Reaprender a ouvir
Ontem ouvi um disco.
E eu com isso? Você pode – e deve – perguntar. E pergunto eu também: há quanto tempo você não ouve um disco? Há quanto tempo não senta relaxadamente, na companhia de amigos, e fica quarenta e tantos minutos calado, bebericando apenas, sem excessos, concentrado na música?
Detesto a tecnofobia edificante em que o sujeito tenta marcar uma distinção ao declarar-se não-usuário de algum gadget ou rede social. Mas é fato que, espalhada no mundo, do computador aos iTudo, a música não sai exatamente ganhando. O ouvido entorta, fica flat, viciado em simplificação – enfim, não ouve. E assim estabelece-se um ciclo vicioso: a música passa a ser feita para esses ouvidos.
Com a sutileza do som vai embora a sutileza das ideias. A música é cada vez mais consumida de forma fragmentada, downloadeada (pirata ou não), trilha sonora onipresente na malhação, metrô, trabalho. Tudo conspira para que um número cada vez maior de artistas pouco considere ou mesmo desconsidere o disco como um conceito complexo, que articule canções, arranjos, interpretações, sequência das faixas. E o disco vira uma mera concentração de arquivos.
(Há grandes antídotos contra isso: Sinatra e seu Only for the lonely, o novo Chico, todo o Miles com Gil Evans, o Aprender a nadar de Waly Salomão e Jards Macalé, Blue de Joni Mitchell, A arte de negra de Wilson Moreira e Nei Lopes, o Lou Reed de Transformer, Cantada de Adriana Calcanhotto, Galos de briga de João Bosco & Aldir Blanc.)
Por quase três anos, Ronaldo Bastos e Leonel Pereda viraram do avesso Paradiso, o segundo dos três discos de canções de Ronaldo e Celso Fonseca – os outros dois são Sorte e Juventude/Slow motion bossa nova. No estúdio, desmontaram faixas, convidaram cantores e músicos para regravar determinadas canções, incorporaram samples. É um disco com começo, meio e fim.
Ontem, ouvi esse disco, Liebe Paradiso. E, com as canções, os muitos outros elementos que trouxeram para o disco. São referências da música e de fora dela, ruídos, Goethe declamado, Antonio Cícero declamando, Nana Caymmi, baixão pesado, disco de negão, festa, Sandra de Sá, melancolia, Dick Farney, eletrônica, acústico. Isso tudo fazendo um sentido absurdamente agudo para quem se dispuser a ouvir.
Depois de ouvir direto, de primeira, repetimos algumas, aleatoriamente, conversando. Outro disco, outra coisa. Tudo funciona muitíssimo bem separadamente, muito melhor junto. Dos que têm ouvido o disco com Ronaldo e Leonel, gente muito diferente entre si, há comparações com um filme, arte contemporânea, uma narrativa. Me pareceu um diário, não por se confessional, mas por dar conta dos diversos humores de um “personagem” que é a primeira pessoa de todas as letras, um homem comum que, como diz o Ronaldo, tem um pé no chique e outro na sarjeta, flutua e rasteja.
Escrevo de primeira, ouvindo aqui, meio achatado no meu iPod, o primeiro Paradiso. É outro disco, mesmo. E escrevo como lembro de um lugar que visitei. Ainda não há cópias, o disco só fica pronto no final de setembro. Tenho que ficar reconstituindo o que ouvi como lembro de um concerto ou um show. Como se fosse único aquele disco que ouvi. E, pensando bem, acho que é mesmo.
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