Fernando Pessoa: poesia e razão

De fato, os diferentes heterônimos me parecem repre­sentar diferentes modos de viver a cisão do sujeito moderno. Para não me prolongar, darei apenas algumas breves indica­ções sobre o que penso em relação a isso. O Pessoa ortônimo, como vimos, representa maximamente a cisão. Já Alberto Caeiro representa a denegação radical da cisão. Para levá-la a cabo, ele se esforça por minimizar antes a própria separação entre si mesmo e o mundo, à maneira do gato a brincar na rua, do poema do Pessoa ortônimo. Nesse sentido, Caeiro tenta negar radicalmente a filosofia, que lhe parece ter produzido e maximizado essa separação no mundo moderno. É parado­xal, porém, que isso o torne obcecado pela filosofia, embora para negá-la. “Eu não tenho filosofia”, diz ele, mais de uma vez, “tenho sentidos .”27 E o tema é desenvolvido em trechos importantes de inúmeros poemas de Caeiro. Lembro alguns:

Não basta abrir a janela

Para ver os campos e o rio.

Não é bastante não ser cego

Para ver as árvores e as flores.

É preciso também não ter filosofia nenhuma.

Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.28

E:

metafísica bastante em não pensar em nada .29

E:

As bolas de sabão que esta criança

Se entretém a largar de uma palhinha

São translucidamente uma filosofia toda.30

E:

Brinca! Pegando numa pedra que te cabe na mão,

Sabes que te cabe na mão.

Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?31

E:

É mais estranho do que todas as estranhezas

E do que os sonhos de todos os poetas

E os pensamentos de todos os filósofos,

Que as coisas sejam realmente o que parecem ser

E não haja nada que compreender.32

E:

Os poetas místicos são filósofos doentes,

E os filósofos são homens doidos.33

Ocorre que, como já observava Aristóteles, diz-se filoso­far também aquele que questiona a filosofia.34 A obsessão de Caeiro pela filosofia evidencia a impossibilidade de rea­lização do projeto de cerzir a cisão.

Pois bem, os demais heterônimos ficam entre os extre­mos, que são Alberto Caeiro, por um lado, e o ortônimo, por outro. Assim, Álvaro de Campos reconhece a cisão (“Os outros também são eu”, diz ele, por exemplo, no poema “Reticências”),35 porém não a toma ao modo contemplativo, intelectual, quase paralisado do Pessoa ortônimo, mas de modo emotivo e trágico. Ricardo Reis aceita a cisão (leia-se, por exemplo, seu belíssimo “Vivem em nós inúmeros”),36 mas, rejeitando as paixões incontroláveis e as ambições intelectuais irrealizáveis, já que, segundo pensa, nada se pode saber, opta por um hedonismo moderado.

É claro que, ao dizer essas coisas, estou longe de ofere­cer uma explicação cabal da criação da heteronímia, pois todos somos modernos, e só Fernando Pessoa a criou. Mas, independentemente das causas singulares, concretas, psi­cológicas e (segundo o próprio Pessoa) possivelmente patológicas da heteronímia, espero ter conseguido explicar por que penso que, entre outras coisas, ela pode ser enten­dida como uma manifestação extrema ou – seguindo uma famosa indicação do próprio Pessoa37 – histérica do modo moderno de ser.

Contudo, tendo em vista o interesse de Fernando Pes­soa pelo ocultismo, talvez caiba perguntar se não será excessivamente racionalista a interpretação que acabo de dar. Não creio. Essa pergunta é equivocada. Em primeiro lugar, o mesmo ceticismo radical e racional que produz a cisão proíbe-nos, em última análise, não só de afirmar, mas também de negar peremptoriamente os produtos das especulações ocultistas.

Em segundo lugar, um interesse por fenômenos “ocul­tos” não significa necessariamente irracionalismo. O fas­cínio que o ocultismo exercia sobre Pessoa me parece ter sido de natureza estética. “A única razão para um ocultista funcionar no astral”, escreve o heterônimo Bernardo Soares, “é sob a condição de o fazer por estética superior, e não para o sinistro fim de fazer o bem a qualquer pessoa”.38 Em que consiste essa “estética superior”? É o próprio Bernardo Soares que explica:

Simpatizamos com o ocultismo, sobretudo porque ele sói exprimir-se de modo a que muitos que leem, e mesmo mui­tos que julgam compreender, nada compreendam. É sober­bamente superior essa atitude misteriosa. É, além disso, fonte copiosa de sensações do mistério e de terror: as larvas do astral, os estranhos entes de corpos diversos que a magia cerimonial evoca nos seus templos, as presenças desencarnadas da matéria deste plano, que pairam em torno aos nossos sentidos fechados, no silêncio físico do som interior – tudo isso nos acaricia com uma mão viscosa, terrível, no desabrigo e na escuridão.39

A superioridade aqui é a de quem se quer um aristocrata do espírito, a afetar desprezo pela vulgaridade farisaica do burguês. Não há como não lembrar, por exemplo, Baude­laire. Da mesma natureza é a evocação do mistério e do ter­ror sublimes.40

Para terminar, observo que talvez a notável predileção dos brasileiros pela poesia de Fernando Pessoa explique-se, ao menos em parte, pelo fato de que, como dizia o crítico Mário Pedrosa – numa frase que Hélio Oiticica gostava de citar –, “o Brasil é condenado ao moderno”. E penso que é por essa vocação para a modernidade que a verdadeira originalidade do Brasil não deve ser buscada nas suas par­ticularidades, mas no seu modo de ser universal. Como já afirmei certa vez,

o brasileiro não pode ignorar que o crisol-Brasil existe somente enquanto bojo de contatos, atritos e fusões culturais. Para ele, a afirmação do caráter acidental, contingente e relativo das iden­tidades positivas e particulares que entram em sua composição se dá como fundamento essencial, necessário e absoluto de sua nacionalidade. Com isso, a cultura brasileira não pode ser senão uma espécie de metacultura; a “raça” brasileira, meta-raça; e a nação brasileira, metanação.41

Sendo assim, parece que poderíamos, identificando-nos com os portugueses, assinar embaixo do seguinte texto de Fernando Pessoa:

Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do cato­licismo, quando fora dele há que viver todos os protestantis­mos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absor­vamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eter­namente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.42

ANTONIO CICERO teve seus poemas reunidos no livro Guardar (Record, 1996; vencedor do prêmio Nestlé de literatura) e integra diversas antolo­gias de poesia contemporânea brasileira, além de ter publicado A cidade e os livros (Record, 2002). Como letrista, assina parcerias com a cantora Marina Lima, sua irmã, além de outras com Lulu Santos, Adriana Calca­nhotto, Orlando Moraes e João Bosco. Como filósofo, entre outras ativida­des, coordenou e ministrou cursos de estética e teoria da arte no Galpão das Artes do Museu de Arte Moderna-Rj (1991 e 1992), e concebeu um ciclo de conferências sobre temas da modernidade que reuniu grandes artis­tas e pensadores brasileiros e estrangeiros (1993). Além disso, organizou, junto com o também poeta Waly Salomão, O relativismo enquanto visão de mundo (Francisco Alves, 1994), e escreveu O mundo desde o fim (Fran­cisco Alves, 1995), Finalidades sem Fim (Companhia das Letras, 2005), entre outros. Atualmente, dedica-se a escrever poemas e ensaios, além de fazer leituras e palestras.

 

1. Esta palestra foi proferida em 08.04.2010, na sede do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, por ocasião da entrega de medalhas da Ordem do Desassossego, instituída pela Casa Fernando Pessoa. Na ocasião, foram homenageadas a cantora Maria Bethânia e a professora de literatura Cleonice Berardinelli.

2. Ver “O agoral”, in: Antonio Cicero, O mundo desde o fim. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2009

3. Fernando Pessoa, “Mensagem”, in: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 78

4. Ibidem, p. 72

5. Faço aqui uma transcrição informal dos caracteres gregos para os romanos.

6. V. Odes nemeias vii e viii.

7. Né dolcezza di figlio, né la pieta/ del vecchio padre, né ’l debito amore/ lo qual dovea Penelopè far lieta,// vincer potero dentro a me l’ardore/ ch’i’ ebbi a divenir del mondo esperto,/ e de li vizi umani e del valore;// ma misi me per l’alto mare aperto [dante ALiGHiERi, La Divina commedia, canto xxvi, vv. 94-100].

8. Fernando Pessoa, op. cit., p.

9. Ibidem, p. 82.

10. Alexandre Koyré, Entretiens sur Descartes. Nova York Paris: Brentano’s, 1944.

11. Fernando Pessoa, Textos filosóficos, vol. 1, estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho. Lisboa: Ática, 1993, p. 108.

12. Ibidem, p. 46.

13. Ibidem, p. 113

14. Ibidem, vol. i, p. 195

15. Fernando Pessoa, Livro do desassossego por Bernardo Soares, vol. i, recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha, prefácio e organização de Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática, 1982, p. 56.

16. Observemos que a razão autossuficiente é a própria crítica, pois “crítica”, do substantivo grego kritiké, do verbo krinein, “separar”, é o nome do exercício de negação que separa o necessário do contingente. A razão crítica, por outro lado, age, como vimos, pela negação. É a razão-crítica-negação que põe de um lado tudo o que é contingente, condicionado, relativo – e todas as crenças e coisas positivas e determinadas são contingentes, condicionadas, relativas – e de outro tudo o que é necessário, incondicionado, absoluto – e o necessário, incondicionado, absoluto não é senão a própria razão-crítica­negação.

17. Karl Marx, “Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung”, in: Karl Marx e Friedrich Engels, Werke. Berlim: Dietz Verlag, 1970, p. 378.

18. Fernando Pessoa, Páginas íntimas e de autointerpretação, textos estabelecidos e prefaciados por Rudolf Lind e Jacinto de Prado Coelho. Lisboa: Ática, 1966, p. 14.

19. Ibidem, p. 26

20. Fernando Pessoa, “Cancioneiro”, In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 156.

21. Idem, “Inéditas”, op. cit., p. 585.

22. Ibidem, p. 581.

23. Ibidem, p. 559.

24. Ibidem, p. 494.

25. Ibidem, “Cancioneiro”, p. 170.

26. Ibidem, p. 171.

27. Fernando Pessoa, “Ficções do interlúdio: poemas completos de Alberto Caeiro”, in: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 205. A frase “eu não tenho filosofia” ocorre também em citação de Álvaro de Campos, em Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos. “Notas para a recordação do meu mestre Caeiro”. in: T.R. Lopes, Pessoa por conhecer. Textos para um novo mapa. Lisboa: Estampa, 1990, p. 373.

28. Fernando Pessoa, “Ficções do interlúdio: poemas completos de Alberto Caeiro”, in: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 231.

29. Ibidem, p. 206.

30. Ibidem, p. 218

31. Ibidem, p. 231.

32. Ibidem, p. 223

33. Ibidem, p. 219

34. Aristóteles, Protrepticus 6, 2.

35. Fernando Pessoa,“Ficções do interlúdio: poesias de Álvaro de Campos”, in: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 19 86, p. 377.

36. Fernando Pessoa,“Ficções do interlúdio: odes de Ricardo Reis”, in: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 291.

37. Fernando Pessoa, “Carta a Adolfo Casais Monteiro. 13 de janeiro de 1935”. in: Escritos íntimos. Cartas e páginas autobiográficas, introdução, organização e notas de António Quadros. Lisboa: Publ. Europa-América, 1986, p. 199.

38. Fernando Pessoa, Livro do desassossego por Bernardo Soares, vol. n, recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha, prefácio e organização de Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática, 1982, p. 481.

39. Ibidem.

40. Sobre Pessoa, poderia ser dito o que Sartre escreveu sobre Baudelaire: “Ele se sente e quer sentir-se singular até o extremo gozo solitário, único até o terror”. Jean-Paul Sartre, Baudelaire. Paris: Gallimard, 1963.

41. Antonio Cícero, “Brasil feito brasa”, O mundo desde o fim. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2009.

42. Fernando Pessoa, Ultimatum e páginas de sociologia política, compilação de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão, introdução e organização de Joel Serrão. Lisboa: Ática, 1980.

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