O destino dos livros – por Jaron Lanier

O destino dos livros
por Jaron Lanier

Jaron Lanier

Jaron Lanier

Se existe alguma coisa abençoada e bacana em relação à cultura do Vale do Silício é que não temos muitas funções sociais obrigatórias e enfadonhas nas quais você tenha que sentar no lugar indicado, escolher entre carne, frango ou legumes ou ficar escutando brindes tediosos até conseguir ir embora. Mas, mesmo assim, às vezes temos de passar por isso.

Em uma dessas ocasiões eu estava sentado em um sofá branco entre Jeff Bezos, da Amazon, e Eric Schmidt, na época diretor-presidente do Google. Isso foi antes do Kindle. Aqueles dois machos alfa do Vale do Silício se olharam e de repente começaram uma troca ensandecida de estatísticas e casos curiosos sobre o ramo de livros. Era como se eles estivessem compartilhando dicas sobre mais um mercado cheio de “conteúdo” que empresas de tecnologia de rede como as deles estavam prontas a “dividir”.

Fiquei sentado ali, olhando para a frente na maior parte do tempo — um pedaço de cenário de um desenho animado dos anos 1920 em celuloide, colocado entre dois personagens frenéticos espelhando um ao outro, exibido no que parecia o dobro da velocidade.

Na verdade eles não estavam se movendo mais rápido do que o normal, mas a velocidade normal contrastava com o processo soturno pelo qual eu estava passando.

Eu vinha tentando terminar um primeiro livro sobre as formas pelas quais as tecnologias digitais vinham moldando nossa cultura há décadas. Não que eu fosse preguiçoso. Durante os anos em que não entreguei o livro, ajudei a criar diversos setores de tecnologia que agora fazem parte de grandes empresas. Eu me tornei pai, conduzi um programa de pesquisas conjunto com diversas universidades e toquei música pelo mundo. Escrevi muitos artigos. Mas escrever um livro era diferente. O processo de escrita de um livro coloca os autores em uma espécie diferente de tempo, porque um livro representa uma codificação de um ponto de vista. Meu problema era que, mesmo que eu não estivesse pronto para admitir, minhas ideias ainda não tinham amadurecido. Realmente levei décadas para estar pronto para completar You are not a gadget (Você não é um gadget)..

Enquanto isso, aqueles dois titãs do Vale do Silício estavam percebendo que o fato de por acaso eles controlarem alguns computadores centrais na internet os colocava na posição de controlar todo o mundo do livro em poucos anos. A Amazon começou como uma varejista de livros impressos que conseguia oferecer uma seleção maior e preços inferiores à maioria dos livreiros tradicionais em seus prédios de tijolos, mas a verdadeira oportunidade de mudar a maneira pela qual os livros chegavam aos consumidores chegou com o Kindle. Pelo fato de os livros eletrônicos não exigirem a mesma infraestrutura para serem produzidos, armazenados e distribuídos, sua popularidade transformou os negócios da maioria dos editores que contavam com os livros impressos. Além disso, produzir livros eletrônicos tornou-se mais fácil, e quase qualquer um pode ser editor.

Como serão os livros quando o Vale do Silício cuidar deles à sua maneira? Aprendemos um pouco sobre isso vendo o que aconteceu com a música, com vídeos, com as notícias e com a fotografia. Eis alguns cenários prováveis, embora não inevitáveis:

Os autores não vão precisar das editoras para produzir ou distribuir, portanto haverá poucas barreiras a atravessar — a não ser escrever o danado do livro. Isso já se tornou verdade, e ainda vai se tornar mais verdadeiro. Escrever um livro não vai significar muita coisa. Haverá muito mais informações disponíveis em algo semelhante ao formato de um livro do que jamais houve, mas no geral o padrão de qualidade será mais baixo. E o número de autores publicados se tornará semelhante ao número de leitores que pagarão por um livro.

A maioria dos autores vai ganhar a maior parte de seu dinheiro com aparições ao vivo ou consultoria em vez de ganhar com a venda de livros. Autores bem-sucedidos vão ganhar a vida em tempo real e, portanto, tenderão a ser jovens e sem filhos, independentemente ricos ou beneficiários de alguma instituição. Não tenderão a serem estudiosos  independentes com famílias. Enquanto isso, muitas pessoas vão fingir serem autores comercialmente bem sucedidos e vão investir dinheiro para ampliar a ilusão. Uma plutocracia intelectual emergirá gradualmente.

Muitos livros estarão disponíveis apenas por meio de um aparelho específico — um tipo novo de obstáculo — mas alguns bons livros, de autores que, de outra forma, seriam obscuros, se tornarão proeminentes. Quando uma empresa introduzir no mercado um novo aparelho de leitura, haverá um aumento de visibilidade de autores cujos textos só estarão disponíveis nesse aparelho.

Os livros vão se fundir com apps, videogames, mundos virtuais ou qualquer outro formato digital que se tornar notável. A princípio, renderão um bom dinheiro para alguns autores, enquanto ainda forem novidade.

A distribuição de vendas de livros se tornará ainda mais desproporcional: haverá um pequeno número de supervencedores e um enorme número de autores que publicam por conta própria, com quase ninguém entre os dois extremos.

O total de dinheiro que flui para os autores diminuirá para uma fração do que era antes das redes digitais, e será pago por uma combinação de anúncios e taxas pagos por pessoas presas a aparelhos patenteados ou canais de atendimento.

Os leitores se tornarão cidadãos de segunda classe em termos econômicos. (Quando compra um livro de papel, você possui algo que pode revender. Quando um leitor “compra” um ebook, está apenas assinando um contrato de acesso. O leitor não tem capital, nada para revender, nada que possa agregar valor por se tornar um item de colecionador). Ficarão presos a um aparelho ou a um contrato de serviços de telefone celular durante anos. Perderão suas próprias bibliotecas, anotações e até mesmo os próprios textos quando mudarem de provedor de serviços.

Muitos leitores lerão aquilo que for posto na frente de seus olhos por algoritmos de  crowdsourcing, e com frequência não saberão a identidade do autor, nem mesmo os limites entre livros. Será enorme a quantidade de livros gerados por algoritmos e livros escritos em linhas de produção com condições abusivas, porque podem ser feitos de forma tão barata que até mesmo com faixas mínimas de renda se poderia criar uma empresa.

Um livro não será necessariamente o mesmo a cada vez que for lido. Isso vai significar mais informações atualizadas e menor ocorrência de erros de digitação no texto, mas tirará a ênfase do ritmo e da poética da prosa, além de minimizar os riscos de declarar que um livro está completo e expandir o efeito “bolha de filtro”.

Os meios para encontrar material de leitura sediarão as batalhas das empresas. As brigas serão horríveis. A interação entre leitores e livros será disputada e corrompida por spams e enganação.

Quando a maior parte dos livros tiver se tornado digital, os proprietários dos principais servidores de internet que roteiam dados para os leitores, provavelmente controlados por empresas do Vale do Silício, se tornarão mais poderosos e mais ricos do que eram antes.

Um livro não é apenas um artefato, mas uma síntese de pessoalidade individual plenamente realizada com continuidade humana. Para produzir uma obra de verdadeira maturidade é necessário um período de tempo incompatível com o modelo econômico das nossas redes digitais. É fácil acreditar que uma mensagem no Twitter deva ser gratuita — são apenas 140 caracteres. Mas um livro completo de 100 mil palavras demanda tempo, disciplina e capital para ser sintetizado. O modelo econômico de nossas redes digitais tem que ser otimizado para preservar essa síntese ou não vai servir para a humanidade.

Se o Vale do Silício conseguir manipular os livros do seu jeito as pessoas vão pagar menos para ler, o que será celebrado como algo bom para os consumidores, mas exceto pelas costumeiras histórias de pessoas enriquecendo no Vale, à moda de Horatio Alger, os escritores vão se tornar menos seguros.

Ainda que artistas e intelectuais tenham muitas vezes vigiado o futuro de maneira figurada, agora estão se tornando ratos de laboratório ou canários em uma mina de carvão. O que se tornar verdadeiro para os livros nos próximos anos também vai se tornar verdadeiro para a grande parte da economia nas próximas décadas. Os livros vão estabelecer um precedente a ser repetido nos setores de transportes, indústria, medicina, educação e outros igualmente importantes.

Daqui a algumas décadas, quando as impressoras em 3D tiverem fechado as fábricas, enfermeiras robóticas estiverem cuidando de idosos e motoristas tiverem sido substituídos por caminhões e táxis que se dirigem sozinhos, a pergunta realmente importante será “Qual é o papel da pessoa?”

No cerne de qualquer suposta automação estão os dados, e eles surgem apenas dos esforços de pessoas de verdade, não de ciberanjos no céu. Um livro escrito automaticamente sempre será como a Wikipédia, escrita por autores reais que foram homogeneizados. De maneira semelhante, a automação de todos os outros papéis humanos será um cruel passe de mágica que oculta pessoas reais. Por exemplo, será esperado que designers de objetos em 3D “compartilhem”, de forma que novos empregos não sejam criados para substituir aqueles que foram perdidos quando as fábricas fecharem.

No passado, cientistas imaginaram a criação de uma fórmula mágica que tornasse as máquinas autossuficientes. Depois disso, as máquinas iriam montar livros, extrair combustíveis, manufaturar aparelhos eletrônicos, cuidar dos enfermos e dirigir caminhões. Isso talvez levasse a uma crise de desemprego, mas a sociedade se ajustaria, talvez com um giro em direção ao socialismo.

Mas o plano nunca deu certo. Em vez disso, o que parece automação é na verdade algo movido a uma grande quantidade de dados. Os maiores computadores do mundo reúnem dados daquilo que pessoas reais — como os autores — fazem, atuando como os mais abrangentes serviços de espionagem da história, e esses dados são reprocessados para fazer as máquinas funcionarem. Acontece que a “automação” ainda necessita de um número imenso de pessoas! E, no entanto, a fantasia de um futuro centrado em máquinas requer que essas pessoas se tornem anônimas e sejam esquecidas. É uma tendência que reduz o significado da autoria, mas, de maneira lógica, também vai encolher a economia como um todo, ao mesmo tempo em que enriquece os donos dos maiores computadores espiões.

Os livros sempre nos ajudaram a resolver os problemas que criamos para nós mesmos. Agora precisamos nos salvar percebendo os problemas que estamos impondo sobre os livros.

 

Jaron Lanier, criador do termo “realidade virtual”, é cientista da computação, músico e autor de You are not a gadget (2010) e Who owns the future? (2013), do qual foi retirado o ensaio acima.

 

Tradução de Alvaro Hattnher

 

 

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