Uma hilária temporada com Christopher Hitchens
por PAULO ROBERTO PIRES
Quando se descobriu com câncer, Christopher Hitchens escreveu que lamentava a possibilidade da morte por eventualmente não ver os filhos casarem e por deixar de escrever os obituários de Henry Kissinger e Bento XVI, dois de seus alvos preferidos. Essa vida é cachorra mesmo e aqui estou eu, batucando um post sobre a morte de um dos poucos intelectuais que merecia esse nome – pelo espírito combativo, pela implicância militante e incansável e por uma bela dose de contradição, que desconfigura as adesões incondicionais.
A mim espantava aquele sujeito insolente que havia escrito um livro contra a Madre Teresa de Calcutá (The missionary position, um título explosivo que também quer dizer “papai-mamãe”), feito um elogio soberbo de Orwell e, vá entender, fosse a favor da invasão do Iraque pelos EUA. Foi crucificado por ser percebido como esquerda radical (que de fato foi) e conservador (o que é muito discutível).
Em 2002, quando, ao lado de Flávio Pinheiro, comecei a trabalhar na organização da primeira Flip, fui ao festival de Hay-on-Wye, no País de Gales, ver como funcionava esse negócio de escritor falando em cidade histórica. Na sala dos autores, conhecemos Hitchens, com um copo de vinho na mão, fumando histericamente e fazendo perguntas sobre o Brasil. Na edição anterior do festival, tinha feito uma de suas performances: quando Bill Clinton, um convidado polêmico, começou sua conferência, Hitchens saiu da primeira fila batendo os pés estridentemente no chão de madeira. Naquele 2002, foi o único a aceitar defender a Rainha, que comemorava seu jubileu. Ele era assim.
Três anos depois, como diretor editorial da Agir, publiquei dos livros de Hitchens: Amor, pobreza e guerra e o genial Deus não é grande, primeiro e único best-seller de sua vida. Para o lançamento do primeiro, o convidei a Paraty. E começou uma das mais hilárias temporadas com um escritor que já vivi.
No dia em que chegou ao Rio, fomos jantar num restaurante metido a besta. Hitchens falava pelos cotovelos e estava eufórico por fazer uma viagem de mais de doze horas entre Stanford e Brasil. Adorava aviões porque, segundo ele, só assim parava de fumar e conseguia ler em paz. Dormir, nem pensar.
No jantar, apresentou suas armas: copinho baixo com uísque até a boca, sem gelo, e, ao lado, outro copo, com uma Perrier cheia de gelo. Lá pelas tantas, quis provar um vinho brasileiro: ninguém na mesa recomendava nada, o que muito o espantou. Foram duas garrafas – com minha ajuda, claro.
Embarcou para Paraty com uma caixa de uísque que comprou no Free Shop e que consumiu sozinho nos cinco dias da festa. Achou caipirinha “bebida de mulher” e cachaça, uma bobagem. Era extremamente doce, gentilíssimo e, à medida que bebia, ficava mais racional e mais lúcido.
Nos cinco dias me chamou de “chefe”, andou pela pousada de meias e falou sem parar sobre tudo, sempre com inteligência. Lembrou estranhamente do nosso encontro em Hay e até rememorou a conversa que tivemos, ao lado de Margareth Atwood. Não parecia, mas era um doce radical.
Mas a melhor história foi quando me convocou (eu era o “chefe” mas ele é quem mandava, claro) para ver a palestra de Lilian Ross, a decana da New Yorker.
Tive que negociar com um segurança para que ele entrasse na tenda com um copo, de vidro, com uísque. Quando chegamos, o público ainda se acomodava, e Lilian Ross, com mais de 80 anos, também. Ele achou que era uma desconsideração e gritava: “Aplaudam, filhos da puta, essa é Lilian Ross”. Sentamos na primeira fila, ele fascinado. Quando Philip Gourevitch, um craque, disse que não havia um “estilo New Yorker”, Hitchens soltou uma acintosa gargalhada, constrangendo o jornalista e, é claro, o “chefe” ao seu lado.
Num jantar que ofereci aos autores, encantou-se com uma amiga minha, em tudo e por tudo contrária àquela fase “conservadora” de seu pensamento. Mas as lembranças de um recôndito trotskismo fizeram deles amigos de infância. Ele foi gentil o tempo todo, ainda que em muitos momentos ficasse claro seu tédio com as liturgias da vida literária.
Não há novidade em sua morte, em tudo e por tudo anunciada. Mas lamento, profundamente, que ele não tenha conseguido realizar os últimos desejos. Ele merecia. E nós também.
* Na imagem que ilustra este post: Christopher Hitchens na Flip de 2006 (crédito: Clarissa Pivetta/Arissas Multimídia)
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