O elogio do desconforto
PAULO ROBERTO PIRES
Katie Roiphe é inteligente demais para ser politicamente incorreta. Se o que escreve desagrada tanto aos bem-pensantes é porque ela deve ter alguma razão: a seus olhos, vivemos hoje a revanche da convenção, da previsibilidade e da caretice sobre a experimentação, o excesso e a incerteza. In praise of messy lives, a coletânea de ensaios que esteve em diversas listas dos melhores livros de 2012, tem a energia dos panfletos mais combativos e a sofisticação do melhor ensaísmo, perfeito cartão de visitas de uma autora que, aos 45 anos, já tem até um fã-clube, só que do contra: os Roiphe-haters.
Publicados em diversos veículos americanos e com motivações variadas, os ensaios, sempre do calibre de A derrota do feminismo no Facebook, guardam uma coerência impecável. Rastreiam na literatura, nos costumes e na vida da própria autora as diversas e perversas manifestações da “ideia de que tudo que fazemos deve ser produtivo, deve levar a uma meta de saúde e equilíbrio regida pela ilusão dúbia e frágil do ‘saudável’”. São homens e mulheres bem-educados e bem-sucedidos que se casam cedo e tratam logo de ter filhos, que irão botar no centro de suas vidas. Para eles, o grande barato é o lar, a monogamia pétrea e, por que não, usar com naturalidade expressões bisonhas como “qualidade de vida”.
A antítese disso são as “vidas bagunçadas” do título, que Roiphe identificou ao assistir, fascinada como boa parte do mundo, aos episódios de Mad Men. Todos aqueles homens e mulheres fumando, bebendo e transando livremente, casados ou solteiros, despertariam segundo ela o fascínio do desconhecido: “Hoje os que têm a idade e a situação profissional de Don Draper investem energia em belas viagens de férias ou cozinhando capellinis de ricota com limão e risotos com salmão e crème fraîche, tudo orgânico, para jantares que dão em casa.”
Criada no mesmo mundo boêmio e intelectual de Nova York de sua mãe, a escritora e feminista Anne Roiphe, Katie é PhD em Literatura por Princeton e diz ler a vida social como aprendeu a ler literatura, dissecando os detalhes, acompanhando os movimentos do texto – o chamado close reading. O assustador é que muitas vezes ao examinar sua vida e a de sua geração, encontra enredos de Jane Austen e Edith Wharton, Nathaniel Hawthorne e Anthony Trolloppe.
Em sua reencarnação literária, o puritanismo moral desta geração tem como farol David Foster Wallace e seu bisonhamente célebre ensaio contra os Grandes Machos Narcisistas – um trio formado por John Updike, Philip Roth e Norman Mailer e que, segundo Roiphe, é repudiado por sua “virilidade agressiva”. Ela é impiedosa com Wallace – e também com nomes como Jeffrey Eugenides, Jonathan Franzen e Benjamin Kunkel, que seriam “cool demais para o sexo”. Diferentemente dos velhos sátiros, diz, “estes estão apaixonados pela ironia e pela possibilidade literária da autoconsciência a tal ponto que quase impossibilitam o mínimo de abandono necessário para o próprio ato sexual”.
Depois de uma dessas investidas, o editor do “Book Review” do New York Times recebeu a carta de um certo John Rendeiro, leitor do suplemento, manifestando todo seu apreço pela colaboradora: “O senhor está não apenas contribuindo para a total aniquilação da cultura, mas também para a destruição de nossa civilização. Pense nisso”.
Katie Roiphe imprimiu a carta e a mantém na parede em frente à mesa de trabalho. Fonte de permanente inspiração.
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