer à moda de Machado e citar um ensaio estampado nesta mesma revista que o leitor tem em mãos (cf. Carlo Ginzburg, “David, Marat. Arte, política, religião”), digamos que por essa como por outras vias Machado introduzia a contingência no processo compositivo – e um primeiro sabor moderno na literatura brasileira.