O radical conservador – por Luiz Feldman

O radical conservador
por LUIZ FELDMAN

Raízes do Brasil só ganha as tintas progressistas que o consagraram na segunda edição, quando Sérgio Buarque de Holanda reavalia o papel da tradição e defende um caminho democrático


A democracia nem sempre foi o ponto de chegada da discus­são de Raízes do Brasil. Quem corre as páginas da edição ori­ginal do livro, publicada em 1936, surpreende-se com a au­sência da passagem em que Sérgio Buarque de Holanda toma partido pela ascensão das camadas populares. Adotada ape­nas na segunda edição, de 1948, a postura progressista daria à obra muito da atualidade que continua a ter entre nós. Em sua primeira tiragem, porém, o volume era uma incógnita do ponto de vista político. Sem defender a democracia, o autor tampouco se filiava às correntes totalitárias do campo oposto. Isso não o levava exatamente a um impasse. Ele parecia indi­car que, à falta de um ponto de chegada específico, era possível entrever uma forma de atingi-lo, qualquer que viesse a ser.

Essas duas ênfases – uma no destino, outra no itinerá­rio – captam uma das principais diferenças entre a primeira e a segunda edição de Raízes do Brasil. Ao revisar a obra de estreia doze anos mais tarde, alterando, suprimindo e acrescentando diversos trechos, Sérgio Buarque modificou a mensagem política de seu livro. A tradição, entendida originalmente como fator mitigador da modernização, passa a ser vista como obstáculo à democratização da sociedade. Essa mudança de argumento é visível especialmente no ca­pítulo final, parte propriamente política de Raízes do Brasil. Na primeira edição, o argumento é centrado na noção de um “contraponto” entre tradição e modernidade. Na segunda, o centro está na ideia de uma “revolução vertical” que liquide os arcaísmos e renove as lideranças do país.

Antonio Candido, em “Radicalismos”, artigo seminal ba­seado em palestra de 1988, situa Raízes do Brasil entre os mar­cos do pensamento radical no país.1 Na lição de nosso maior crítico, o maciço central da tradição política brasileira é o conservadorismo. A ocorrência do radicalismo é esparsa, e ra­ramente dá a tônica de toda a obra de algum autor. Um exem­plo do surgimento do radicalismo nos interstícios de reflexões mais tradicionais seria Casa-grande & senzala, em que Gilberto Freyre valoriza o papel do negro sem abandonar uma visão socialmente conservadora. Em Sérgio Buarque, o radicalismo apareceria principalmente em Raízes do Brasil. A obra enqua­draria a mudança social pelo ângulo da busca das transforma­ções possíveis. Rejeitaria, por um lado, a lógica das concessões mínimas oferecidas pelas classes abastadas e, por outro, a rup­tura revolucionária. O sentido da “revolução” de que falava Raízes do Brasil era a democracia popular. A proposta seria sin­gular, pois nunca antes o pensamento radical brasileiro havia admitido uma reforma social sem a tutela da elite.

As considerações de Antonio Candido iluminam com agu­deza inconfundível o argumento político da segunda edição de Raízes. Ao mesmo tempo, retomam e aprofundam os temas que aparecem no seu conhecido prefácio para a quinta edição do li­vro, publicado em 1969 com o texto definitivo, e que acompanha a obra até hoje.2 Mas há na leitura de Candido um baralhamento de datas, cujo resultado é apontar, já na edição original de Raízes do Brasil, a defesa da solução democrático-popular. Em “Radica­lismos”, Candido estuda a mentalidade de revolta em Joaquim Nabuco, Manoel Bomfim e Sérgio Buarque, no período que o autor delimita como o meio século que vai do movimento abo­licionista, na década de 1880, ao Estado Novo, em 1937. Ou seja, considera o Sérgio Buarque de 1936.

O preciosismo cronológico seria dispensável, não fosse essa confusão a base de uma figuração de Sérgio Buarque como “coerente radical democrático”. As palavras são do pró­prio Antonio Candido, no “Post-scriptum” acrescentado em 1986 ao prefácio de 1969.3 Em mais de uma ocasião, o autor vincularia o livro de 1936 às filiações partidárias de esquerda assumidas ulteriormente por Sérgio Buarque. As credenciais progressistas que Sérgio Buarque reuniu em vida são indis­cutíveis. O mesmo vale para as edições pós-guerra desse seu clássico. Apenas não remontam com tanta facilidade à sua juventude e ao livro com que a coroou. Encerrar sua reflexão nos limites harmoniosos da coerência equivaleria a perder a complexidade de seu pensamento na obra de estreia.

O sentido político de Raízes do Brasil foi objeto de inter­rogações desde o primeiro momento. Na favorável resenha que lhe dedicou menos de um mês após o lançamento, Sér­gio Milliet não deixou de reparar que o livro “nada apresenta de positivo”, emendando: “admiramos a prudência da aná­lise e o ceticismo sereno de suas considerações. Desejaríamos, porém, encontrar numa obra tão bem pensada e escrita al­guns princípios norteadores, úteis aos que se preparam para o governo de amanhã”.4 Essas palavras, vindas de um amigo e Sérgio Buarque, não antecipam a imagem de um autor comprometido com a causa democrática, nem com causa al­guma. Ao contrário, ressaltam o ceticismo de sua abordagem. Ainda não parece haver sinal do radicalismo que Antonio Candido identificaria na versão revisada da obra. Em mea­dos da década de 1930, o aspecto discernível do pensamento e Sérgio Buarque talvez estivesse mais próximo do que se dirá à frente um conservadorismo como forma. O melhor modo de compreender as variações da mensagem do livro é reconstruir a enunciação e acompanhar a transformação o argumento político em seu último capítulo, intitulado “Nossa revolução”.

O problema básico enfrentado pelo capítulo é entender como um país de formação rural e familiar e de cultura ibérica poderia encontrar um novo equilíbrio após o solapamento das bases tradicionais da sociedade pela urbanização, tornada ir­resistível com o fim da escravatura em 1888. No fundo, essa é a grande indagação que Sérgio Buarque dirige ao presente. Duas respostas são oferecidas à questão, uma quase desconhe­cida, a outra, célebre. Doze anos as separam entre si.

***

Na primeira edição de Raízes do Brasil,5 a revolução, cuja cul­minância fora a Abolição, já havia operado o grosso de seus efeitos. O processo era descrito no pretérito perfeito e, embora seu “desenlace final” não houvesse sido alcançado, a “fase aguda” já tinha sido transposta. A desagregação do mundo ru­ral aniquilaria as “raízes ibéricas” da cultura nacional. A esse “lento cataclismo” deveria corresponder o surgimento de um “novo estilo”, o americanismo. Ocorre que ele ainda não se formara organicamente no país e reduzia-se à importação e fórmulas estranhas ao meio. O resultado era a persistên­cia do iberismo como forma cultural.

Essa constatação era redobrada pelo argumento original do quinto capítulo, dedicado à notória alegoria do “homem cordial”. A cordialidade é entendida como um “fundo emocional extremamente rico e transbordante”, que resulta em um tipo de convívio social com base na afetividade. Seu oposto é a civili­dade, a regulação fria por normas abstratas. A predominância da cordialidade acarreta a hegemonia do privado sobre o público. Sérgio Buarque afirma sem ressalvas que a cordialidade, espécie de síntese do legado colonial português, é “um aspecto bem definido do caráter nacional”. Mais que resiliente, o ibe­rismo aparece dotado de virtudes, pois dá aos brasileiros sua singularidade no mundo, e lhes oferece uma alternativa mais calorosa frente a experiências modernizadoras calcadas no esfriamento das relações humanas.

O elogio da tradição deixa ambígua a posição do autor acerca das forças modernizantes. Ele reconhece que a urbanização deveria dar à luz um novo ideal político, assentado na República, e, ademais, que a estabilidade social ja­mais poderia ser atingida sem recurso às normas abstratas. Mas observa que a imaginação política dos brasileiros continuava sob o fascínio do Império, que soube encarnar as “virtudes capitais” da gente ibérica. Fala-se aí no per­sonalismo, o sentimento exaltado da dignidade e da independência de cada homem diante dos demais. Em um ambiente personalista, acordos coletivos só eram possíveis pela ação de forças externas, que obtinham seu melhor rendimento ao granjear respeitabilidade, e não ao se imporem pela violência. Acresce que o despotismo não era condizente com a “doçura do nosso gênio”, leia-se, com a cordialidade. Fora essa a sabedoria do Império, e esse o motivo da admiração que ainda inspirava. Não é desprezível sobre todo esse raciocínio que Sérgio Buarque tivesse sido monarquista na adolescência (aos 17 anos, por exemplo, publicou um artigo intitulado “Viva o Imperador”).

Muitas correntes se contrapunham ao quadro político tradicional, no Brasil e na América Latina em geral. A principal era o liberalismo, que pressupunha um espaço público ordenado por relações impessoais. Adotada pelos povos das nações ibero-americanas, a democracia liberal inevitavelmente contrastava com “o que há de mais positivo em seu temperamento”, o personalismo (e, no Brasil, a cordialidade). Houve três reações distintas. Em alguns países, como o Uruguai batllista, a doutrina se tornou realidade e a despersonalização chegou ao paroxismo. Em outros, o liberalismo gerou dialeticamente o caudilhismo, com todos os seus excessos. Já naqueles países onde se conseguira afastar a “demagogia liberal”, o personalismo pôde assegurar “uma estabilidade política que de outro modo não teria sido possível”. Se o Império conseguira esse feito até certo ponto, o mesmo não se podia dizer da República. O Estado insistiu em negar a “espontaneidade nacional”, e a ilusão do liberalismo nos fez “des­terrados em nossa terra”.

O personalismo (e a oligarquia, sua projeção no tempo) representava nada menos que “o princípio político mais fecundo em nossa América”. A ideia abstrata do Estado era simplesmente ininteligível para os latino-americanos. Nessa altura do capítulo, o autor reitera uma expressão que hoje só se encontra em outro ponto do livro: a democracia no Brasil era o resultado de um “mal-en­tendido”. Não é de surpreender, assim, que o autor cogitasse a “superação da doutrina democrática”. Para isso seria neces­sário vencer a antítese impersonalismo-caudilhismo. Embora não o dissesse com todas as palavras, Sérgio Buarque parecia indicar que o personalismo (ou a oligarquia) constituía algo próximo a uma via média entre o impersonalismo gélido e o caudilhismo anárquico.

Como que para contrabalançar crítica tão categórica à democracia, o autor consigna que não seria justo concluir- -se inapelavelmente pela total incompatibilidade do “demo­cratismo liberal” com o Brasil. Havia fatores de confluência, como a primazia da vida urbana e o repúdio dos povos ame­ricanos por todo tipo de hierarquia. No artigo citado, Anto­nio Candido menciona essas observações como indício de elementos conducentes à democracia popular na primeira edição de Raízes do Brasil, e até de algum otimismo do autor nesse sentido. Cumpre ressaltar, todavia, que as referências do capítulo são à democracia liberal, inexistindo qualquer alusão à ascensão das classes populares. Após qualificar a de­mocracia como um mal-entendido e sugerir sua superação, Sérgio Buarque parecia mais cético que otimista com o caso. Mas, prudente, não descartava de todo a possibilidade futura de alguma solução democrática.

Nesse ponto, é interessante o contraste com O sentido do te­nentismo, publicado em 1933 por Virgínio Santa Rosa.6 O livro marcava posição contra o domínio oligárquico no país e de­fendia, de fato, a ascensão das camadas populares ao poder. O autor tinha em mente a pequena burguesia, mas explicava que, no Brasil, ela se confundia com proletariado devido à miséria das condições materiais. De todo modo, a remodelação social, a que Santa Rosa curiosamente se referia como um “arejamento das raízes da nacionalidade”, exigiria um governo centralizado, com suspensão do legislativo e submissão do judiciário. Onde o movimento tenentista encampou a tese da “social-democra­cia”, afirmava Santa Rosa, foi circunstancialmente, por verificar a inviabilidade momentânea da solução ditatorial.

Ainda especulando sobre a democracia, Sérgio Buarque examina a afinidade entre as ideias da Revolução Francesa e o temperamento brasileiro. O homem cordial, guiado pela afetividade, não podia deixar de simpatizar com a doutrina da bondade natural. E, inversamente, de ver com antipatia as teses do homem mau por natureza, fundamento da doutrina totalitária. A primeira hipótese é rejeitada. Apesar da simila­ridade de superfície, a máxima liberal-democrática da maior felicidade para o maior número contrasta nitidamente com a lógica cordial, em que o amor por uma pessoa deve forço­samente ser maior que o amor por outrem. A parcialidade própria das relações familiares conflita com o ponto de vista juridicamente neutro da civilidade. Além do mais, a doutrina democrática merecia reparos em si mesma, pois “sub-rep­ticiamente” subordinava ideais qualitativos à quantidade. A tese da infalibilidade do voto da maioria não passava do que “pretendem os declamadores liberais”.

Sérgio Buarque arremata a conjectura com uma afirmação surpreendente. Tendo elogiado a cordialidade e criticado a de­mocracia liberal, alterna o ângulo de avaliação e sentencia que com a cordialidade “não se criam os bons princípios”. O leitor fica, de fato, sem qualquer princípio que norteie sua reflexão política. A democracia é vista com suspeita, mas a cordialidade tampouco é viável. Rapidamente Sérgio Buarque acrescenta que o elemento normativo exigido para que houvesse ordem era passível de ser “implantado pela tirania”, que poderia sim produzir efeitos duradouros, ao contrário do que propagam as “invenções fraudulentas da mitologia liberal”. Mais uma vez, entreabre-se a possibilidade de uma solução, agora dita­torial. O leitor nem bem começa a considerar essa perspectiva, Sérgio Buarque alterna novamente o ângulo de análise e passa a criticar os regimes de força.

Tanto o comunismo quanto o fascismo sucumbem à “grande tradição brasileira”, que consiste na neutralização das lógicas do interesse e da ideologia. Naturalmente, é da cordialidade que se fala. O fascismo merece atenção especial do autor. A pro­posta de uma “reforma espiritual” para salvar a sociedade pa­recia-lhe antes uma “sutil contrarreforma”. Assim como o libe­ralismo, o fascismo negava a espontaneidade nacional. Apenas, era uma “negação disciplinada”, pois reduzia arbitrariamente a espontaneidade nacional a uma manifestação unívoca.7

A crítica ao fascismo é aprofundada em uma nota do capítulo final, que reproduz o texto de uma resenha assi­nada por Sérgio Buarque sobre o livro Maquiavel e o Brasil.

Lançada por Octavio de Faria em 1931 e reeditada dois anos mais tarde,8 essa obra considerava a concepção tomada a Rou­sseau do homem bom o erro capital da Constituição de 1891. Ao contrário: “O homem não presta –- é preciso contê-lo”. Era necessário superar a “fobia do sofrimento” dos brasileiros, agravada por um encarecimento excessivo das amizades, e or­ganizar um Estado nos moldes fascistas, habilitado a suprimir a ameaça comunista. Em sua resenha, Sérgio Buarque objetava que a tirania de um homem de exceção, como Mussolini, era proposta “nitidamente inumana”. Não era crível que os bra­sileiros renunciassem às “suas liberdades” em nome de uma “solução inimiga”. Essas restrições podem não ser totalmente compreendidas na leitura isolada da resenha de Sérgio Buarue, publicada em 1933,9 mas, lidas no contexto de Raízes do Brasil, ganham pleno significado. Era a hipótese do desencon­tro entre a cordialidade e a doutrina do homem naturalmente mau que embasava a crítica. As liberdades de que os brasileiros não abririam mão eram aquelas franqueadas pela cordialidade. O homem cordial não podia tolerar o homem de exceção.

Forte o bastante para desarmar ideologias e interesses à base do fascismo e do comunismo, a cordialidade pouco poia construir. O personalismo, que fora capaz de sobrepujar o liberalismo no Império, definhara na República. Tanto a cordialidade como o personalismo eram colocados em risco pelo aniquilamento das raízes ibéricas da cultura brasileira. Mas ainda detinham notável poder de permanência. Daí por que o último parágrafo do capítulo final fale em um “mundo e essências mais íntimas que, esse, permanecerá sempre in­tacto”, intocado por fórmulas negadoras da realidade. O libe­ralismo, por exemplo, fora um “destruidor de formas”, e nada construíra. A realização completa da sociedade “depende de sua forma”, que deve surgir de “necessidades específicas” e nunca de “escolhas caprichosas”. Nesse sentido, o Estado só adquiriria força normativa onde coincidisse com a vida social e pudesse servi-la. É verdade que, do ponto de vista conceitual, havia uma oposição entre o mundo privado e o espaço pú­blico. Este só podia ser fundado pela superação daquele. Mas, na prática, desordem tradicional e ordem moderna deviam resolver sua oposição em um “contraponto”. Cordialidade e civilidade deviam se relacionar como melodias combinadas, ainda que independentes. Era esse o peculiar caminho –- ou melhor, caminhada –- da modernização brasileira.

***

Na edição revisada de Raízes do Brasil,10 o encadeamento te­mático do capítulo final é similar ao da versão original, mas as ênfases são redistribuídas. Sete grandes temas se sucedem, como na edição anterior: revolução, Estado, personalismo, de­mocracia, cordialidade, totalitarismo e contraponto.

O texto inicia-se com a revolução, que, em vez de esgotada, passa a ser um processo em aberto, tratado no presente do indicativo. Sua “fase aguda” não havia sido superada. Estava sendo vivida. Tem-se a impressão de que a revolução guarda­ria mais potencialidades, ainda não realizadas. Seguem idên­ticas as palavras sobre o declínio do mundo rural e do influxo ibérico e a concomitante insuficiência do americanismo. Mas uma grave ruptura abate-se sobre o estado de coisas, como fica evidente nas alterações sofridas pela definição da cordialidade no quinto capítulo. Ela se torna um “traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fe­cunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal”. A ressalva sobrepuja a definição. Em meio a uma urbanização cujos efeitos ainda não terminaram de se fazer sentir, a cordialidade, diretamente li­gada à minguante base rural, é ferida de morte. A metáfora é bem essa. Em carta a Cassiano Ricardo datada do mesmo ano de 1948,11 Sérgio Buarque afirma que as condições de vida ru­ral e colonial estão sendo “rapidamente” superadas. A urbani­zação condenava o homem cordial a desaparecer. Na verdade, tratava-se já de um “pobre defunto”.

A civilidade dá a volta por cima e a cordialidade começa a ser empurrada para o esquecimento. Desaparece, com isso, a ambiguidade na abordagem da tradição. O Estado reni­tentemente ibérico obstrui a modernização. Sobressai outra observação do quinto capítulo, de acordo com a qual o Bra­sil contava com um Estado patrimonial, em que apetites pri­vados triunfavam sobre o interesse público. A incapacidade da República de criar um ideal político próprio empresta um componente “trágico” à situação (a expressão já constava da edição anterior, mas, como sucede em outros casos do último capítulo, ganha nova força com as modificações do texto).

O liberalismo não se contrapôs ao quadro tradicional, nem pretendeu alterá-lo. Foi, isso sim, astutamente in­terpretado pela elite oligárquica, de modo a ajustar-se aos “velhos padrões patriarcais e coloniais”. O personalismo, em todo caso, não era mais o mesmo. Nos países em que pudera vencer as resistências (não “de­magogias”) liberais, assegurara uma “estabilidade política aparente”. Esta representava, quando muito, “um disfarce grosseiro, não uma alternativa, para a anarquia”. Todas as menções positivas ao personalismo são retira­das ou relativizadas. Agora a antítese a vencer-se era entre liberalismo (não mais “impersonalismo”) e caudilhismo. O autor poupava a impessoalidade e distinguia a democracia do liberalismo, conceitos que andavam juntos na versão anterior.

Aqui incide talvez a mais importante modificação empreendida por Sérgio Buarque na segunda edição de seu livro. Ao longo de seis páginas inteiramente novas, o autor apresenta o núcleo do que Antonio Candido chamou sua pers­pectiva radical. A vitória sobre a antítese liberalismo-caudilhismo somente será alcançada quando se liquidarem os fundamentos personalistas e aristo­cráticos da sociedade brasileira. Traduzindo a seu talante uma expressão de “Stanzas from the Grande Chartreuse”, poema do britânico Matthew Arnold, o autor afirma agonicamente que, enquanto essa transformação não ocor­resse, o Brasil viveria entre dois mundos: “um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz”.

Esse não é um simples obituário do iberismo e um exame pré-natal do americanismo. A situação descrita faz pensar em um entrelugar cultural. Por um lado, ele não deixa de inspirar ceticismo, pois há uma forte tensão entre tradição e modernidade, até porque a cordialidade continua podendo ser interpretada como uma proteção contra os males de uma civilidade exces­siva. Por outro, a ambiguidade valorativa da edição anterior é eliminada, ou bastante reduzida, em favor de uma argumentação mais linear. A moderni­dade se assume como promessa progressista, obstaculizada por uma tradição identificada com fatores atávicos, ou pelo menos rotinizados. Isso fica claro na inserção de uma nova assertiva acerca da revolução. O significado da “nossa revolução” é “a dissolução lenta, posto que irrevogável, das sobrevivências ar­caicas”. Era preciso solapar de vez a ordem colonial e patriarcal, com vistas a reverter suas consequências morais, políticas e sociais.

As palavras capitais dessa tomada de partido são retiradas de um livro es­quecido do fim do século 19, Brazil: The Amazons and the Coast. Sérgio Buar­que atribui ao seu autor, o naturalista norte-americano Herbert Smith, uma “intuição verdadeiramente divinatória”. De acordo com o raciocínio de Smith, citado em Raízes do Brasil, o país carecia de uma “revolução vertical”, que “trouxesse à tona elementos mais vigorosos, destruindo para sempre os ve­lhos e incapazes”. As camadas superiores não eram culpadas pelo isolamento em que se achavam da sociedade. Isso se dava antes por sua desventura. Por isso, elas não deviam ser expurgadas, mas, sim, amalgamadas às classes ope­rárias. Os eventos das décadas recentes na América Latina apontariam para esse rumo, diz Sérgio Buarque. Pode-se até notar uma insinuação de que o trabalho poderia tornar as camadas populares mais aptas a desenvolver algum tipo de ética do trabalho, oposta ao espírito de aventura que o colonizador português trouxe ao Brasil.

Tomando de empréstimo palavras de Herbert Smith, que traduziu mais no espírito de seu próprio ensaio do que no do texto original em inglês, Sér­gio Buarque faz então uma das afirmações mais representativas da perspec­tiva adotada por seu livro a partir da segunda edição: “A sociedade foi mal formada nesta terra, desde as suas raízes”. O enunciado dificulta a leitura de trechos em que a formação lusa é vista positivamente, preservados até hoje na obra. Um exemplo é o reconhecimento, no segundo capítulo, de que aquela ética da aventura dos portugueses vindos para a América foi o fator-chave para a conquista dos trópicos. Mas o fato é que, inserida nas pá­ginas finais do livro, a condenação taxativa do legado ibérico é uma tenta­tiva de vencer ambiguidades e resolver indecisões. A partir desse momento é que será possível vislumbrar no livro uma exigência de pensar de modo radical – “isto é, pela raiz”.1 2 Surge inclusive uma observação, uiçá dirigida a Gilberto Freyre, sobre adeptos de um pas­sado cada vez mais tingido de “cores idílicas”. Recorde-se que Freyre, colega de geração e (outrora?) amigo de Sérgio Buarque, escrevera o prefácio da edição princeps de Raízes do

Brasil. O texto foi retirado na segunda edição, e apenas com Candido, na quinta, a obra voltaria a ter um prefaciador.

A proposição de que a cordialidade não cria bons princí­pios, que poderia surpreender o leitor em 1936, haverá de parecer-lhe perfeitamente lógica em 1948. A constatação da incompatibilidade entre o homem cordial e a liberal-demo­cracia também vai nessa direção, e não é travada pela rei­teração do argumento de que a democracia no Brasil é um “lamentável mal-entendido”. Esse argumento continuou presente no sexto capítulo, em que nos acostumamos a lê-lo no texto definitivo, mas diluído em meio a uma discussão voltada predominantemente para o século 19. As contesta­ções da tese da infalibilidade do voto da maioria são supri­midas. A nota crítica a Octavio de Faria é igualmente retirada, provavelmente por importar no endosso da cordialidade. O restante da discussão sobre o totalitarismo é mantido, re­forçando a interpretação de que a cordialidade era um obs­táculo de tal monta à lógica dos interesses e das ideologias, que dificultava não somente a democracia quanto o fascismo ou o comunismo.

Ao fim do capítulo, a passagem sobre o contraponto fica comparativamente esvaziada, menos pelas poucas altera­ções sofridas por sua redação do que pela transformação dos enunciados do capítulo (e do livro em geral). Entre a tradição atávica e os robustos movimentos modernizantes há decerto uma tensão, mas não uma barganha fecunda. É sintomático que o trecho suprimido do parágrafo final da obra seja justa­mente o da frase que acautelava que a realização da sociedade dependia de sua forma. A cordialidade não poderia mais ser enaltecida como força capaz de ponderar produtivamente a marcha da civilidade. Tornara-se um estorvo.

Na conhecida definição de Italo Calvino, o clássico é um livro que nunca acaba de dizer o que tem a dizer.13 Esse é certamente o caso de Raízes do Brasil, hoje em sua 27ª edição. Um dos motivos é aquilo que Antonio Candido chamou em seu prefácio de “admirável metodologia dos contrários” que arma a enunciação da obra. Nesse procedimento, a visão da realidade é obtida pelo jogo entre conceitos polares. Não há, por exemplo, uma escolha entre cordialidade e civilidade, mas o enfoque simultâneo de ambos. Isso dá à mensagem do livro grande pregnância e – especialmente com as modificações na abordagem da democracia – atualidade. Mas outra maneira de interrogar o que esse livro ainda tem a dizer é consultar a edição original. A leitura diacrônica da obra revela um Sérgio Buarque diverso do radical que mais tarde se notabilizou.

A construção de uma democracia de cunho popular é o cerne da mensagem política de Raízes do Brasil a partir de 1948. A ênfase nesse resultado traduz-se na centralidade da “revo­lução vertical”. Embora as revisões no texto tenham deixado a argumentação mais linear, o percurso afigurava-se agônico, e o Brasil ficaria no limiar entre dois mundos. Como já se ob­servou,14 a solução passava pelo fato de a cordialidade ser uma identidade evanescente, cujos desafios porventura poderiam ser equacionados pela própria evolução da sociedade, vale di­zer, fora do contraponto com o Estado. Admissível da segunda edição em diante, essa avaliação não se aplica ao texto original.

Em 1936, Sérgio Buarque não pôde estipular um destino político para o país que se urbanizava. Enfatizou, em seu lu­gar, o itinerário que nos poderia levar até ele. O “contraponto” com a tradição era a melhor garantia sobre a forma de alcan­çar o ponto de chegada da modernização, qualquer que fosse. É deliberadamente que se diz “forma”. Uma das características do modo ensaístico pelo qual Sérgio Buarque escreveu Raízes do Brasil é a oscilação constante do juízo valorativo acerca das generalizações propostas.1 5 Isso foi observado na narrativa do capítulo final: aniquilam-se as raízes ibéricas, mas o ameri­canismo ainda é insatisfatório; a República deve exprimir a impessoalidade da vida urbana, mas o ideal político ainda é o personalismo do Império; o Estado não pode ferir a índole nacional, mas a cordialidade não é base para os bons princí­pios; a democracia é um mal-entendido, mas não é de todo incompatível com o país; a ditadura pode implantar normas eficazes, mas é neutralizada pela cordialidade.

Não foi sem razão que o resenhista protestou contra a falta de princípios norteadores. Mas desse apurado “senso dos contrários” na reflexão de Sérgio Buarque seria possível de­preender um conservadorismo como forma.1 6 Não se tratava de advogar substantivamente a cordialidade, como, aliás, faria Cassiano Ricardo ao exaltar uma “técnica de bondade” brasi­leira.17 Disso o afastava a ambiguidade na avaliação do legado colonial. Tratava-se antes da compreensão de que a cordiali­dade devia ser protegida e ao mesmo tempo corrigida em seus excessos pela civilidade (leia-se: pelo Estado), sem predefinir- -se o resultado final do exercício. Talvez por isso já se encon­trasse no último parágrafo do livro a intrigante expressão: “ensaiar a organização de nossa desordem”. A desordem era a cordialidade, e a organização era a civilidade. Mas também o primeiro termo da expressão pode ser lido em toda a sua espessura. O ensaio do jovem autor era a melhor ilustração de sua atitude aberta diante dos problemas legados pelo passado ao presente. O método analítico de Raízes do Brasil preenchia sua proposta substantiva. Em outras palavras, a forma ponde­rava o conteúdo. Radical, mas também conservadora, parece inesgotável a mensagem do clássico de Sérgio Buarque.

 

Luiz Feldman (1985) nasceu em Belo Horizonte e é diplomata. Mestre em relações internacionais pela PUC-Rio, atualmente é assessor do ministro das Relações Exteriores e professor assistente no Instituto Rio Branco.

 

NOTAS

1. Antonio Candido, “Radicalismos”. Estudos avançados, São Paulo, v. 4, n. 8, abr.-jun., 1990, pp. 4-18.

2. Idem, “O significado de Raízes do Brasil”, in Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 [1969].

3. Idem, “Post-scriptum”, in Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 [1986].

4. Sérgio Milliet, “Raízes do Brasil”. O Estado de S. Paulo, 18.11.1936, s/p.

5. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936.

6. Virgínio Santa Rosa, O sentido do tenentismo. Rio de Janeiro: Schmidt Editor, 1933.

7. George Avelino Filho, “As raízes de Raízes do Brasil”. Novos Estudos, São Paulo, v. 18, set. 1987, pp. 33-41.

8. Octavio de Faria, Maquiavel e o Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933.

9. Cf. Sérgio Buarque de Holanda, “Maquiavel e o Sr. Otávio de Faria”, in Sérgio Buarque de Holanda, O espírito e a letra: estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996 [1933], vol. 1.

10. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. 2ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro/ São Paulo: José Olympio, 1948.

11. Sérgio Buarque de Holanda, “Carta a Cassiano Ricardo” in Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 [1948].

12. Heloisa Maria Murgel Starling, “O tempo da delicadeza perdida: Chico, Sérgio e as raízes do homem cordial”, in Stelio Marras (org.), Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Edusp e Instituto de Estudos Brasileiros, 2012.

13.  Italo Calvino, Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.

14. Antonio Brasil Junior e André Botelho, “Próximo distante: rural e urbano em Populações meridionais e Raízes do Brasil”, in Gabriela Nunes Ferreira e André Botelho (org.), Revisão do pensamento conservador: ideias e política no Brasil. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2010.

15. Robert Wegner, “Um ensaio entre o passado e o futuro”, in Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

16. O autor deve a fórmula a Ricardo Benzaquen de Araújo.

17. Cassiano Ricardo, O homem cordial e outros pequenos estudos brasileiros. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1959.

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