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A instauração da República no Brasil segundo seus protagonistas

 

Não nos é possível neste momento ser historiador, apreciando os fatos em suas causas próximas ou remotas e emitindo juízo sobre casos que, para justo e imparcial julgamento, exigem a calma da reflexão. Vamos expor simplesmenteos acontecimentos de ontem, segundo as versões que nos pareceram mais aceitáveis.

Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 16.11.1889

 

1. PALAVRA DE MAJOR

De calça e paletó havana com pontos brancos, chapéu preto de feltro e óculos azuis, o impetuoso major Frederico Sólon de Sampaio Ribeiro, futuro sogro de Euclides da Cunha, está pronto para um golpe de estado.

Passa das três da tarde quando toma o bonde até o largo de São Francisco de Paula. Na rua do Ouvidor, que cospe gente para a calçada, pergunta se alguém viu Quintino Bocaiuva, Aristides Lobo e Lopes Trovão. Vem alertá-los: o governo irá prendê-los, assim como ao general Deodoro e ao dr. Benjamin Constant. Segue para a rua do Imperador e, perto da sede da 2ª Brigada, sopra a dois alferes que a polí­cia e a Guarda Negra atacarão os quartéis.

O boato é fogo em pólvora. Satisfeito, torna a casa para envergar a farda, que nessa noite de 14 terá muito uso.

 

2. DILIGÊNCIAS DE UM DELEGADO

Não é de hoje que o conselheiro José Basson de Miranda Osório suspeita do desgoverno das coisas. Hesitações em prevenir levam ao que não se pode remediar. Em julho, aquele caixeiro português desempregado deu tiro e viva à República, ao passar o carro do imperador. Basson o fez prender – embora digam que o açulou, para poder baixar sanções contra os desor­deiros. Proibiu, por exemplo, os vivas à República e espalhou secretas para aclamarem a monarquia, devidamente munidos de paus e navalhas. É que Basson, a despeito dos 53 anos, baixa estatura e olhos azuis, joga capoeira e, segundo seu colega de turma Almeida Nogueira, é “valente cacetista”.

Em desacordo, estudantes da faculdade de medicina vaiaram um minis­tro, enquanto compravam laranjas. Basson houve por bem endossar seu subdelegado na proibição à quitandeira. Os moços protestaram com pas­seata, levando a quitandeira, de baiana, e legumes e frutas na bengala e no chapéu. Em vivas… às laranjas.

De lá pra cá, tudo malparado. Somente ontem o visconde de Ouro Preto pediu-lhe providências. Hoje abundam rumores. O 1º Regimento está em armas em seu quartel. O homem que Basson mandou para averiguar ficou lá preso. Ele então reúne 40 praças e dois oficiais. São 11 da noite, num século que dorme cedo. Ainda assim, manda acordar ministros e o presidente da província. Ao chefe de gabinete escreve: “Afonso […]. Julgo necessária a tua presença aqui por todos os motivos.”

 

3. O HOMEM DE X + B

Segundo o imperador, Benjamin Constant é “excelente criatura, incapaz de violências, é homem de x mais B”. Distraído e desalinhado, cara aquadra­dada, em moldura de cabelos pretos, é um meigo. Para um taciturno, suicida malogrado, de mãe louca, até que se acertou. É professor da Escola Militar, onde difunde o positivismo. Mas vive ultrapassado por bem-nascidos. Só agora, aos 52 anos, chegou a tenente-coronel. Está desgostoso com a trans­ferência, a mando de Ouro Preto, do 22º Batalhão e com a prisão do tenente Carolino – no banheiro, bem quando o chefe de gabinete o foi procurar. Em outubro, em homenagem a oficiais chilenos na Escola Militar da Praia Ver­melha, extravasou. O ministro da Guerra saiu chispando, já jovens militares improvisavam baile para Benjamin e a República… do Chile.

Desde aí, uma azáfama. Conciliábulos no Clube Militar, com Mena Barreto, Deodoro, Sólon, e com civis, representados por Quintino e Lobo. Nessa segun­da-feira, Solón lhe traz pactos de sangue entre oficiais do Exército e alunos da Escola Superior de Guerra, pedindo a “destituição daqueles que só de males têm enchido o nosso país”. Então vai a Deodoro, presentes Quintino, Lobo, Francisco Glicério e Rui Barbosa: “General, [ … ] não é mais possível recuar: o Exército fará a revolução [ … ]”. O conclamado está de cama, mas assegura o apoio do ajudante-general Floriano Peixoto.

No dia 14, às 18 horas, de manta no pescoço e chapéu civil, volta a Deo­doro. Encontra só d. Marianinha: o doente pernoita na casa do irmão João, no Andaraí. “É preciso que a senhora o mande chamar.” Mas Deodoro talvez não amanheça, conta a Lobo e Glicério, no largo de São Francisco, e envia recado a Quintino: o “movimento” está adiado.

Contudo, o boato de Sólon já surte efeito. Às oito da noite, Mena Barreto subleva o 9º Regimento: “Deem-me uma blusa e uma espada, para mos­trar como se morre por um general!”. Distribui-se munição, conseguida em depósitos do governo devidamente arrombados. Às dez, o tenente-coronel Silva Telles encontra seus comandados do 1º Regimento em armas. Não podendo demovê-los, junta-se a eles.

Pelas quatro da manhã, Benjamin é acordado por oficiais da 2ª Brigada. Enverga sobretudo e chapéu alto, para esconder a farda. Quepe na mão, embrulhado em jornal. Manda chamar Deodoro e Floriano e pedir apoio ao Clube Naval. Diz à esposa que queime os pactos de sangue, em caso de insucesso. Ela recomenda: “Finja-se de médico indo ver doente”.

São quase cinco e meia quando avista Sólon, Mena Barreto e Pedro Pau­lino, outro irmão de Deodoro, vindo pelo Mangue, com o 1º Regimento de Cavalaria, a guarda de honra da Escola Superior de Guerra, o 2º Regimento de Artilharia e suas 16 bocas de fogo, e o 9º Regimento, a pé, de espada e revólver. Na retaguarda, a carroça de munições. Sem música, bandeira ou muito entusiasmo.

Benjamin os saúda e recebe vivas. Serzedelo Correia pergunta quem comanda. “Se Deodoro não vier, comandará esta força o Floriano.”

 

4. UM VISCONDE A PERIGO

Acabado o dia de mil afazeres, Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto, está em casa, perto da estação de trem São Francisco Xavier, com o inseparável Gentil de Castro.

O visconde é alto, sem ser magro. Tem suíças longuíssimas, 53 anos e um bengalão. Olha o mundo de cima, com seu pincenê. Na chefia de gabinete, que alcançou nesse junho, enfrenta o rescaldo da Abolição, insubordinações do Exército, brados federalistas e a cisão de seu Partido Liberal. Sua posse na Câmara, segundo Campos Sales, teve feições de “meeting, em plena praça pública, com todos os arrebatamentos das paixões populares”, terminado num viva à República.

O visconde julga que suplantará tudo. Entre intenção e execução, porém, vai um hiato. Tenta reorganizar a guarda nacional, fortalecer a polícia, domar o Exército e garantir maioria nas eleições parlamentares. Mas não logra punir Benjamin, que d. Pedro diz “acabará voltando ao bom caminho”, nem pôr um militar no Ministério da Guerra, em lugar do lento visconde de Maracaju.

No dia 12, o ministro da Agricultura relata boatos de sublevação militar. Outros ministros recebem cartas anônimas. O da Guerra sabe bulhufas. No dia seguinte, o da Justiça, Candido de Oliveira, escreve-lhe: “Aí vai esta carta do ajudante-general [Floriano Peixoto], em que ele declara que se trama alguma coisa. Estou vigilante e é bom recomendar cuidado ao Maracaju.”

O editorial de O País, no dia 14, deixa-lhe outra pulga atrás da orelha. Alerta Basson, manda vir da ilha de Bom Jesus um batalhão de infantaria e, da forta­leza de Santa Cruz, a artilharia. Chama o ministro da Justiça, o da Guerra e o presidente da província. Maracaju chega tranquilizador. Ouro Preto vai, então, presidir sessão preparatória da nova legislatura na Câmara dos Deputados.

Noite alta, bate à porta o conselheiro Sousa Ferreira, do respeitadíssimo Jornal do Commercio. É certa a prisão do general de Deodoro? Ouro Preto nega. O jornalista sugere desmentido no Diário Oficial. Ora, “[ … ] isso me obri­garia a desmentir todas as balelas que a oposição se lembrasse de inventar”.

Quase meia-noite, chega o recado de Basson. Promete-lhe condução, que o visconde já não espera. Gentil de Castro a tiracolo, vai ao quartel de cavalaria, à secretaria de polícia e ao Arsenal de Guerra. Chama patrulhas, comandantes, o ajudante-general do Exército e o corpo de bombeiros. Separa-se, por fim, do amigo, a quem confia o embarque de força policial de Niterói para a Corte.

Instala-se no Arsenal da Marinha, onde já estão Candido de Oliveira e o barão de Ladário, ministro da Marinha. Maracaju custa a chegar. Foi antes ao quartel-general, para onde mandou homens e armas. Também de lá vem Floriano, às três horas. Teve notícia da revolta por um capitão. E por que não o prendeu? Para ganhar tempo, que o governo precisa de tropas, sobretudo da Marinha.

Às três e meia, Ouro Preto telegrafa ao imperador, em Petrópolis, dando parte da sublevação do 1º e do 9º Regimentos de Cavalaria e do 2º Batalhão de Artilharia. Lá pelas cinco, segundo o Jornal do Commercio, desembarca um batalhão naval, com 160 homens, e o corpo de 196 imperiais marinhei­ros, com uma metralhadora. Depois chegam o barão de Loreto, da pasta do Império, Lourenço de Albuquerque, da Agricultura, e o conselheiro Diana, dos Negócios Estrangeiros. Está completo o ministério.

Seguindo alvitre de Maracaju, deslocam-se para o quartel-general, no Campo da Aclamação. Um erro, Ouro Preto percebe ao descer do cupê, às sete horas. Trocara a estratégica saída para o mar, no Arsenal da Marinha, por um prédio sem barricadas. No pátio interior, estão o corpo militar da polícia da Corte, o de bombeiros, o 1º, o 7º e o 10º Batalhões de Infantaria. Há mais guar­das na frente do edifício, que dá para o Campo da Aclamação. Cerca de 2 mil homens. Ladário retorna ao Arsenal da Marinha, para mais providências.

Sabe-se que os rebeldes deixaram São Cristóvão e marcham sobre o quar­tel-general. Às oito horas, Ouro Preto avista da janela “um piquete de cavala­ria, armado de lanças e carabinas, tendo à frente um oficial”. “Prendam-nos”, ordena ao general Almeida Barreto, que lança um ambíguo “hei de cumprir o meu dever”.

Ouro Preto agora vê mais. Diante do prédio estão o 2º Batalhão de Artilha­ria, o 1º e o g º Regimentos de Cavalaria, “em pé de guerra”. Ordena aos legalistas que os ataquem. Mas, então, Silva Telles, em nome dos sublevados, quer falar a Floriano. Ouro Preto rechaça: “Não há conferência possível”, que se “empregue a força”. O ajudante-general monta a cavalo, seguido de seu estado-maior. “Julguei ia começar o desagravo da lei, ferindo-se o combate”, lembra Ouro Preto.

Mas não. Dá ao menos mais seis ordens de ataque, até a baionetas, sem efeito. Furioso, chama Floriano: “No Paraguai, os nossos soldados apoderaram-se de artilharia em piores condições”. “Sim”, ouve em resposta, “mas lá tínhamos em frente inimigos, e aqui somos todos brasileiros”.

Sem comando, a tropa de nada serve ao gabinete. Albuquerque aconselha a demissão. Ouro Preto resiste, mas todos os ministros assentem. Então, telegrafa pela segunda vez a d. Pedro: “O ministério sitiado” se demite.

Ouve-se já o tropel de Deodoro adentrando o prédio. Alguém sugere sair pelos fundos. Mas o último chefe de gabinete da monarquia brasileira, brioso, vai esperar.

 

5. O BARÃO VALENTE

José da Costa Azevedo, o barão de Ladário, é vice-almirante corajoso até a temeridade, conforme se viu cerca de oito da manhã.

O titular da Marinha vinha se juntar ao ministério no quartel-general, depois de diligências no Arsenal de Guerra. No Campo da Aclamação, seu carro dá com os sublevados. Ouve Deodoro gritando: “É o José da Costa. Prendam-no!”. É o que os ajudantes de ordem Adolpho Peña e Lauro Muller vão fazer, quando o barão salta do carro, saca pistola de dois canos e atira em Peña. Este atira no barão. Dois malogros. O barão faz fogo com segunda pistola. Uma das balas tosta a ore­lha de Deodoro. Os soldados miram no barão. O general ordena: “Não matem esse homem”. O barão, porém, cai coberto de sangue, na porta de uma venda.

Carregado até o palácio do Itamaraty, na rua Larga de São Joaquim, é acu­dido sucessivamente por três médicos. Mas só consente em ir para casa, em bonde fechado da linha das Laranjeiras, quando Ouro Preto, informado de sua teimosia em defender o governo, manda-lhe ordem expressa. Um quarto médico, barão de Pedro Afonso, declarou ao Jornal do Commercio, do dia 16, que “o sr. barão tem um ferimento na testa, duas feridas na coxa esquerda, algu­mas contusões na perna esquerda, ferimento por bala na região sacroilíaca direita” – para seu constrangimento.

Decerto não irá amanhã ao teatro Phenix, onde se encena Jack, o estripador.

 

6. GENTE DE PARTIDO

Quintino é a cara do d. Quixote; não obstante, é um self- -made man. Inventou-se até no nome – o indianismo “Bocaiuva” substituindo seu simples “Sousa”. Não acabou a faculdade, mas se firmou no jornalismo e fez dinheiro nos pampas, de onde trouxe o chapelão mole. Encasquetou com a República, ao modelo norte-americano, como via franca para homens de ideias e de negócios. E a propagandeia sem açodamento, com um partido, na praça desde 1870, e seus sucessivos jornais, A República e O País.

Açodados, contudo, agora sobram. Os republicanos se multiplicam, e jovenzinhos audazes, como Silva Jardim, ameaçam sua liderança. Hora de apertar o passo.

No começo de novembro, com Aristides Lobo, Quintino tem papo firme com militares melindrados com o governo: Benjamin, Sólon, Mena Barreto e Deodoro. Aristides lhes pro­meteu 400 homens armados de São Paulo. No dia 6, fala-se em “revolução”, no 7, em ministério: “Recebi eu carta branca”, conta Quintino, porque Deodoro e Benjamin “desconhe­ciam quase completamente o pessoal político republicano”. Logo promete uma pasta ao liberal dissidente Rui Barbosa. E incumbe Francisco Glicério de excluir Jardim da parada.

No dia 13, Quintino chefia reunião secreta do Partido Republicano e discute com Sólon e Benjamin “o dia do pro­nunciamento”. No 14, estampa, em O País, ataque ao gabinete e homenagem a Deodoro. No Clube Naval, com Sólon, fala a um Benjamin reticente, dada a saúde de Deodoro. Quando Benjamin parte, deliberam. Sólon vai lançar seu boato.

Quintino chega ao Campo de Santana, pelas cinco da manhã do dia 15, em vivas à República. Pede um cavalo e se enfileira com Deodoro e Benjamin. Aristides conta os obje­tivos do movimento “para umas 200 almas”, segundo Sam­paio Ferraz, que brada: o sol que alumia “espadas ainda lim­pas do sangue” não há de se pôr sem mudança de regime. Deodoro corta: “Não convêm, por ora, as aclamações”.

Sai o desfile. Aristides, a pé, visita o Diário Popular para descrever o “advento da grande era”: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que signi­ficava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada. Era um fenômeno digno de ver-se. O entusiasmo veio depois, veio mesmo lentamente, quebrando o enleio dos espíritos.”

 

7. A HONRA DE UM GENERAL

Arfante e prostrado, o general namora a morte, mas gosta muito da vida. É expansivo e amante de acessórios: anel no dedo mínimo, bengala com cabeça de frade, botinas com salteiras. Julga-se exímio em dança e latim. Perfuma a barba e costuma cruzar oito dedos enquanto roda os polegares. Fuma havanas e verseja em leques, para desespero de d. Marianinha, que sabe bem aonde os versos levam.

Mas Manuel Deodoro da Fonseca é antes da caserna que dos salões. Vem das Alagoas, uma gente das armas – onde estão seus irmãos e infinitos sobri­nhos. Na Guerra do Paraguai, ganhou cicatrizes e medalhas. Gastou-se. Aos 62 anos, é marechal, mas a arteriosclerose gera crises de dispneia que o con­finam ao leito.

Explosivo, vem às turras com o governo desde 1886, quando começou essa “questão militar”. Em 1887, com outros militares, conseguiu derrubar o ministro da Guerra e criou o Clube Militar, do qual é presidente. Mas cor­taram-lhe as asas. Foi para o ostracismo, a presidência do Mato Grosso, do qual voltou só em setembro, bravo com Ouro Preto, que obsta promoções e distribui humilhações aos fardados.

No 30 de outubro, em seu sobradinho colonial, aporta Mena Barreto com outros militares: “Ordene Vossa Excelência a manobra, que será executada”. No dia seguinte, Benjamin – seu vice no Clube Militar – e Sólon falam coisas idênticas. No dia 10, perde a calma, ao saber do embarque do 22º Batalhão para o Amazonas. Mas tem devoção pelo imperador. No 11, Quintino, Glicé­rio, Lobo, Rui e Benjamin o persuadem de que o governo já é de Isabel: “Se o velho já não regula, […] leve a breca a monarquia!”.

Confabula ainda com Silva Telles, Almeida Barreto e Floriano Peixoto. Mas, no dia 14, amanhece péssimo. Troca de ares. Está para dormir no mano João, quando vem recado de Benjamin, pedindo-lhe que volte. Às dez da noite, em casa, sabe do rumor de ordem de prisão contra si e outros: “Não permitirei!”. Quem não permite é a dispneia.

De madrugada, chamam. A 2ª Brigada está em armas. “É mentira! Isto é uma cilada do governo.” Mas o mensageiro é cunhado de Benjamin. Apesar das dores, se farda. Põe os arreios de montaria num saco. Não cinge a espada para não pressionar o ventre, mas leva o revólver no bolso. Com o tenente Cincinato, que lhe fazia quarto, toma uma Vitória.

No gasômetro do Mangue, a tropa marcha. Vivas. Silva Telles comanda mais ou menos um milhar de homens. Deodoro os acompanha de carro. No Campo da Aclamação, Pedro Paulino o ajuda a montar. Dá as ordens. For­mação em paralelo ao quartel-general, fazendo “martelo no flanco direito” – é quando aparece Ladário.

Cerca o quartel-general e manda intimar a rendição do ministério. São oito horas. Ordena a abertura do portão do prédio. O general Almeida Barreto, à frente da guarda governista, hesita. “Deodoro grita: ‘Sentido! Em continência! Apresentar armas!’ Foi o segundo mais emocionante da nossa jornada! Imediatamente as forças se perfilaram […]”, conta Sampaio Ferraz. Congraçam-se soldados dos dois lados.

Deodoro avança para o quadrado interior do edifício, agita seu chapéu e, segundo o Correio Paulistano, do dia 29, dá “vivas a Sua Majestade o Imperador, à família imperial e ao Exército”. Apeia com dificuldade. Anda até a Secretaria da Guerra, seguido por enxurrada de revoltosos, lotando a sala. Cumprimenta Maracaju: “Adeus, primo Rufino!”. Ouro Preto se levanta. Cara a cara, Deo­doro enumera perseguições ao Exército – e “também à Armada”, Benjamin emenda –, que o levaram até ali, apesar de doente, por não ser homem que recue, temendo só a Deus. Fala das agruras de soldado, três dias e três noites em lodaçal, na Guerra do Paraguai, que o chefe de gabinete não pode avaliar. Ouro Preto: “Estar ouvindo o general, neste momento, não é somenos”.

“V. Exa. e seus colegas estão demitidos”, Deodoro conclui. No bolso, tem novo ministério, que levará a d. Pedro. Depois de breve ataque de sufocação, manda os ministros para casa, “exceto eu – homem teimosíssimo, mas não tanto como ele (assim se exprimiu) – e o sr. ministro da Justiça”, remói Ouro Preto. Mas assevera dedicação ao imperador: “Devo-lhe favores”.

Floriano pede o relaxamento da prisão. Os ministros deixam o prédio incólu­mes. Ouro Preto sai às duas da tarde. Albuquerque pega calmamente o bonde.

No Campo de Santana, jovens militares, Quintino, Aristides, Sampaio Ferraz e estudantes aguardam. Passageiros dos bondes e curiosos observam a aglutinação. Sólon diz que não embainhará a espada enquanto a Repú­blica não for aclamada. Aí, contam uns, Deodoro deu vivas à República, ou então, contam outros, os reprimiu. Mena Barreto seguramente os deu. E tantos que desmaiou, tendo de ser socorrido na Escola Normal.

Depois de salva de 21 tiros, Deodoro monta e ruma para o Arsenal da Marinha. Na porta, está o barão de Santa Marta: “Marechal! O que pretende com essa força?” Deodoro: “Venho trazer os seus marinheiros que acabam de coadjuvar-me na salvação da pátria”. Entra e manda Wandenkolk pôr para fora Lopes Trovão e seus seguidores, “para que não se ferissem se se travasse batalha”.

Na volta, pela rua 1º de Março, pela do Ouvidor, há discursos e saudações. Mas o doente não veio para festas. Veio por sua honra. No Campo de San­tana, ordena que as forças se recolham aos quartéis. Vai para casa. De tão fatigado, tem de ser desmontado do cavalo.

 

8. DECIFRA-ME OU DEVORO-TE

“Dei com ele de cócoras na cozinha, a comer numa frigideira!”, lembra-se Serzedelo Correia. Esse é Floriano Peixoto, que não desmente a fama de caboclo e honra a de valente.

Atravessou novembro sob dois fogos. Sendo homem de armas, incomo­da-se com o tratamento dos casacas aos fardados. Quando o capitão Her­mes da Fonseca, seu vizinho, o chama, da parte do tio, Deodoro, vai com panos quentes: “Seu Manuel, […] ainda pode haver um meio de entender-se com o ministério. […] Não precipitemos as coisas.” Mas, “enfim, se a coisa é contra os casacas, lá tenho ainda a minha espingarda velha”.

Contudo, deve lealdade ao governo: é o ajudante-general, segundo na hierarquia depois do ministro da Guerra. No dia 13, manda o bilhete que desassossega Candido de Oliveira: “A esta hora, deve Vossa Excelência ter conhecimento de que tramam algo por aí além; não dê importância tanta quanto precisa, confie na lealdade dos chefes, que já estão alertas”. No 14, sopra a Maracaju: “Estamos sobre um vulcão”.

Governo e rebeldes contam consigo. Porém, Floriano é homem de pouca prosa. A ninguém assente nem desmente. Nas primeiras horas do dia 15, emenda uma série de atos ambíguos. Às quatro da manhã, recebe recado de Benjamin, “que assumisse o comando-geral, visto ser talvez impossí­vel encarregar-se dessa missão o general Deodoro, que passara malissi­mamente a noite”. Não prende o mensageiro e nomeia para comandar a polícia e os bombeiros o general Almeida Barreto, que está de conluio com Deodoro. Mas ao mesmo tempo acata as ordens de Ouro Preto de reunir forças legalistas e as pôr em pé de guerra.

Fica indo e vindo, entre tropa e ministério, em cochichos, sem ações.

Em torno das cinco, toma definitivamente partido, ao recusar-se a abrir fogo contra os rebeldes. E quando Rio Apa, que dá a ordem, sem efeito, vem queixar-se, tergiversa: “Vamos com paciência. Isto tudo está minado.”

Ao ver Deodoro no prédio, recebe-o familiarmente. Mas intercede pelos ministros, garantindo-lhes a liberdade – e até o almoço.

Daí se retira. Se isso vai dar em República, não sabe. Mas nunca mais pendurará sua espingarda velha.

 

9. TRANSAÇÕES BANCÁRIAS

Manuel de Campos Sales pacificará essa República. Entretanto, por hora, ficaria contente em fazê-la. Seu Partido Republicano, de empresários prós­peros com suas plantações de café, propagandeia, no jornal A Província de São Paulo e em meetings, desde os anos 1870, em sintonia com a patota gaú­cha de Julio de Castilhos e seu A Federação.

Campos Sales começou legalista, mourejando para ser deputado. Mas na Câmara nada pôde. Agora, presidente da Comissão Permanente do Partido Republicano de São Paulo, está para ações drásticas. Delas e de tratativas com o Exército, fala a carta de Lobo, de 6 de novembro: “Me prevenia para que dispusesse os elementos paulistas de modo a pode­rem intervir”.

Conversa com Rangel Pestana, Bernardino de Campos, Prudente de Moraes e oficiais do 10º Regimento de Cavalaria. A Francisco Glicério, em Campinas, escreve: “Venha já!”. No dia g, Glicério chega ao Rio e entra em conluios com Lobo, Quintino, Rui, Deodoro e Benjamin. No 12, manda telegrama no código combinado: “Banco aceita transação. Mande notícia penhor agrícola.” Banco, Campos Sales sabe, é o Exército; penhor agrícola, o 10º de Cavalaria. Transação é revolução.

Vem carta de Lobo confirmando. O mensageiro, Medeiros de Albuquerque, que é a cara de Tiradentes, conta que Campos Sales, que “nunca foi um prodígio de coragem”, “[ …] não pode ter dormido naquela noite, aterrado com visões de forcas, de esquartejamentos e de outras punições terríveis de revolucionários”.

No dia 15, meio-dia, Campos Sales recebe telegrama de Santos: há “acon­tecimentos” no Rio. “Compreendi que do que se tratava era positivamente da revolução [ … ].” Mais tarde, novo telegrama, de Silva Telles: “Consta tudo feito na Corte de modo completo e definitivo”.

 

10. SEU REINO NÃO É DESTE MUNDO

Isabel não é princesa de conto de fadas. Não é bonita, elegante, charmosa ou inteligente. Mas princesa de verdade prescinde desses atributos. Bas­ta-lhe um reino. Isabel tinha um até ontem. Sem filhos homens, morta a primogênita, o pai a preparou para o cargo, dando-lhe a regência no Ven­tre Livre e na Abolição. Desleixou foi na escolha do genro. É príncipe mais para sapo. Francês, o conde D’Eu é avesso a banhos. Sovina, tem cômodos para alugar. Enxerido no Exército. Meio surdo, não ouve ninguém. O casa­mento, contudo, é de conto de fadas. Demoraram os filhos, mas com rezas vieram três. Isabel é grata a Deus e fez pendurar crucifixos nas salas de aula. Por essas e outras, o senador Saraiva já disse que seu reinado não será deste mundo.

Hoje se ocupa da recepção a oficiais chilenos. Mais modesta que o baile da ilha Fiscal, o maior rega-bofe do Segundo Reinado, com 3 mil sopas, 14 mil sorvetes, duas mil pessoas, valsando alumiadas por 14 mil velas, e que se acabou numa vastidão de restos de espartilhos. Da política está alheada desde que o pai chegou da Europa e foi aos ministros sem ouvi-la. Mas, idoso e adoentado, d. Pedro não reinará muito. Está no Cidade do Rio de hoje: “O imperador vai abdicar no dia 2 de dezembro, dizem todos”.

Às dez da manhã, a princesa que crê em milagres precisa de um. Gaston saiu com os meninos a cavalo. O visconde da Penha e o barão de Ivinheima chegam “esbaforidos” com “novidade grossa”: rebelião de Deodoro e Quin­tino. A Amandinha, baronesa de Loreto, já lhe falara de boatos que agora são fatos. Isabel acha “exagerado”. Afluem cortesãos, senhoras, políticos, o barão do Catete. Miguel Lisboa vem do Campo da Aclamação, “dizendo que o ministério estava sitiado no quartel e o Ladário dado como morto.”

Telefona-se aos Arsenais da Marinha e da Guerra, mas não há informação. O conde D’Eu cogita fardar-se, é afinal capitão de cavalaria. Acaba persuadido a embarcar os filhos, convocar o conselho de Estado e falar a d. Pedro, em Petró­polis. Em vão: “Papai incomunicável”.

Isabel aconselha-se com Manuel de Souza Dantas, líder liberal. “Vossa Alteza não receie nada, […] eu não admito República!”

Surge o dr. Rebouças. Armou plano com o visconde de Taunay. O imperador fica em Petrópolis, transfere-se o governo. Contudo, há telegrama do conde de Mota Maia: d. Pedro torna à Corte, pelo caminho de ferro do norte. Isabel, Gaston e palacianos vão esperá-los na estação, por volta do meio-dia. A princesa está mais tranquila com “notícias de que tudo estava apaziguado”. O príncipe não crê: “A Monar­quia está acabada no Brasil”.

No caminho, avistam o carro de d. Pedro. Confirmado o desencontro, seguem para o Paço da Cidade, onde o impera­dor se inteira dos acontecimentos. O barão de Jaceguai desa­nima Isabel: há “pessoas amigas de Vossa Alteza e da família imperial [ … ]; mas monarquistas propriamente não”.

Às nove da noite, Gaston tenta entrevista com o líder do motim. Nada. Altas horas, o senador Saraiva envia emissário. “Deodoro declarou-lhe considerar-se irrevogavelmente pre­sidente da República”, lembra-se Isabel.

É o fim improvável de seu conto de fadas.

 

11. O SEQUESTRO DO FUTURO

André Rebouças passeia com o imperador em Petrópolis, onde mora. Professor da Politécnica, filho de conselheiro de Estado, foi articulador do movimento abolicionista, com José do Patrocínio e Joaquim Nabuco. Então, não poupava a família imperial. Mas desde o 13 de maio, é grato a ela.

Tem planos para o reinado de Isabel i, a Redentora: comple­tar a Abolição com imigração e reforma agrária. Mas teme os “escravocratas ressentidos” convertidos em “republiquistas”.

Deles se fala, na estação Mauá, aonde aporta, às oito e meia da manhã. Há motim militar. Segue para a Politécnica, onde tenta “manter a ordem no edifício invadido por Silva Jardim”. Dali vai ao Cidade do Rio, jornal do compadre Patro­cínio, também negro e idealizador da Guarda Negra, que “protege” Isabel. Da sacada, vê as tropas marchando pela rua do Ouvidor, Deodoro à frente. Mas susto mesmo é ouvir Patrocínio cele­brando a República.

Como Nabuco mora longe, em Paquetá, corre a Taunay. Às 13 horas, vão telegrafar a d. Pedro. O telégrafo, porém, já é republicano. Seguem para o Senado, “tentando organizar a contrarrevolução”. Lá, Paulino de Souza não permite quebrar o protocolo para discutir questão fora da pauta.

Como dessa moita não sairá coelho, às duas e meia se juntam a Rodolfo Dantas, filho de Souza Dantas, para armar resistência em Petrópolis. Rebou­ças assume missão dupla: salvar os pequenos príncipes e informar d. Pedro. Com os meninos e o preceptor deles, o dr. Ramiz Galvão, vai à enseada de Botafogo, em lancha que o barão do Catete arranjou. Dali para navio de guerra, o Riachuelo, onde esperam a barca e o trem para Petrópolis. Um dos filhos de Isabel, Luís, lembra que, no trajeto, “nossa presença passou quase desperce­bida, […] os nossos companheiros de viagem discutiam com pachorra as novi­dades do dia, sem lhes ligar, ao que parecia, grande importância”.

Estão em Petrópolis às 19 horas. Mas d. Pedro já partiu. Rebouças per­noitará no hotel Bragança com seus guardados. Não imagina, mas esta é sua última noite no Brasil.

 

12. REPÚBLICA MUNICIPAL

O monarquismo do intrépido José do Patrocínio, adquirido a 13 de maio, claudicou ontem, na confeitaria Pascoal. Saboreava seu porto quando o almi­rante Wandenkolk avisou de conspiração sem data. Esta manhã, chegando de Petrópolis, dera com o rebuliço. Correu para seu Cidade do Rio, a fim de incumbir Olavo Bilac do momentoso jornal do dia. Encomendou panfletos celebrativos e agora se inflama na janela. “As salas da redação foram invadi­das pelo povo, que festejava […]. Muitos correligionários vieram abraçar-nos e confraternizar conosco, reatando assim as nossas relações interrompidas.”

Dentre eles, Antonio da Silva Jardim, homenzinho que cresce de paixão e lidera partido republicano alternativo, mas barulhento, que vinha prome­tendo rimar 1889 com 1789. Hoje, o profeta encontrou sua profecia em anda­mento. Foi à Politécnica, insuflar estudantes, depois veio para a rua do Ouvi­dor, onde dá com Aníbal Falcão e positivistas como eles, e com Lopes Trovão, atiçador de outras revoltas. Todos acotovelados nas sacadas dos sobrados dos jornais, de onde desabam discursos, quando Deodoro, tropa e trupe, passam.

O desfile acaba no Arsenal da Marinha. Trovão está na porta. O grandão e bem-humorado Wandenkolk o saúda: “Sempre na frente”. Trovão: “É o meu destino”. Seu séquito pede brinde à República, que custa os 11 mil-réis de seu bolso. O resto da conta ia pagá-lo o seu relógio. Mas o dono da taverna, em fraternidade republicana, resolve arcar com o prejuízo.

A República, festejada, ainda não foi oficialmente proclamada. Falcão propõe “movimento popular”, Emilio Rouéde, “assaltar” a Câmara e o Senado. Patrocínio, vereador mais jovem, pode, conforme a legislação, con­vocar sessão extraordinária na Câmara. Às três e meia, os três, mais Jardim, Bilac, Pardal Mallet, um magote de umas 100 pessoas e uma flâmula tricolor de seda, do Clube Tiradentes, “invadimos a Câmara Municipal, onde procla­mei a República e fiz hastear a bandeira”, conta Patrocínio.

Falcão, com Mallet, redige moção: o povo “reunido em massa na Câmara Municipal”, “após a gloriosa revolução que ipso facto aboliu a monarquia” – e rasgada a bandeira imperial do recinto –, proclama o Governo Republicano.

Dali sai uma passeata, entoando a Marselhesa até a casa de Deodoro. Ben­jamin, à janela, anuncia Governo Provisório: Deodoro, sempre dispneico, é o chefe, Aristides, ministro do Interior, Quintino, das Relações Exteriores e interinamente da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Wandenkolk, da Marinha; ele próprio assumirá a Guerra. Haverá constituinte e plebiscito sobre a forma de governo. Então, Patrocínio, com Clapp, entra no sobrado para entregar a moção, dando três vivas à República Federal Brasileira.

 

13. O IMPÉRIO DAS CIRCUNSTÂNCIAS

D. Pedro 2º é rei cansado, com doenças e aborrecimentos de governante. Em caricaturas, aparece dorminhoco, biruta, banana. Republicanos agouram e até monarquistas especulam sua morte, desde 1887, quando recebeu extrema-un­ção. Mas parece bem disposto ao seu ofício. Ontem foi de Petrópolis, onde passa o verão, à Corte para assistir a um concurso e visitar as oficinas do Diário Oficial.

No dia 15, está na serra, em vida pachorrenta, com d. Tereza Cristina, a esposa feia que o reinado lhe impôs, o dr. Mota Maia, síndico de sua saúde, e um punhado de cortesãos. É imperador de programas singelos, como essa missa para d. Maria 2ª, às dez da manhã, que os telegramas de Ouro Preto não atrapalharam. Não se sabe bem se Mota Maia não os transmitiu, se d. Pedro os leu e seguiu para a missa, ou se só chegaram depois do amém. O fato é que só então se arranjou composição especial para o retorno à Corte.

No trem, lê revistas. Desembarca na estação São Francisco Xavier, perto de duas da tarde. A imperatriz se aflige, o marido não: “Isto não é nada; ama­nhã estará tudo acabado”. Vão em três carros, sem insígnias, contornando o desfile de Deodoro.

O Paço da Cidade coalha de gente. D. Pedro se preocupa com Ladário, mas sempre calmo. Chama Ouro Preto, que narra seus percalços. Segue-se o ritual: o chefe de gabinete se demite, o imperador pede que permaneça, antes de per­guntar pelo sucessor. O visconde indica Silveira Martins, estourado liberal rio­grandense. A ideia pasma. O indicado está a léguas da Corte. É inimigo de Deo­doro: uma rixa por mulher e a política rio-grandense de permeio. E parece que aclamaram a República. “Se assim for, será a minha aposentadoria.”

De noite, é Dantas quem tumultua o Paço: “Senhor, a revolução está triun­fante. Os revolucionários estão de posse de tudo: dos arsenais, das fortalezas, dos navios e telégrafos. A República está feita; o general Deodoro vai proclamá-la.” “Quem disse?”, d. Pedro inquire. É fonte segura. O imperador afunda na poltrona. Reflete. Levanta-se: “Isto passará; no começo do meu reinado tive também destas dificuldades”.

E chama Saraiva, o descascador de abacaxis do Segundo Reinado. Às 21 horas, conversam. O senador se retira. Às 23h20, reúne-se o conselho de Estado. São unânimes: organize-se novo gabinete já. Sob Saraiva. Lá vai o marquês de Paranaguá, a pé – por não achar condução –, chamá-lo no morro de Santa Tereza. Saraiva aceita o cargo e o alvitre de Andrade Figueira, de enviar o capitão Trompowsky a fim de, segundo Isabel, “entender-se com Deodoro para ver se o traz a bom caminho”.

Trompowski encontra casa aberta e iluminada, com sen­tinelas. D. Marianinha o conduz a um Deodoro acamado. O bilhete de Saraiva, segundo o Jornal do Commercio do dia 18: “Encarregado pelo imperador de organizar novo ministério, não quero e não devo fazer coisa alguma sem entender-me com Vossa Excelência”. Às duas da manhã de 16, o capitão traz a resposta: “É tarde”. Isabel e o marido se agoniam. Saraiva partira. D. Pedro dormia.

O Paço amanhece cercado. Quem chega, como Nabuco, encontra uma linha de baionetas, entradas bloqueadas. Às 14 horas, comitiva do Governo Provisório aporta, com carta de Deodoro ao imperador, acusando a “violação, corrupção, de subversão de todas as leis” e a “política sistemática de aten­tados” do governo contra o Exército e a Armada. O “Governo Provisório espera de vosso patriotismo o sacrifício de deixar­des o território brasileiro [ … ]”. Em 24 horas.

Chefia a comissão um nosso conhecido: “O major Sólon mostrava-se tão perturbado que ao entregar o papel a papai deu-lhe o tratamento de Vossa Excelência, Vossa Alteza e finalmente Vossa Majestade”. Mas é a princesa quem chora. D. Pedro, atônito, copia resposta redigida por Loreto, e que saiu na Gazeta da Tarde do dia 18, “cedendo ao império das circunstâncias”. Isabel e o conde D’Eu também lançam men­sagens, no Jornal do Commercio, no dia 17. Ele, exonerando-se do Exército, embora “pronto a continuar a servir, debaixo de qualquer forma de governo”. Ela, de “coração partido”.

O comandante Bannen, dos chilenos homenageados no baile da Ilha Fiscal, oferece asilo ao imperador em seu navio.

Os barões de Muritiba e Loreto se animam e até escrevem manifesto, mas d. Pedro recusa, como depois recusará dotação do Governo Provisório – para desgosto do genro.

Prepara-se a partida. O trânsito no entorno do Paço é fechado. À noite, as sen­tinelas se estendem do palácio ao cais. Deposta, a família imperial vai dormir.

 

14. SOB O SIGNO DE MERCÚRIO

Robert Adams Junior não está surpreso. Virou ministro dos Estados Unidos no Brasil em julho, mas já em setembro recebeu pedido de apoio “moral e material” norte-americano, em caso de “an attempt by revolution to overthrow the Imperial Government” [uma tentativa revolucionária de derrubar o Governo Imperial].

Com sua simpatia, podem contar. Acha a revolução de ontem, sem derra­mamento de sangue e continuidade dos negócios, “the most remarkable event recorded in History” [o mais notável acontecimento já registrado na história].

O governo de facto aconselha ao secretário de Estado: seu país deve ser o primeiro a reconhecer como de direito. A amizade dos adventícios é evidente nas felicitações que lhe chegam, na emulação da bandeira – colorida de verde e amarelo – e na designação do novo regime: Estados Unidos do Brasil.

Vai durar essa República, julga, ainda que o Governo Provisório, nesse dia 16, insolitamente tome posse na Câmara Municipal, onde Rui Barbosa, Lobo, Quintino e Wandenkolk prometem “manter a paz e a liberdade pública, os direitos dos cidadãos, respeitar e fazer respeitar as obrigações da nação”. Deodoro, o dispneico, não foi. De modo que não jurou nadinha e na noite de 15 fez prender Silveira Martins, em Santa Catarina, e Ouro Preto, que, na madrugada, ouviu de Mena Barreto: “Acorde e prepare-se, que mais tarde tem de ser fuzilado” – Quintino comutou a execução em exílio.

Hoje funciona o Senado, com 22 presentes. Esqueceram de fechá-lo, embora tenham dissolvido a Câmara. Inquirido sobre senadores presos e “acontecimentos gravíssimos”, Paulino, presidente da casa, encrespou: “Não posso consentir debate que não seja restrito à constituição desta Câmara”. E, por falta de assunto, encerrou a sessão.

Eis as novidades de hoje. De amanhã não se sabe, pois “in this mercurial country one can never predict the future” [nesse país mercurial ninguém nunca pode prever o futuro].

 

15. A NAU DOS INSENSATOS

Pedro Augusto, príncipe de Saxe, não tem sorte. Aos seis anos, perdeu a mãe e foi, com o irmão, viver com o avô. Em compensação, virou o neto querido do imperador e pode ser que ganhe um trono de presente. Sua mãe era a primeira na linha de sucessão. E há quem, como o barão de Estrela, veja no sobrinho uma alternativa ao reinado da condessa D’Eu. O problema é que lhe falta um parafuso. Por isso, ontem, quando reportou rumores de golpe, tributaram tudo à sua imaginação.

Hoje, depois de cavalgar no entorno do palácio Leopoldina, no Enge­nho Velho, dá com a cara de finados do mordomo. Sedição militar. Manda sondar a casa da tia. Não há alarde. Vai então visitar um amigo, nas Laranjeiras.

Na volta, pelas cinco da tarde, ouve dizer da prisão da família real. Escu­recendo, adentra o Paço da Cidade. A família está pendulando entre convul­sionada e plácida. Propõe fuga pela porta da rua do Carmo, para indignação do avô. Já os tios o acusam de se mancomunar com subversivos. Melindrado, se recolhe a um quarto e gasta a noite mordendo os dedos.

No dia 16, dado ultimato para deixar o país, pede a um amigo que zele por seus negócios: “Estamos presos e incomunicáveis”.

Na segunda noite em casa do avô, cerca de uma da manhã, o coronel Medeiros Mallet bate à porta do Paço. O conde D’Eu atende. Chama a mulher e o sobrinho. Isabel acorda os pais. Terão de partir antes de raiar o dia, para evitar tumultos, estando “os rapazes das escolas já com metralhadoras para atirarem sobre quem quisesse resistir”. As mulheres da família estão em lágri­mas. A princesa implora pelos filhos em Petrópolis. Mallet manda buscá-los.

O avô está alterado: “Não sou nenhum fugido; retirar-me-ei do Brasil, porém de dia”. Jaceguai fala do sangue que pode correr em manifestações pró-monarquia. O imperador permanece renitente, como conta a Gazeta de Notícias, no dia 18: “Mas que é isso sr. Mallet? […]. O sr. está doido! Os outros estão doidos!” Então desce a escada, revistas sob o braço que dá à filha. O conde D’Eu conduz a sogra. Pedro Augusto os segue. Jaceguai à imperatriz: “Resignação, minha senhora”. “Tenho-a muita.” Isabel se desespera: “Ah! Sr. Mallet, os senhores hão de arrepender-se!”

À porta, soldados apresentam armas. D. Pedro levanta a cartola. Na caleça, Pedro Augusto e Isabel, unidos na desgraça, se acomodam lado a lado. Vão lentamente ao cais, seguidos, a pé, pelo conde D’Eu, o almirante Tamandaré, Jaceguai e um punhado de constritos. Solitários, em meio à tropa de infan­taria e o piquete de cavalaria.

O cais Pharoux está sob luar fraco. São quase três horas do dia 17. Vem a lancha para o embarque. D. Pedro está incrédulo: “Os senhores são uns doidos!”. Um apito, depois o arranque.

Passam da lancha ao navio. É o Parnaíba, não o Alagoas, como tia Isabel esperava. Às seis horas, chegam os primos, com Rebouças. Embarcam também dr. Tosta, Muritiba, Loreto, Mota Maia e Franklin Dória, com as famílias. Pedro Augusto está aflito: “Muito agitado, voltando-se para mim”, conta Joaquim Inácio Batista Cardoso, “disse: ‘Meu criado fica em terra, garantam-lhe a vida’, ao que repliquei: ‘Os revolucionários de 15 de novembro não são assassinos’.”

Às dez horas, o Parnaíba sai para a Ilha Grande. Às oito da noite, encon­tra o Alagoas, preparado com víveres para a travessia atlântica. No breu, com chuva e mar bravio, a troca de navios é complicada. D. Pedro é alto, corpulento, entala na escada. Isabel grita: “Sr. Mallet, sr. Mallet, não deixe meu pai cair no mar!”. O coronel reporta que, para não dizerem que os repu­blicanos o afogaram, decidiu jogar-se no oceano se o imperador tombasse.

Zarpam para Lisboa à meia-noite, escoltados pelo Riachuelo. A família imperial enlutada, mas contida. D. Pedro escreve versos. Apenas o prín­cipe de Saxe rompe a etiqueta. Segundo a tia, “[…] mostrava-se receoso de tudo e de todos os que não eram da comitiva, vendo ciladas, assassinatos e veneno por toda a parte”. Julga que o capitão do navio está encarregado de executar a família imperial. Tenta esganá-lo. Muritiba o detém. Dão- -lhe valenciana. Mais tarde, amarra um bote salva-vidas ao corpo: acha que o Riachuelo afundará o Alagoas. Joga garrafas ao mar, com pedidos de socorro: a família imperial, “segundo penso, está condenada toda e todos a uma morte violenta”.

Pedro Augusto está enclausurado em seu camarote, quando, no dia 18, os depostos avistam solo brasileiro pela última vez, na altura de Fernando de Noronha. Lançam mensagem de adeus, amarrada à pata de uma pomba. Não notam as asas cortadas do pássaro, que, diante dos monarquistas cons­ternados, se afoga no mar.

*

 

NOTA EXPLICATIVA Para a reconstrução de cada uma das histórias acima, me vali sobretudo de fontes primárias: notícias de jornal, depoimentos, diários e memórias de contemporâneos, bem como de narrativas dos aconte­cimentos produzidas pelos próprios atores logo após os eventos. Subsidiariamente, recorri a histórias, biografias e reconstruções de especialistas. Desse material vieram as citações de falas e documentos que estão entre aspas. Na impossibilidade de indicar em notas a origem de cada uma das informações utilizadas, indico abaixo, em nume­rais, diante de cada referência, as histórias em que cada uma das publicações foi mais aproveitada. Para as notícias de jornal, não usei desse procedimento porque elas foram utilizadas na composição de praticamente todas as histó­rias. O leitor interessado em referências mais precisas está convidado a escrever para [email protected].

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