serrote #5, julho 2010
Fernando Pessoa: poesia e razão
ANTONIO CICERO
Agradeço ao Flávio Pinheiro e ao Instituto Moreira Salles pela hospitalidade. Para mim é uma grande honra e um grande prazer estar nesta bela casa, entre tantas pessoas que admiro. Felizmente eu trouxe um texto escrito, porque nem sei se conseguiria coordenar as ideias ao lado de ídolos meus, como a professora Cleonice Berardinelli e a cantora Maria Bethânia.1
Inês Pedrosa, que eu já admirava muito como escritora, agora também admiro pelo dinamismo, pela inteligência e pela sensibilidade que tem demonstrado como presidente da Casa Fernando Pessoa. Uma manifestação dessas qualidades é justamente a criação da Ordem do Desassossego e sua outorga a Cleonice Berardinelli e Maria Bethânia.
E como foi Fernando Pessoa quem escreveu “Minha pátria é a língua portuguesa”, declaração que se tornou conhecida em todo o Brasil graças a uma canção de Caetano Veloso, tomo esta cerimônia também como símbolo de algo que considero um dos fenômenos mais auspiciosos dos últimos tempos, tanto para o Brasil quanto para Portugal, que é – através da celebração da beleza e da riqueza da língua portuguesa e da literatura em português – a decisão cada vez mais forte de reafirmar, fortalecer e renovar os laços culturais que desde sempre, constitutivamente, unem os nossos países entre si e com os demais povos de expressão portuguesa.
Fernando Pessoa é não só um dos maiores poetas modernos, mas um dos maiores poetas da modernidade, ou seja, um dos poetas que mais intensamente experimentaram e mais longe levaram a experiência tanto das possibilidades quanto do desencanto do mundo moderno. Não que ele esteja próximo das modas ou veleidades contemporâneas ou das ideias deste ou daquele teórico em voga, nem que tenha antecipado as teses deste ou daquele maître à penser. A modernidade a que me refiro não se confunde com a mera contemporaneidade.2 Deixemos de lado nosso provincianismo temporal. A modernidade consiste em primeiro lugar na época da desprovincianização do mundo: aquela que, do ponto de vista temporal, abre-se com o humanismo que, voltando os olhos para o mundo clássico, relativiza o mundo contemporâneo; e que, do ponto de vista espacial, abre-se com as descobertas geográficas, celebradas, como se sabe, pelo próprio poeta de Mensagem, quando diz, por exemplo, no altíssimo poema “O infante”, inspirado em d. Henrique, o Navegador:
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até o fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Cometendo um sacrilégio, interrompo o poema para exclamar: que imagem, essa! “A terra inteira, de repente,/ Surgir, redonda, do azul profundo”: do azul profundo do mar, como o sol ou a lua surgem às vezes do mar. Mas o sol ou a lua surgem do mar para os nossos olhos. A terra surge redonda do mar para a nossa inteligência, porque as navegações a revelam efetivamente redonda. E os sentidos e a inteligência se confundem nessa imagem.
Mas continuo:
Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!3
Essa descoberta da terra inteira relativiza a Europa. O processo de desprovincianização ou de cosmopolitização que produziu o mundo moderno não se restringiu às descobertas dos humanistas e dos navegadores, pois também incluiu explorações científicas, artísticas, técnicas etc. Ora, a abertura de novos horizontes tornou também possível a compreensão do caráter limitado dos antigos horizontes. As ideias e as crenças tradicionais puderam ser postas em questão, quando não simplesmente desmentidas. Os valores, as formas e os procedimentos tradicionais puderam ser relativizados, quando não simplesmente abandonados.
Uma antiga tradição diz que o nome de Lisboa vem de Ulisses: Ulixes, Ulixbona, Lissabona, Lisboa. Em alemão diz-se ainda Lissabon para Lisboa. O fato é que o poema “Ulisses”, do já citado Mensagem, celebra essa tradição:
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.4
Ulisses remete ao passado mítico, e este se projeta para o futuro. E Ulisses remete também à modernidade, pois ele pode ser – e tem sido – considerado o primeiro personagem mítico moderno.
“Andra moi énnepe, Mousa, polútropon”s [“Fala-me, Musa, do homem polútropos”], diz-se, no primeiro verso da Odisseia. Aportuguesemos essa palavra, dizendo “polítropo”. Homem polítropo é, literalmente, o homem que se vira de muitos modos, versátil, hábil, inventivo. Tais qualidades eram, em geral, desprezadas pela nobreza pré-moderna. O nobre era o que era, era o que tinha nascido, identificava-se com sua casta e desprezava a possibilidade de vir a ser outro, ou de “se virar”. É por isso que, por exemplo, o poeta dos aristocratas, Píndaro, falava derrisoriamente de Ulisses, comparando-o desfavoravelmente a Ajax.6