Segundo os primeiros versos do poema de Homero, Ulisses conhecera inúmeras cidades e crenças humanas. Na Divina comédia, Dante, quando apenas se anuncia a madrugada do mundo moderno, faz Homero, no inferno, lembrar que, depois de ter regressado a Ítaca e a Penélope,
Nem a doçura do filho nem a piedade
Do velho pai, nem o devido amor
Que faria Penélope feliz
Pôde domar em mim o ardor
Que tive de conhecer o mundo
E os vícios humanos e valores;
E me lancei pelo alto mar aberto.7
Já se encontra aí uma antecipação do ethos faustiano do homem moderno. É isso, junto a sua politropia, que faz Ulisses personagem de tantos escritores e poetas modernos, desde Shakespeare até nossos dias, passando, entre outros, por James Joyce e, entre nós, Haroldo de Campos, no seu Finismundo.
E é esse ethos moderno que se revela no livro Mensagem. Ele se encontra, por exemplo, em “O Quinto Império”, do qual cito apenas as três primeiras estrofes:
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!8
Não é esse o sentimento descrito pelo Ulisses de Dante? É o que se manifesta também em “Mar português”:
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.9
Mas Fernando Pessoa é, além disso, moderno num sentido ainda mais profundo, também prefigurado por Ulisses, quando este diz ao cíclope Polifemo chamar-se Oútis, isto é, “Ninguém”. Refiro-me ao que se pode chamar de a moderna cisão da subjetividade. Creio que o melhor meio de explicar o que significa essa cisão é mostrar o caminho pelo qual o autor de Mensagem a alcançou.
Como se sabe, a filosofia moderna se formou a partir do ceticismo mais radical que se pode imaginar: a dúvida hiperbólica ou exagerada de Descartes, segundo a qual é possível que absolutamente tudo o que pensamos saber não tenha consistência maior que a de sonhos, alucinações, ataques de loucura, encantamentos provocados por gênios maus etc. Com razão, Alexandre Koyré afirmou que essa dúvida foi “a mais tremenda máquina de guerra – guerra contra a autoridade e a tradição – que o homem jamais possuiu”.10
Ora, as notas filosóficas de Fernando Pessoa mostram que, pensando profundamente sobre tal dúvida, ele a assumira. Nas suas palavras, “nossa primeira ação mental quando filosofamos é […] sacudir (shake off) de nós os preconceitos tirânicos do hábito e, não menos, todo o peso do conhecimento que pode aparentar ter sido adquirido de modo totalmente legítimo e parecer dotado de correção indubitável”.11
O resultado da dúvida hiperbólica é que eu, seja quem for, dou-me conta de que sou capaz de consistentemente negar a existência de Deus, a existência do mundo, a existência de cada uma das coisas que se encontram no mundo, a existência do meu próprio corpo. Isso não significa necessariamente que essas coisas determinadas não existam, mas que tanto é possível que existam quanto que não existam. Em última análise, não posso ter certeza de que todas elas não passem de engano, ilusão, delírio. A existência de tais objetos se revela, portanto, como contingente e relativa. Há, contudo, como se sabe, um limite à negação. Nas palavras de Pessoa: “A única coisa que o pensamento não pode pensar como não ser é ele próprio. É esta a base do dictum basilar de Descartes”.12
Descartes pensa poder recuperar algumas certezas, além dessa, através de uma prova – chamada “prova ontológica” – da existência de Deus. Mas essa “prova”, como Kant veio a demonstrar, é insustentável. Pode-se dizer, por isso, que o homem moderno é aquele que viu desabarem, ao sopro da razão, todos os castelos de cartas das crenças tradicionais: o homem que caiu em si. Em última análise, é isso que o obriga a instaurar, por exemplo, a ciência e os procedimentos jurídicos modernos como processos abertos à razão crítica, públicos, e cujos resultados estão sempre, em princípio, sujeitos a ser revistos ou refutados.
Acontece que, depois de dúvida tão radical, não tenho, como já foi dito, certeza de absolutamente nada de determinado: e isso a tal ponto que não tenho certeza de nada de determinado nem sequer sobre mim mesmo. Quando digo “penso, logo sou”, não é nem meu corpo, nem minha pessoa, nem minha personalidade, nem meu caráter que tenho certeza de ser. Posso estar enganado em relação a tudo isso. Depois da dúvida hiperbólica, o que fica, como diz Fernando Pessoa, “não sou eu mesmo como sujeito pensante, nem mesmo meu pensamento, mas pensamento, a pura razão, incondicionada e absoluta”.13 Trata-se precisamente da razão que duvida e que, duvidando, nega a consistência de todas as coisas que a ela se submetem; e que só não é capaz de negar a si própria porque, justamente ao tentar fazê-lo, afirma-se. Só essa razão é autossuficiente, ou, como diz Pessoa, suficiente a si: “De todas as nossas faculdades, a razão é a mais alta, porque é a única que a si é suficiente (self- sufficient)”.14