Agradeço ao Flávio Pinheiro e ao Instituto Moreira Salles pela hospitalidade. Para mim é uma grande honra e um grande prazer estar nesta bela casa, entre tantas pessoas que admiro. Felizmente eu trouxe um texto escrito, porque nem sei se conseguiria coordenar as ideias ao lado de ídolos meus, como a professora Cleonice Berardinelli e a cantora Maria Bethânia.1

Inês Pedrosa, que eu já admirava muito como escritora, agora também admiro pelo dinamismo, pela inteligência e pela sensibilidade que tem demonstrado como presidente da Casa Fernando Pessoa. Uma manifestação dessas quali­dades é justamente a criação da Ordem do Desassossego e sua outorga a Cleonice Berardinelli e Maria Bethânia.

E como foi Fernando Pessoa quem escreveu “Minha pátria é a língua portuguesa”, declaração que se tornou conhecida em todo o Brasil graças a uma canção de Caetano Veloso, tomo esta cerimônia também como símbolo de algo que considero um dos fenômenos mais auspiciosos dos últi­mos tempos, tanto para o Brasil quanto para Portugal, que é – através da celebração da beleza e da riqueza da língua portu­guesa e da literatura em português – a decisão cada vez mais forte de reafirmar, fortalecer e renovar os laços culturais que desde sempre, constitutivamente, unem os nossos países entre si e com os demais povos de expressão portuguesa.

Fernando Pessoa é não só um dos maiores poetas moder­nos, mas um dos maiores poetas da modernidade, ou seja, um dos poetas que mais intensamente experimentaram e mais longe levaram a experiência tanto das possibilidades quanto do desencanto do mundo moderno. Não que ele esteja próximo das modas ou veleidades contemporâneas ou das ideias deste ou daquele teórico em voga, nem que tenha antecipado as teses deste ou daquele maître à penser. A modernidade a que me refiro não se confunde com a mera contemporaneidade.2 Deixemos de lado nosso pro­vincianismo temporal. A modernidade consiste em pri­meiro lugar na época da desprovincianização do mundo: aquela que, do ponto de vista temporal, abre-se com o humanismo que, voltando os olhos para o mundo clás­sico, relativiza o mundo contemporâneo; e que, do ponto de vista espacial, abre-se com as descobertas geográficas, celebradas, como se sabe, pelo próprio poeta de Mensagem, quando diz, por exemplo, no altíssimo poema “O infante”, inspirado em d. Henrique, o Navegador:

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até o fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Cometendo um sacrilégio, interrompo o poema para exclamar: que imagem, essa! “A terra inteira, de repente,/ Surgir, redonda, do azul profundo”: do azul profundo do mar, como o sol ou a lua surgem às vezes do mar. Mas o sol ou a lua surgem do mar para os nossos olhos. A terra surge redonda do mar para a nossa inteligência, porque as nave­gações a revelam efetivamente redonda. E os sentidos e a inteligência se confundem nessa imagem.

Mas continuo:

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!3

Essa descoberta da terra inteira relativiza a Europa. O processo de desprovincianização ou de cosmopolitização que produziu o mundo moderno não se restringiu às descobertas dos humanistas e dos navegadores, pois tam­bém incluiu explorações científicas, artísticas, técnicas etc. Ora, a abertura de novos horizontes tornou também possível a compreensão do caráter limitado dos antigos horizontes. As ideias e as crenças tradicionais puderam ser postas em questão, quando não simplesmente des­mentidas. Os valores, as formas e os procedimentos tradi­cionais puderam ser relativizados, quando não simples­mente abandonados.

Uma antiga tradição diz que o nome de Lisboa vem de Ulisses: Ulixes, Ulixbona, Lissabona, Lisboa. Em alemão diz-se ainda Lissabon para Lisboa. O fato é que o poema “Ulisses”, do já citado Mensagem, celebra essa tradição:

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.4

Ulisses remete ao passado mítico, e este se projeta para o futuro. E Ulisses remete também à modernidade, pois ele pode ser – e tem sido – considerado o primeiro personagem mítico moderno.

Andra moi énnepe, Mousa, polútropons [“Fala-me, Musa, do homem polútropos”], diz-se, no primeiro verso da Odis­seia. Aportuguesemos essa palavra, dizendo “polítropo”. Homem polítropo é, literalmente, o homem que se vira de muitos modos, versátil, hábil, inventivo. Tais qualidades eram, em geral, desprezadas pela nobreza pré-moderna. O nobre era o que era, era o que tinha nascido, identificava-se com sua casta e desprezava a possibilidade de vir a ser outro, ou de “se virar”. É por isso que, por exemplo, o poeta dos aristocratas, Píndaro, falava derrisoriamente de Ulisses, comparando-o desfavoravelmente a Ajax.6

Segundo os primeiros versos do poema de Homero, Ulisses conhecera inúmeras cidades e crenças humanas. Na Divina comédia, Dante, quando apenas se anuncia a madru­gada do mundo moderno, faz Homero, no inferno, lembrar que, depois de ter regressado a Ítaca e a Penélope,

Nem a doçura do filho nem a piedade
Do velho pai, nem o devido amor
Que faria Penélope feliz

Pôde domar em mim o ardor
Que tive de conhecer o mundo
E os vícios humanos e valores;

E me lancei pelo alto mar aberto.7

Já se encontra aí uma antecipação do ethos faustiano do homem moderno. É isso, junto a sua politropia, que faz Ulis­ses personagem de tantos escritores e poetas modernos, desde Shakespeare até nossos dias, passando, entre outros, por James Joyce e, entre nós, Haroldo de Campos, no seu Finismundo.

E é esse ethos moderno que se revela no livro Mensagem. Ele se encontra, por exemplo, em “O Quinto Império”, do qual cito apenas as três primeiras estrofes:

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem

Pela visão que a alma tem!8

Não é esse o sentimento descrito pelo Ulisses de Dante? É o que se manifesta também em “Mar português”:

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.9

Mas Fernando Pessoa é, além disso, moderno num sen­tido ainda mais profundo, também prefigurado por Ulisses, quando este diz ao cíclope Polifemo chamar-se Oútis, isto é, “Ninguém”. Refiro-me ao que se pode chamar de a moderna cisão da subjetividade. Creio que o melhor meio de explicar o que significa essa cisão é mostrar o caminho pelo qual o autor de Mensagem a alcançou.

Como se sabe, a filosofia moderna se formou a partir do ceticismo mais radical que se pode imaginar: a dúvida hiperbólica ou exagerada de Descartes, segundo a qual é possível que absolutamente tudo o que pensamos saber não tenha consistência maior que a de sonhos, alucinações, ata­ques de loucura, encantamentos provocados por gênios maus etc. Com razão, Alexandre Koyré afirmou que essa dúvida foi “a mais tremenda máquina de guerra – guerra contra a autori­dade e a tradição – que o homem jamais possuiu”.10

Ora, as notas filosóficas de Fernando Pessoa mostram que, pensando profundamente sobre tal dúvida, ele a assumira. Nas suas palavras, “nossa primeira ação mental quando filo­sofamos é […] sacudir (shake off) de nós os preconceitos tirâ­nicos do hábito e, não menos, todo o peso do conhecimento que pode aparentar ter sido adquirido de modo totalmente legítimo e parecer dotado de correção indubitável”.11

O resultado da dúvida hiperbólica é que eu, seja quem for, dou-me conta de que sou capaz de consistentemente negar a existência de Deus, a existência do mundo, a existência de cada uma das coisas que se encontram no mundo, a existên­cia do meu próprio corpo. Isso não significa necessariamente que essas coisas determinadas não existam, mas que tanto é possível que existam quanto que não existam. Em última análise, não posso ter certeza de que todas elas não passem de engano, ilusão, delírio. A existência de tais objetos se revela, portanto, como contingente e relativa. Há, contudo, como se sabe, um limite à negação. Nas palavras de Pessoa: “A única coisa que o pensamento não pode pensar como não ser é ele próprio. É esta a base do dictum basilar de Descartes”.12

Descartes pensa poder recuperar algumas certezas, além dessa, através de uma prova – chamada “prova ontológica” – da existência de Deus. Mas essa “prova”, como Kant veio a demonstrar, é insustentável. Pode-se dizer, por isso, que o homem moderno é aquele que viu desabarem, ao sopro da razão, todos os castelos de cartas das crenças tradicionais: o homem que caiu em si. Em última análise, é isso que o obriga a instaurar, por exemplo, a ciência e os procedimen­tos jurídicos modernos como processos abertos à razão crí­tica, públicos, e cujos resultados estão sempre, em princípio, sujeitos a ser revistos ou refutados.

Acontece que, depois de dúvida tão radical, não tenho, como já foi dito, certeza de absolutamente nada de deter­minado: e isso a tal ponto que não tenho certeza de nada de determinado nem sequer sobre mim mesmo. Quando digo “penso, logo sou”, não é nem meu corpo, nem minha pes­soa, nem minha personalidade, nem meu caráter que tenho certeza de ser. Posso estar enganado em relação a tudo isso. Depois da dúvida hiperbólica, o que fica, como diz Fernando Pessoa, “não sou eu mesmo como sujeito pensante, nem mesmo meu pensamento, mas pensamento, a pura razão, incondicionada e absoluta”.13 Trata-se precisamente da razão que duvida e que, duvidando, nega a consistência de todas as coisas que a ela se submetem; e que só não é capaz de negar a si própria porque, justamente ao tentar fazê-lo, afirma-se. Só essa razão é autossuficiente, ou, como diz Pessoa, suficiente a si: “De todas as nossas faculdades, a razão é a mais alta, por­que é a única que a si é suficiente (self- sufficient)”.14

Ao me reduzir a tal razão, porém, já não tenho nenhuma propriedade que me individualize, que me diferencie de qualquer outra pessoa. O que me individualizava, o que me diferenciava das outras pessoas era exatamente o que eu tinha de positivo e determinado, que é tudo o que perten­cia ao meu corpo, à minha psicologia, à minha biografia, à minha situação no mundo. Ora, ante a razão, tudo isso é contingente, condicionado, relativo: pode ser ou não ser. Mas, se não sou necessariamente nada do que pensava ser; se sou antes o seu – o meu – nada, então eu poderia ter sido outro; poderia ser outro; poderia vir a ser outro; outro poderia ser eu. Como anota o heterônimo Bernardo Soares, “posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma cousa, não poderia imaginar”.15 É a razão crítica que, a um só tempo, instaura a modernidade e estabelece a cisão do sujeito entre, de um lado, o sujeito indeterminado e negativo (portanto destituído do que normalmente chama­mos de “subjetividade”, isto é, de psicologia), e, de outro, o sujeito positivo e determinado.16

Na vida prática, de um modo ou de outro, todos senti­mos, independentemente de conhecer o cogito, o efeito da cisão que ele produz. “A crítica”, diz um famoso enunciado de Marx, que tinha em mente a crítica moderna à religião, “arrancou as flores imaginárias das correntes, não para que os homens portassem as correntes sem fantasias nem con­solo, mas para que jogassem fora as correntes e colhessem as flores vivas”.17 Há no mundo moderno, é claro, aqueles que debalde ainda tentam crer e fazer crer nas flores ima­ginárias e nas fantasias; há aqueles que portam as correntes sem fantasia nem consolo e, nostálgicos das irrecuperáveis flores imaginárias e das fantasias, lamentam o desencanto do mundo moderno; e há aqueles que jogam ou tentam jogar fora as correntes e colher as flores vivas.

Alguns, por outro lado, além de sentir, como todo mundo, os efeitos da modernidade, estudam a filosofia moderna, seja para afirmá-la em teoria e/ou na vida, seja para desen­volvê-la, seja para negá-la. Fernando Pessoa experimentou cada uma dessas possibilidades. Os trechos dos fragmentos filosóficos de Fernando Pessoa que tenho citado mostram o interesse e a profundidade com que ele pensava filosofi­camente sobre esses assuntos. O que o distingue é que ele não só viveu as possibilidades, mas viveu-as através da pró­pria obra poética, até as últimas consequências, e com uma intensidade incomparável. Creio, por isso, que ele estava certo ao se descrever como “um poeta impulsionado pela filosofia, não um filósofo dotado de faculdades poéticas”.18

“O meu pior mal”, diz Pessoa, “é que nunca consigo esquecer a minha presença metafísica na vida. De aí a timi­dez transcendental que me atemoriza todos os gestos, que tira a todas as minhas frases o sangue da simplicidade, da emoção direta.”19 Assim, a cisão do sujeito moderno entre positivo e determinado, de um lado, e indeterminado e negativo, de outro, manifesta-se –— no mais das vezes de modo doloroso e dramático – em inúmeros e belíssimos poemas de Pessoa. Ela aparece, por exemplo, como inveja do animal não cindido:

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.20

O gato brinca na rua como se estivesse no lugar mais íntimo da casa, na cama. Por oposição, infere-se que o poeta que aqui fala não se sente em casa nem sequer quando se encontra na própria cama. Não há distância entre o gato e o mundo, a cujas leis fatais ele obedece como as pedras à lei da gravidade ou as “gentes” aos instintos ou costumes. O poeta, livre até de si próprio, não segue leis fatais nem instintos, mas os considera a partir de fora. O gato sente o que sente; o poeta, ao interrogar o que sente, já se distancia do próprio sentimento. O gato é feliz, pois, mesmo não sendo praticamente nada, tem tudo o que lhe pertence. O poeta que o vê é o oposto. Vê a si próprio como se fosse outro: não se possui, não é ele mesmo, está sem si. O que quer que ele veja – ou melhor, o que quer que seja objeto do seu pensamento, o que quer que conheça, inclusive a si próprio – vira objeto, do qual se distancia jus­tamente enquanto vê, pensa, conhece.

Muitos outros poemas e fragmentos de poemas do Pessoa ortônimo poderiam ser citados no mesmo sentido. Como o poema do gato, eles são tão claros que dispensam qualquer explicação, uma vez que tenhamos em mente a cisão do sujeito moderno. Posso mencionar, por exemplo:

Tudo quanto penso,
Tudo quanto sou
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.
[…]21

Ou:

[…]
Vou no caminho
Que é meu vizinho
Porque não sou
Quem aqui estou.22

Ou:

Minhas mesmas emoções
São coisas que me acontecem.23

Ou:

Longe de mim em mim existo
À parte de quem sou,
A sombra e o movimento em que consisto.24

Ou:

[…]
Entre o que vivo e a vida,
Entre quem estou e sou,
Durmo numa descida,
Descida em que não vou.
[…]25

Ou:

Entre o sono e o sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho,
Corre um rio sem fim.
[…]26

As citações, claro, poderiam multiplicar-se. Passemos porém a outro ponto. Se sou necessariamente incondicio­nado e absoluto, a pura razão crítica, a pura negação negante, e se sou apenas de modo contingente, condicionado e relativo esta pessoa dotada de tais e tais traços físicos, de tal persona­lidade, de tal caráter, de tal biografia e de tais e tais sentimen­tos, isto é, se, enquanto sujeito indeterminado e negativo, só por acaso sou Fernando Pessoa, então também por acaso eu poderia ser, ou ter sido, ou vir a ser Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares, António Mora etc.

De fato, os diferentes heterônimos me parecem repre­sentar diferentes modos de viver a cisão do sujeito moderno. Para não me prolongar, darei apenas algumas breves indica­ções sobre o que penso em relação a isso. O Pessoa ortônimo, como vimos, representa maximamente a cisão. Já Alberto Caeiro representa a denegação radical da cisão. Para levá-la a cabo, ele se esforça por minimizar antes a própria separação entre si mesmo e o mundo, à maneira do gato a brincar na rua, do poema do Pessoa ortônimo. Nesse sentido, Caeiro tenta negar radicalmente a filosofia, que lhe parece ter produzido e maximizado essa separação no mundo moderno. É parado­xal, porém, que isso o torne obcecado pela filosofia, embora para negá-la. “Eu não tenho filosofia”, diz ele, mais de uma vez, “tenho sentidos .”27 E o tema é desenvolvido em trechos importantes de inúmeros poemas de Caeiro. Lembro alguns:

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.28

E:

Há metafísica bastante em não pensar em nada.29

E:

As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.30

E:

Brinca! Pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?31

E:

É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.32

E:

Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.33

Ocorre que, como já observava Aristóteles, diz-se filoso­far também aquele que questiona a filosofia.34 A obsessão de Caeiro pela filosofia evidencia a impossibilidade de rea­lização do projeto de cerzir a cisão.

Pois bem, os demais heterônimos ficam entre os extre­mos, que são Alberto Caeiro, por um lado, e o ortônimo, por outro. Assim, Álvaro de Campos reconhece a cisão (“Os outros também são eu”, diz ele, por exemplo, no poema “Reticências”),35 porém não a toma ao modo contemplativo, intelectual, quase paralisado do Pessoa ortônimo, mas de modo emotivo e trágico. Ricardo Reis aceita a cisão (leia-se, por exemplo, seu belíssimo “Vivem em nós inúmeros”),36 mas, rejeitando as paixões incontroláveis e as ambições intelectuais irrealizáveis, já que, segundo pensa, nada se pode saber, opta por um hedonismo moderado.

É claro que, ao dizer essas coisas, estou longe de ofere­cer uma explicação cabal da criação da heteronímia, pois todos somos modernos, e só Fernando Pessoa a criou. Mas, independentemente das causas singulares, concretas, psi­cológicas e (segundo o próprio Pessoa) possivelmente patológicas da heteronímia, espero ter conseguido explicar por que penso que, entre outras coisas, ela pode ser enten­dida como uma manifestação extrema ou – seguindo uma famosa indicação do próprio Pessoa37 – histérica do modo moderno de ser.

Contudo, tendo em vista o interesse de Fernando Pes­soa pelo ocultismo, talvez caiba perguntar se não será excessivamente racionalista a interpretação que acabo de dar. Não creio. Essa pergunta é equivocada. Em primeiro lugar, o mesmo ceticismo radical e racional que produz a cisão proíbe-nos, em última análise, não só de afirmar, mas também de negar peremptoriamente os produtos das especulações ocultistas.

Em segundo lugar, um interesse por fenômenos “ocul­tos” não significa necessariamente irracionalismo. O fas­cínio que o ocultismo exercia sobre Pessoa me parece ter sido de natureza estética. “A única razão para um ocultista funcionar no astral”, escreve o heterônimo Bernardo Soares, “é sob a condição de o fazer por estética superior, e não para o sinistro fim de fazer o bem a qualquer pessoa”.38 Em que consiste essa “estética superior”? É o próprio Bernardo Soares que explica:

Simpatizamos com o ocultismo, sobretudo porque ele sói exprimir-se de modo a que muitos que leem, e mesmo mui­tos que julgam compreender, nada compreendam. É sober­bamente superior essa atitude misteriosa. É, além disso, fonte copiosa de sensações do mistério e de terror: as larvas do astral, os estranhos entes de corpos diversos que a magia cerimonial evoca nos seus templos, as presenças desencarnadas da matéria deste plano, que pairam em torno aos nossos sentidos fechados, no silêncio físico do som interior – tudo isso nos acaricia com uma mão viscosa, terrível, no desabrigo e na escuridão.39

A superioridade aqui é a de quem se quer um aristocrata do espírito, a afetar desprezo pela vulgaridade farisaica do burguês. Não há como não lembrar, por exemplo, Baude­laire. Da mesma natureza é a evocação do mistério e do ter­ror sublimes.40

Para terminar, observo que talvez a notável predileção dos brasileiros pela poesia de Fernando Pessoa explique-se, ao menos em parte, pelo fato de que, como dizia o crítico Mário Pedrosa – numa frase que Hélio Oiticica gostava de citar –, “o Brasil é condenado ao moderno”. E penso que é por essa vocação para a modernidade que a verdadeira originalidade do Brasil não deve ser buscada nas suas par­ticularidades, mas no seu modo de ser universal. Como já afirmei certa vez,

o brasileiro não pode ignorar que o crisol-Brasil existe somente enquanto bojo de contatos, atritos e fusões culturais. Para ele, a afirmação do caráter acidental, contingente e relativo das iden­tidades positivas e particulares que entram em sua composição se dá como fundamento essencial, necessário e absoluto de sua nacionalidade. Com isso, a cultura brasileira não pode ser senão uma espécie de metacultura; a “raça” brasileira, meta-raça; e a nação brasileira, metanação.41

Sendo assim, parece que poderíamos, identificando-nos com os portugueses, assinar embaixo do seguinte texto de Fernando Pessoa:

Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do cato­licismo, quando fora dele há que viver todos os protestantis­mos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absor­vamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eter­namente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.42